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A história da arte como um enquadramento

CAPÍTULO 2. O FIM DA HISTÓRIA DA ARTE SEGUNDO HANS BELTING

2.2. A TESE DO “ FIM ” EM TRÊS ATOS

2.2.1. A história da arte como um enquadramento

Os temas do fim da arte e do fim da história da arte, segundo Belting, já estiveram muitas vezes em discussão. No entanto, não necessariamente seu anúncio deu-se a partir do mesmo ponto de vista. O historiador afirma que se, por um lado, o “fim da arte” pretende ser um grito, um chamado a uma nova ordem, a favor da “proclamação de uma nova arte”; o “fim da história da arte”, por outro lado refere-se a percepção da perda de “sentido para a história presente e de um objetivo para uma história totalmente nova”. Quando se fala então da crise da história da arte, refere-se à crise de um modelo de desenvolvimento histórico teleológico, de herança hegeliana. Assim, o modelo de um desenvolvimento histórico da arte coerente e organizado não responde mais às exigências dos fenômenos artísticos, o que, por conseqüência, acarreta uma mudança fundamental da

narrativa com a qual o descrevemos, a partir da perda do sentido histórico para o qual as coisas se encaminham progressivamente (BELTING, 2006: p.171).

O discurso do fim, desta forma, não pretende qualquer tipo de especulação a respeito da extinção da produção artística ou do campo científico. O discurso do fim é uma ferramenta que permite o distanciamento crítico, possibilitando uma perspectiva discursiva que admite a aproximação do objeto transformando-o em um problema. Tal ponto de observação à distância favorece um horizonte mais crítico, o que propicia uma arqueologia da disciplina e dos seus métodos.

Segundo Belting, tal perspectiva crítica foi favorecida, sobretudo, pela aproximação do fim do século, a qual oportunizou “um novo exame da arte e também de todas as narrativas com que a descrevemos” (BELTING, 2006: p.8). Além da distância de pouco mais de um século em relação ao contexto em que emergiu a ciência da arte, mudanças significativas ocorreram no âmbito da produção artística. Com isso, emerge e urge a necessidade de uma revisão do campo científico e de suas bases metodológicas, de modo que se exige do historiador uma postura crítica. O que Belting propõe é um exercício de desmascaramento, desvelamento dos problemas temporalmente condicionados.

No entanto, há de se questionar: qual a importância da problematização da história da arte? Quais as implicações do questionamento dos fundamentos metodológicos do campo científico?

A problematização da história da arte é a problematização da idéia originária intrínseca ao conceito de uma história da arte. “No conceito está presente tanto o significado de uma imagem como a compreensão de um enquadramento: o acontecimento artístico, como imagem, no enquadramento apresentado pela história escrita da arte” (BELTING, 2006: p.8)”. E qual é a idéia intrínseca a este conceito? “A idéia (...) de restituir uma história efetiva e trazer à luz o seu sentido” (BELTING, 2006: p.8).

Belting, em linhas gerais, compreende a relação entre os fenômenos artísticos e a história da arte como um ajuste entre enquadrado e enquadramento. O enquadrado é o objeto da história da arte. Por sua vez, o enquadramento é a própria história da arte. E

assim afirma o historiador: “A arte se ajustou ao enquadramento da história da arte tanto quanto esta se adequou a ela” (BELTING, 2006: p.8). No entanto, Belting percebe uma alteração na imagem enquadrada pela história da arte, ou seja, uma alteração do objeto científico – o enquadrado. A alteração da imagem ocasionaria uma relação de desajuste entre ela (enquadrado) e o enquadramento: ou seja, um desenquadramento. Esta alteração do enquadrado, segundo o historiador, obrigaria mudanças essenciais igualmente ao enquadramento.

O historiador esclarece que o enquadrado e o enquadramento da história da arte foram delimitados em determinado momento para uma finalidade precisa. Deste modo, a perspectiva de Belting se fundamenta na compreensão tanto da arte (enquanto produção/fenômenos artísticos) e da história da arte (enquanto campo científico) como eventos históricos, por isso, datados. Este é um aspecto de extrema importância para que se compreenda a raiz do problema, da questão dissertada por Belting.

