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Capítulo 6 Considerações Finais

6.2 Hermes e bonecas russas: para compreender a formação docente

estão aqueles que mais precisam de uma prática docente mais competente e renovada.

6.2 Hermes e bonecas russas: para compreender a formação docente

Este trabalho foi uma tentativa de demonstrar a importância de realizar, cada vez mais, estudos em LA que visem ao consórcio entre professores e pesquisadores para a produção de mudanças localmente situadas no micro-mundo da sala de aula, ou num contexto social mais amplo, se possível. Decorre disso que a relação teoria-prática foi analisada sob o ponto de vista da integração, da parceria, do trabalho conjunto. Assim, procurou-se argumentar que a formação de professores de línguas seja vista como um processo não apenas contínuo e complexo, mas também intrinsecamente pessoal e inter- pessoal. Por isso a importância da interação com o outro, com o diferente, e a conseqüente busca pela promoção da tensão colaborativa (c.f. capítulo 3).

Mas o que um construto como esse pode trazer de novo para a formação de professores? Como implantá-lo, efetivamente, numa situação de formação continuada? Primeiramente, promovendo o debate crítico para diagnosticar e conhecer quem são os professores em formação, o que pensam, do que precisam e o que desejam. Depois, debatendo criticamente o cotidiano escolar para identificar problemas específicos. Em seguida, com base na informação teórica disponível, desenhar e promover ações modificadoras que possam atenuá-los, tendo em vista cada realidade particular. Se essas três fases que ensejam o trabalho colaborativo aqui proposto puderem ser acompanhadas por um pesquisador/formador (externo à escola ou não) ele poderá, mais ainda, colaborar para polemizar o dia-a-dia da sala de aula, estudando, em conjunto com

a rede de participação, os casos dos professores participantes e seus múltiplos desdobramentos.

Ademais, argumentou-se que a ação-colaborativa é marcada discursivamente e implica, assim, a existência da situação comunicativa (como em Habermas 1987), isto é, os participantes da ação, embora necessariamente diferentes entre si, tendo em vista suas histórias individuais e profissionais particulares, devem gozar dos mesmos direitos de participação na interação, bem como de igual poder de decisão. Desse modo, a escola e a universidade passam a assentar-se, durante a parceria, num único patamar hierárquico, a despeito de suas diferenças intrínsecas, que não podem ser negadas. Reconhece-se, então, a assimetria inerente às relações inter-pessoais e inter- institucionais para, por meio da tensão colaborativa, promover a troca, visto que só há troca se houver diferença. Assim, a essência do trabalho colaborativo, como proposto nesta pesquisa, pode, quem sabe, ser traduzida pelo mito de Hermes.

Na Mitologia Grega, Hermes era o deus responsável pela comunicação entre o mundano e o divino. Como Hermes falava tanto a língua dos homens como a língua dos deuses, só ele podia fazer a ponte entre esses dois mundos. Para isso, ele carregava consigo um bastão mágico que o ajudava em casos especiais. Hermes representava, assim, um mediador. Ele, porém, não eliminava a distância entre os dois mundos, mas os aproximava.

Ao mesmo tempo em essa imagem denuncia a existência de dois universos distantes e complexos, tal como na visão dicotômica de teoria e prática, ela também representa o trabalho de todos nós, professores e pesquisadores de LA. Isso porque, na

essência, nossa tarefa central é produzir conhecimento (não divino, mas mundano) em conjunto com nossos alunos e com outros professores em formação. De nós espera-se a consecução da complexa atividade de transformar informação teórica em aprendizagem significativa ou, com base no conhecimento prático, sua teorização. Ocorre que não há conhecimento sem linguagem. É por isso que Hermes, como mediador, aproxima os dois mundos pela linguagem, sem apagar suas fronteiras. Assim, neste estudo, propõe- se que a universidade prossiga com sua lógica e objetivos próprios e que o mesmo ocorra com a escola. Porém, sustenta-se que ambas possam aprender com a outra e, em decorrência desse aprendizado, melhorar e expandir suas atuações específicas. Tudo isso sem bastões mágicos, pois se Hermes podia contar com eles no passado nós, hoje, felizmente, não podemos mais.

Assim, como resultado do trabalho colaborativo, não se espera que professores apenas confirmem as teorias da universidade e nem que apregoem que elas salvaram suas salas de aula do caos. Isso porque, como defendem Freire (1982) e Kumaravadivelu (2001) almeja-se que a teoria seja re-adaptada pelos professores, sendo, pois, modificada.

Por isso, o construto tensão colaborativa enseja, também nesta seção, a apresentação de uma outra imagem: as bonecas russas, que se encaixam umas nas outras, chamadas matryoshka. Isso porque, no trabalho colaborativo aqui proposto, balizado pela tensão colaborativa, a ação conjunta é feita de modo inter-dependente, tal como na conjunção das bonequinhas. Cada parte é diferente da outra e, ao mesmo tempo, igual. Elas formam, então, um todo que, metaforicamente, alude ao crescimento,

ao enriquecimento pessoal e profissional, como nas diferentes idades do homem, liricamente descritas por Rachel de Queiroz56:

“ (...) Pois a gente também é assim. A princípio eu pensava que, com a passagem das diferentes idades do homem, o maior ia substituindo o menor, quero dizer, o menino ficava no lugar do nenê, o adolescente no do menino, o moço no adolescente, o homem feito no do moço, o de meia-idade no do homem feito, o velho no lugar do de meia-idade e por fim o defunto no lugar de todos. Mas depois descobri que os indivíduos passados não desaparecem, se incorporam, ou, antes, o indivíduo novo incorpora os superados como se os devorasse, e uns vão ficando dentro dos outros, tal como as bonecas russas (...)”.

É precisamente a essa incorporação, ou transformação, decorrente da aprendizagem e do trabalho com o outro, que a ação-colaborativa deve conduzir. Disso advém outras três constatações deste estudo: (a) a necessidade de promover uma formação docente não-fragmentada e nem fragmentária, (b) a decorrente importância de aproximação com outras áreas do conhecimento, fronteiriças à LA, pelo trabalho temático57 e não apenas disciplinar e (c) a importância de uma formação docente humana e socialmente compromissada.

56 QUEIROZ, Raquel Bonecas Russas, crônica publicado no Jornal Correio Brasiliense, em 23/09/00. 57 Sousa (1987) sugere que, na pós-modernidade, o conhecimento seja agrupado por temas de trabalho e

não mais por meio de disciplinas formais, que compartimentalizam o saber e tornam necessário, sempre, “separar para conhecer” (Santos 1987: 96).

Esses três pontos assinalam a necessidade de olhar para o professor de LI em formação e enxergar uma pessoa, que trabalha com outras pessoas, inseridas em realidades sociais próprias, que não podem ser negadas e das quais o ensino da LI é, somente, um elemento, ao lado de tantos outros que, juntos, concorrem para a formação intelectual e pessoal do aluno. Se assim compreendida, a formação de professores poderá corresponder ao paradigma emergente de produção de ciência em que dicotomias são revistas e no qual professores e formadores podem (e devem) trabalhar juntos, em busca da realização de ações concretas de mudança.