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Porque as fronteiras dos homens não respondem às demandas naturais?

2. DA ECOLOGIA DE VOLTA AO DIREITO

2.8. Porque as fronteiras dos homens não respondem às demandas naturais?

Depois de todo este percurso teórico, cabe buscar uma resposta para a questão trazida ainda no título deste tópico: por que as fronteiras dos homens não respondem as demandas naturais? Quando pensamos nesta indagação, estamos fazendo referência não só às fronteiras locais (internas ao país), mas também às fronteiras globais. Esta é a ideia que perpassa todo o trabalho. Veja, quando se fala em interconexão dos elementos do planeta, a invariável consequência é que definições unilaterais, impingidas pelo homem (e, portanto, políticas), não avançam sobre as características da natureza. Já tocamos neste ponto, mas aqui cabem algumas observações mais aprofundadas.

São inúmeras as evidências à disposição. Estudos efetuados nos Estados Unidos na década de 1960 já mostravam que, em um determinado córrego de Oklahoma, a diversidade bentônica foi afetada até 96 quilômetros para além do local onde o esgoto de um município era escoado529. O solo – “camada intemperizada da crosta da Terra com organismos vivos

misturados com produtos de sua degradação”530 –, os aquíferos – depósitos de água

subterrâneos –, o fogo (um “fator importante na formação da história da vegetação na maioria dos ambientais terrestres”531), os gases atmosféricos, o vento, as enchentes, são exemplos de

fatores e elementos transfronteiriços. Os oceanos, paralelamente, ocupam 70% da superfície da

527 LÉVÊQUE, Christian. Ecologia: Do Ecossistema à Biosfera. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 171. 528 Ibid., p. 172.

529 Cf. ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 318.

530 Ibid., p. 187. 531 Ibid., p. 194.

Terra532. São importantes não só pelo seu tamanho e pela sua abrangência, mas também por

influenciarem as condições da atmosfera, com um “papel destacado em moldar o tempo e o clima em todo o planeta”533. Ademais, “os animais móveis ajudam a integrar os diferentes

estratos e estágios de vegetação”534

Se os elementos naturais são exemplos, quiçá aqueles produzidos pelo homem. Há um fenômeno na natureza chamado magnificação biológica, substâncias que são concentradas a cada etapa da cadeia alimentar – o que ocorre com “certos radionuclídeos persistentes, pesticidas e metais pesados”535. Estas substâncias têm efeitos devastadores nos seres vivos. No

primeiro caso dos exemplos, temos os materiais decorrentes de processos de “fissão e ativação atômica”536, liberados no meio ambiente quando de grandes acidentes atômicos, como o de

Chernobyl, v.g. Os pesticidas têm seu maior exemplo no uso do DDT (diclorodifeniltricloroetano), cujos efeitos danosos foram primeiramente demonstrados no clássico livro de Rachel Carson, a Primavera Silenciosa, em 1962537. Sua obra apontou e

confirmou a presença de pesticidas e outros produtos químicos em larga escala e de forma onipresente no meio ambiente. “As aplicações cada vez mais intensas de inseticidas e outros pesticidas na agricultura resultaram na contaminação do solo e da água”538. Por fim, os metais

pesados, estão igualmente ligados à atividade humana – o cádmio e o chumbo estão associados aos esgotos lançados em rios539.

Os homens e a natureza estão ligados pela poluição. A poluição do ar, por exemplo, não aceita soluções compartimentadas, pois em alguma medida todos estão sujeitos a ela. As emissões de poluentes na atmosfera não ficam adstritas a um local específico. Eles são amplos, eles se deslocam, eles são, por excelência, holísticos – e as soluções igualmente demandam este olhar holístico. A poluição do ar é ainda mais sensível em razão do “sinergismo amplificador, no qual as combinações de poluentes reagem no ambiente para produzir poluição adicional”540.

Vale dizer: componentes se combinam e geram poluentes ainda mais nocivos.

Embora não seja o objeto direto desta pesquisa, pois não nos propusemos a efetuar tal discussão, as constatações apresentadas ao longo do trabalho ligam-se à própria ideia de

532 ODUM, Eugene P.; BARRET, Gary W. Fundamentos de Ecologia. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 414. 533 Ibid., p. 414. 534 Ibid., p. 433. 535 Ibid., p. 216. 536 Ibid., p. 216. 537 Ibid., p. 216. 538 Ibid., p. 222. 539 Ibid., p. 217. 540 Ibid., p. 221.

sociedade de risco tão propalada no meio acadêmico, com reflexos inclusive para o Direito Ambiental. Para Beck, a sociedade moderna passa não só por problemas de escassez, mas também por questões envolvendo a distribuição de riscos541. Segundo o autor, na evolução

histórica da sociedade, nota-se o início de uma confluência de “conflitos sociais de uma sociedade ‘que distribui riqueza’ com os de uma sociedade ‘que distribui riscos”542. Poder-se-

ia dizer que não vivemos em uma sociedade de risco pura, nem mesmo em uma sociedade na qual os conflitos distributivos sejam o único mote543.

Embora este fenômeno seja tipicamente moderno – visualizado a partir da década de 1970 –, o conceito de risco – e sua existência – é bem anterior. Entretanto, no passado, os riscos eram de caráter pessoal, não riscos com contornos globais, com influência para toda a coletividade544. No passado as ameaças eram “sensorialmente perceptíveis”545, mas hoje fogem

desta percepção comum. No passado, os riscos vinham justamente da falta de tecnologia, hoje, ao contrário, decorrem do excesso dela546.