E quais são as implicações de uma afirmativa como esta para o campo científico da história da arte? Do ponto de vista do historiador alemão, a história da arte em sua forma tradicional de narrativa é muito restrita ou limitada para acolher novos grupos e cenários artísticos e culturais. À medida que este enquadramento é restrito, suas condições históricas são determinadas, bem como sua função é específica, inscrita em um contexto histórico e social. Para isso, seria necessária uma recapitulação “de qual objeto se trata e quem estava envolvido no empreendimento da história da arte” (BELTING, 2006: p.24), para que se possa compreender a relação existente entre a idéia originária presente no conceito de uma história da arte e o anúncio do “fim da história da arte”.

Belting considera o pretenso universalismo da história da arte como um equívoco ocidental fundamentado por uma visão eurocêntrica moderna. Enquanto uma invenção ocidental, a história da arte elegeu uma determinada produção imagética, ou seja, certas formas de arte como historicamente imperativas. Havia um ajuste (ou, ao menos, acreditava-se nele) entre a imagem eleita (enquadrada) e o discurso histórico (enquadramento): no conceito de “história da arte” se incute a relação entre o acontecimento artístico (imagem) e a história escrita da arte (enquadramento). Mais do que

a simples idéia de “fim”, Belting sugere a idéia de perda do enquadramento, o que evoca um outro enquadramento. Afirma o historiador que “o discurso do “fim” não significa que “tudo acabou”, mas exorta a uma mudança no discurso, já que o objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos” (BELTING, 2006: p.8).

Um ponto que é preciso esclarecer, a fim de que equívocos sejam previamente evitados, é que Belting não prescinde do enquadramento. Ao contrário: o historiador considera que dispensar, se apartar, abominar qualquer forma de enquadramento é um equívoco. Até mesmo, impossível. A investigação histórica baseia-se em um discurso que é proferido por um indivíduo encerrado em determinadas condições sócio-culturais, em um determinado contexto histórico. Esse discurso só é legível no interior deste enquadramento, desta moldura legitimadora. Para Belting, o enquadramento (narrativa histórica) e o enquadrado (fenômeno artístico) são realizações históricas e culturais de mesma importância. E enquanto realizações culturais devem ser lidos contextualmente.

Somente o enquadramento fundia em imagem tudo o que ela [a arte] continha. Somente a história da arte emoldurava a arte legada na imagem em que aprendemos a vê-la. Somente o enquadramento instituía o nexo interno da imagem (BELTING, 2006: p.25).

O enquadramento é imprescindível. Enquanto operação histórica, situa-se em circunstâncias sociais, políticas, culturais específicas. Sendo assim, é base da investigação histórica o lugar do qual o historiador re-apresenta, narra. Qualquer narrativa histórica da arte precisa de sua própria moldura legitimadora: a narrativa só é legível no interior deste enquadramento, deste recorte, do qual é produto e produtora.

Certeau, ao se referir à “operação historiográfica”, questionando o produto e o produtor do fazer histórico, trata da incapacidade de suprimir a particularidade do lugar da fala, do domínio em que se realiza uma investigação: “o gesto que liga as ‘idéias’ aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador. Compreender, para ele, é analisar em termos de produção localizáveis o material que cada método instaurou inicialmente segundo seus métodos de pertinência” (CERTEAU, 2007: p.65). Certeau pensa a pesquisa

historiográfica de forma articulada a um lugar de produção social, econômica, política e cultural. Logo:

Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposição, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões que lhes serão propostas, se organizam (CERTEAU, 2007: pp.66-67)

Deve-se ter em vista, a partir de tais considerações, que a história da arte é também uma forma de representação. A história da arte possui uma atividade de caráter dúbio: ao mesmo tempo em que investiga obras portadoras de representação ela também é uma forma de representação dessas mesmas obras. No entanto, “o antigo procedimento de explicar o mundo pela sua história vive hoje uma crise: a crise da representação” (BELTING, 2006: p.223). O que não é uma particularidade apenas da ciência da arte, mas igualmente de outros campos de pesquisa científica. Esclarece ainda que a construção da história da arte, que é também uma forma de representação dos fenômenos artísticos, é um tipo de representação que “explica”, uma interpretação histórica. Com isso, a crise da história da arte e o anúncio do seu “fim” devem ser lidos igualmente no interior da “crise da representação”, fenômeno ligado à destruição do referencial entre o real e o seu registro, o qual outrora norteava o pensamento ocidental moderno.

