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1. DO DIREITO À ECOLOGIA

1.4. Por que a Ecologia?

A resposta à indagação trazida no título deste tópico é em certa medida intuitiva. Antes de enfrentá-la, porém, façamos algumas referências a fragmentos textuais contidos na mencionada Constituição Ecológica. Meio ambiente? Meio ambiente ecologicamente equilibrado? Processos ecológicos essenciais? Manejo ecológico das espécies e ecossistemas? Diversidade? Patrimônio genético? Fauna e flora? Função ecológica?

Estes são alguns exemplos de elementos contidos na Constituição Ecológica e que demonstram, indubitavelmente, ser o conhecimento da Ecologia essencial para a delimitação do âmbito normativo das normas de proteção ambiental. Como já assinalamos – e agora tal

274 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:

Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 12.

275 Ibid., p. 13. 276 Ibid., p. 16.

posição está mais clara – serão tantas normas quanto os casos jurídicos e situações concretas a exigir concretização. Porém, em maior ou menor medida, todas elas passarão por esta ciência natural. Em suma, a resposta à indagação inicial está na própria concepção da Constituição Ecológica, que para ser concretizada impõe tal abertura.

O uso da Ecologia, como um instrumento parcial – porque não é o único – de concretização vai ao encontro da ideia anteriormente apresentada, de cooperação

interdisciplinar. Neste ponto, não como mais um mecanismo retórico do processo de decisão, mas como parte de uma metódica claramente definida, que reconhece, a partir de determinados critérios, a essencialidade de uma aproximação com a realidade. Chegar à Ecologia não é uma escolha arbitrária, é decorrência de um recorte efetuado pelo próprio programa da norma. Trata- se de verdadeira hipótese de utilização dos já mencionados elementos de concretização a partir

do âmbito da norma.

Autores clássicos já tiveram êxito em demonstrar tal proximidade, embora não necessariamente utilizando a metódica estruturante, como fazemos – o que não pode ser taxado como pior, ou melhor, apenas como diferente. Garcia, por exemplo, afirma que, em princípio, determinadas questões ecológicas (como o aquecimento global, por exemplo) são solucionadas por ciências outras que não o Direito277. “Torna-se, no entanto, um problema para o direito a

partir do momento em que adquire conotações éticas e, por essa via, se esboça uma responsabilidade ecológica”278. E continua a autora:

As conotações éticas não são, pois, suficientes para que o aquecimento global e o efeito de estufa se tornem um problema para o direito. Isso só acontece quando o dever de agir que a situação convoca e a respectiva definição da decisão individual se imponham imperativamente, porque a comunidade entende que aquele é um problema que lhe pertence e se lhe impõe em termos de resposta. [...]. A decisiva importância do direito neste horizonte de reflexão reside no facto de se ter como evidencia que sem o direito e a confiança que se transmite serão poucos os que decidem unilateralmente alterar os respectivos comportamentos, sacrificando-se por aquilo que entendem ser justo279.

A autora reconhece ainda que o Direito, no tocante às questões ambientais, se viu obrigado a incorporar nas normas elementos científicos e técnicos, o que teria transformado a estrutura “normativa do direito em invólucro de comandos orientados por peritos de diferentes áreas”280. Por fim, o próprio reconhecimento – no caso brasileiro por meio da Constituição –

277 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Protecção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 396.

278 Ibid., p. 396. 279 Ibid., p. 396. 280 Ibid., p. 401-402.

do meio ambiente como um bem digno de tutela – efetivamente um bem jurídico – impôs a atuação normativa do Estado281, disciplinando, sobretudo, a atuação em áreas sensíveis.

Na essência, parece-nos acertada a observação da doutrinadora portuguesa, porém, dela discordamos quando retrata esta modificação da estrutura normativa como se decorrente da incorporação, pelo Direito, da preocupação com o meio ambiente. Para nós não é a natureza – enquanto bem tutelado – que impõe esta mudança. Ela ocorre como força de um movimento mais amplo de abertura do Direito, como assinalamos anteriormente, que encontra guarida – e aplicação prática – na proteção do meio ambiente, mas não só nela (vide, por exemplo, a necessária abertura às ciências econômicas quando pensamos na concretização da Constituição Econômica282). Dito isto, inegável a influência da ciência ecológica na formatação de um direito

voltado à proteção do meio ambiente.

Para não dizer que deixamos de lado autores mais conhecidos no Brasil, vários fazem referência a tal proximidade – até pela sua inafastabilidade. Para ficarmos com dois, Granziera, ainda que brevemente, atesta que a “relação da Ecologia com o Direito Ambiental dá-se quando o conhecimento do ambiente natural e das relações de seus componentes entre si subsidia a construção da tutela jurídica desses bens”283. No mesmo sentido, José Afonso da Silva,

comentando o artigo 225 da Constituição Federal, reconhece que o “contexto interno do dispositivo revela um esquema normativo rico em manifestações ecológicas”284 e mais à frente

complementa, ao afirmar que

A Constituição usa vários conceitos ecológicos, que demandam esclarecimentos, a fim de se circunscrever com a precisão possível suas provisões sobre a matéria. Assim, quando diz que os sítios de valor ecológico se incluem no patrimônio cultural brasileiro (Art. 216, V), que ao Poder Público incumbe preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, assim como preservar o patrimônio genético do país, só compreenderemos o sentido jurídico dessas expressões se definirmos adequadamente seu conceito ecológico285.