Ainda segundo Beck, tal como as riquezas, os riscos também são passíveis de distribuição. Todavia, se a lógica da apropriação de riqueza é positiva, a dos riscos é negativa – ideia de afastamento547. As questões modernas inerentes à percepção do risco demandam a

“simbiose de ciências naturais e humanas”548. As disciplinas e ramos do conhecimento não

podem se isolar ou ser exacerbadamente especializadas. Demandam, ao contrário, a colaboração contínua. O teor dos riscos não pode, ao contrário do que pretendem as ciências, ser determinado de forma objetiva, em especial pelo uso da probabilidade549 – uma lógica

segundo a qual tudo se funda em “conjecturas especulativas e move-se unicamente no quadro de asserções de probabilidade”550.

Por certo, a distribuição de riscos tem certa peculiaridade. Ainda que se acumule na parte baixa da pirâmide social, em certa medida, cedo ou tarde, os riscos acabarão por prejudicar também quem está em cima – um exemplo é poluição atmosférica. A depender da camada de renda e educação, os riscos podem ser minorados, é bem verdade, mas jamais completamente

541 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 23. 542 Ibid., p. 25. 543 Ibid., p. 25. 544 Ibid., p. 25. 545 Ibid., p. 26. 546 Ibid., p. 26. 547 Ibid., p. 31-32. 548 Ibid., p. 34. 549 Ibid., p. 34-35. 550 Ibid., p. 35.

evitados551. Neste último sentido, vale a seguinte máxima: enquanto a miséria é hierárquica, o

risco é democrático552. Por isto os riscos têm “efeito equalizador”553. Daí não se poder afirmar

que as sociedades de risco são sociedades de classe. A análise das ameaças não pode ser efetuada como se os riscos fossem adeptos da divisão de classes. Os riscos têm uma predisposição natural à globalização554.

Quando Beck enfrenta a “utopia da sociedade mundial”555, afirma que as sociedades de

risco agregam uma ideia de perigo global. O risco “já não respeita qualquer diferença ou fronteira, social e nacional”556. E as sociedades de risco, para Beck, “[...] contêm em si uma

‘dinâmica evolutiva de base democrática que ultrapassa fronteiras’, através da qual a humanidade é forçada a se congregar na situação unitária das autoameaças civilizacionais”557.

Aqui não se fala apenas de limites territoriais amplos, entre Estados nacionais, mas também dentro de cada um deles558. Por esta razão, as sociedades de risco “precisarão, hoje e no

futuro[...], aprender a sentar-se à mesa e a encontrar e a implementar soluções para as ameaças autoinfligidas capazes de atravessar todas as fronteiras”559.

Não é de admirar, então, que o tratamento holístico da natureza complexa como um conjunto de redes, cada uma com um pequeno mundo de interações entre algumas discretas entidades vivas ou não vivas, grupos ou indivíduos[...]. Os temas metafísicos de uma natureza totalmente unificada, que em biologia estão em espera científica desde que Darwin acidentalmente realçou os organismos como a matriz da sua teoria, estão agora voltando a ter um desenvolvimento sério. Problemas contemporâneos de um holismo em larga escala, expresso pela poluição do meio ambiente, intoxicação, degradação e destruição, o efeito estufa e a mudança global; o buraco de ozônio, a chuva ácida,; Bopal; Valdez; ThreeMileIsland e Chernobyl; a propagação de radioatividade – e a AIDS; e no próximo século um novo conjunto de indesejáveis efeitos secundários da biotecnologia de recombinação do DNA – tudo isto serve como lembretes de que a biosfera é de fato uma unidade interconectada única, na qual eventos em um local podem se espalhar rapidamente, ou lenta e traiçoeiramente – mas inevitavelmente – pelo globo para afetar todas as coisas, em todos os níveis organizacionais, em todo lugar. O mecanismo subjacente para tal proliferação, implícita ou explícita, é a rede. A necessidade transformou este estudo sério em objeto

551 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 41-42.

552 O autor, ao efetuar esta frase, utiliza o termo “smog”, e não o termo risco. Adaptamos a frase para este trabalho, de modo a deixá-la mais compreensível. No entanto, cumpre mencionar a definição do termo “smog”: “O termo smog resulta da junção de duas palavras inglesas: smoke (fumo) e fog (nevoeiro) e, tal como o nome indica, é o resultado da mistura de um processo natural (o nevoeiro) com os fumos resultantes da atividade industrial e queima de combustíveis fósseis, originando um tipo de nevoeiro que pode ser altamente tóxico, como o que atingiu o Vale do Mosa (Bélgica, 1930) ou Londres, em 1952”. (Smog. Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponível em http://www.infopedia.pt/apoio/artigos/10653000?termo=aerossóis. Acessado em 23/10/2014)

553 BECK, Ulrich. Op. cit., p. 43. 554 Ibid., p. 43. 555 Ibid., p. 56. 556 Ibid., p. 56. 557 Ibid., p. 57. 558 Ibid., p. 57. 559 Ibid., p. 58.

científico, como algo mandatório e urgente; o advento dos computadores modernos fez isto ser possível560.

Valer dizer: se os riscos são globais, a gestão destes riscos – e, consequentemente, seu enfrentamento – também deve ser. Se os riscos não têm fronteiras, a proteção ao meio ambiente não pode ser exercida de forma isolada, sem intercomunicação e união de esforços para atingir o mesmo objetivo. Este contexto impõe a concretização da norma ambiental a partir destas constatações. “Uma vez que a interdependência entre os povos, as nações e o meio ambiente é muito maior do que comumente se admite, as decisões deveriam ser tomadas em um contexto holístico (de sistema)”561.