Outros autores mencionam uma necessária ecologização do Direito, a partir de um olhar que assuma uma perspectiva ecológica. Sarlet e Fensterseifer falam em um constitucionalismo ecológico, que acolha “os novos conceitos e valores ecológicos, especialmente no sentido de uma Teoria Constitucional e dos Direitos Fundamentais ‘ecologicamente’ adequada e

281 GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Protecção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p. 404.

282 Indicamos, neste particular, a obra de Bastos (cf. BASTOS, Juliana Cardoso Ribeiro. Constituição Econômica

e a Sociedade Aberta dos Intérpretes. São Paulo: Verbatim, 2013)

283 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 13-14.

284 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 856. 285 Ibid., p. 857.

comprometida”286. E não é só, quando propõem a superação do Estado Social para um Estado

Socioambiental advogam a agregação da dimensão ecológica ao modelo de Estado.

Não podemos fugir desta realidade concreta que nos é colocada para confrontação. O intérprete deverá, cedo ou tarde, reconhecer esta complementaridade e passar ao processo de concretização despido de qualquer visão unidimensional do direito – para não dizer, efetivamente, com um pré-conceito. Deve deixar-se tomar pela Ecologia, certo dos limites ditados pelo programa da norma. Esta é justamente uma busca pela efetiva incorporação da dimensão ecológica ao Direito – um processo tão alardeado, mas pouco efetivado –, pois, como aponta Villas Boas, “salvaguardar o dever de respeito à ecologia é garantir o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida às presentes e futuras gerações [...]”287.

É com base nestes pressupostos teóricos que pensamos ser imprescindível um olhar mais cuidadoso sobre a Ecologia e os seus reflexos sobre a ordem jurídica brasileira. Veja que não iremos percorrer um caminho tradicional, limitado a buscar o conteúdo específico das disposições normativas trazidas pela Constituição (simplesmente definir os vocábulos indicados no parágrafo inicial deste tópico288) – isto fugiria da ideia central da dissertação, sem

prejuízo do trabalho de investigação já efetuado por outros juristas neste campo289. Queremos

mostrar aquilo que se encontra por trás da ideia de Constituição Ecológica e o reflexo na concretização das normas de proteção ambiental. O referencial material (concreto), dado pelo âmbito normativo das normas ambientais, é muito mais complexo do que o mero exame – também importante, reconhecemos – do valor linguístico de cada expressão trazida pelo artigo 225 da Constituição Federal.

Quando a Constituição Federal incorpora no seu texto a preocupação com a tutela do meio ambiente, ela traz para o seio da sociedade a preocupação com as questões ambientais. Ao fazê-lo, atende a um chamado da própria Ecologia, pois esta “não se reduz a uma especialidade da biologia: é uma especialidade que cobre o conjunto das ciências da natureza e

286 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Revista dos Tribunais 2ed, 2012, São Paulo, p. 36.

287 VILLAS BOAS, Regina Vera. Um Olhar Transverso e Difuso aos Direitos Humanos de Terceira Dimensão –

A Solidariedade Concretizando o Dever de Respeito à Ecologia e Efetivando o Postulado da Dignidade da Condição Humana. In Revista dos Tribunais OnLine - Revista de Direito Privado. São Paulo: n. 51, julho-2012. Disponível em <http://www.rtonline.com.br>. Acesso em 19deagosto de 2014, p. 2.

288 Meio ambiente; meio ambiente ecologicamente equilibrado; processos ecológicos essenciais; manejo ecológico das espécies e ecossistemas; diversidade; patrimônio genético; fauna e flora; função ecológica.

289 Por exemplo, José Afonso da Silva, em duas obras aqui estudadas (Cf. SILVA, José Afonso da. Comentário

Contextual à Constituição. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012 e SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental

que se estende até as ciências sociais”290 – a disciplina cuida não dos ecossistemas isolados,

mas da sua dinâmica, que pressupõe sua inserção e sua relação com o meio externo, considerados, sobretudo, os problemas aos quais o meio ambiente está submetido. A Ecologia apresenta constantemente desafios à humanidade, pois aborda problemas ambientais afetos aos seres humanos, o que faz dela inerente ao social.

Milaré, na sua obra, indaga se é possível um diálogo entre Ecologia e Direito, uma “pergunta que inquieta o jurista ambiental”291. A resposta nos parece muito clara: não só é

possível, como é essencial. Somente será possível compreender adequadamente a tutela ambiental, quando compreendermos o objeto de tutela. Se objetivamos proteger o meio ambiente, precisamos indagar que meio ambiente é este e como as relações naturais são estabelecidas. Negar a essencialidade da natureza é, em última análise, afastar-se de um postulado de concretização deste direito fundamental, é retirar da norma sua normatividade, pois fica excluído seu âmbito normativo (ou ao menos parcela dele). A Ecologia é intrínseca ao direito fundamental ao meio ambiente, é elemento formador da norma, em maior ou menor medida, conforme o caso concreto ao qual é direcionada. O que faremos aqui é justamente buscar este sentido ecológico da norma ambiental, na própria Ecologia, apontando, ao final, diretrizes de concretização da norma ambiental.

290 BARBAULT, Robert. Ecologia Geral: Estrutura e Funcionamento da Biosfera. Petrópolis: Vozes, 2011. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 17.