A crise do enquadramento e o desajuste do enquadramento em relação ao enquadrado podem ser igualmente compreendidos como um desajuste entre o discurso científico e o mundo não-acadêmico – a realidade da produção artística. Relacionando o apego científico à ordem e a arte caótica do século XX, Belting afirma que o dogmatismo, resultante do sucesso da disciplina, não está preparado para lidar com a produção artística que com esse enquadramento se desajusta. Assim, Belting afirma inclusive que o discurso artístico, a produção artística, a obra de arte, resistentes à ordem do método científico, inúmeras vezes transbordam as margens acadêmicas.

As ciências sempre procuram oferecer ao espírito do tempo as fórmulas adequadas nas quais ele deve se reencontrar e tomar consciência de si. Todavia, se formos honestos, o célebre discurso acadêmico satisfaz apenas a si mesmo. Ou será que esse discurso não quer convencer insistentemente o mundo não- acadêmico que este depende dele, embora a realidade pareça diferente? (BELTING, 2006: p.10)

O objeto da história da arte mudou. E tal mudança não se deu somente na aparência, mas também na substância e no significado. Tal mudança desorganiza a antiga simetria de representações. Em outras palavras: desestabiliza a reciprocidade entre o discurso que enquadra e o objeto enquadrado. Neste sentido, a questão que permanece é: “pode a história da arte continuar no mesmo sentido, quando o seu objeto rejeita todas as respostas esperadas?” (BELTING, 1987: p.61)

Aquilo que a disciplina história da arte, com grande esforço, tinha canonizado - a ordem ideal, onde tudo obedece às regras da história da arte – a arte contemporânea tende a descanonizar. Este sistema de hierarquia e classificação histórica está sendo invadida por artistas, que agora apropriam-se do passado, sem se preocupar em justificar a sua reinterpretação sem o discurso ordenado de história da arte (BELTING, 1987: p.61).

Como já afirmado anteriormente, no conceito “história da arte” se inscreve tanto na história real da arte como a disciplina que escreve esta história. O caráter dúbio do título O fim da história da arte foi conscientemente adotado na medida em que se pretendia chamar a atenção tanto para a experiência artística como para a pesquisa científica: por um lado, a atuação dos artistas já não se dava por uma via de desenvolvimento histórico retilíneo; por outro, a ciência da arte não reconhece mais um modelo obrigatório para a apresentação do seu objeto. O anúncio do “fim da história da arte” refere-se ao fim de um conceito único e fixo de acontecimento artístico (BELTING, 2006: p.175).

Sendo assim, é importante salientar (conforme já explicitado brevemente em momento anterior) que Belting não considera “o fim da história da arte” a partir de uma perspectiva de extinção completa da disciplina (ou mesmo da produção artística). Ao contrário: afirma que arte e história continuam sendo produzidas. No entanto, algo

intrínseco à construção de ambas se modificou de uma forma que se torna impossível pensá-las como “antes”. A afirmativa, na realidade, se refere ao fim de uma determinada narrativa histórica da arte: o anúncio do fim alude , mais precisamente, a uma determinada forma de narrativa, a um determinado método (ou métodos), e não exatamente ao tema da narrativa.

Belting refere-se à crise da “antiga história da arte” como a substituição de “um esquema rígido de apresentação histórica da arte, o qual na maioria das vezes resultou numa história puramente estilística”. Esta “história dos estilos” (enquanto sistema autônomo, portador de suas próprias leis) evoluiria apartada de uma visão mais geral em relação ao homem e sua história.

O homem só tinha um lugar nela quando tomava diretamente parte na produção artística, ao passo que, inversamente, a arte não encontrava mais nenhum lugar na história universal, sendo vista apenas em sua própria história autônoma (BELTING, 2006: p.172)

Do ponto de vista do historiador, a crise da “antiga história da arte”, da história dos estilos (afinal, a história da arte dos grandes modelos), já havia começado com a emergência das vanguardas, as quais eram fundamentadas por um discurso próprio de uma “história da arte do progresso”. Sendo assim, coexistiam “duas visões de história da arte que se igualavam superficialmente em suas idéias”. E prossegue:

Embora a idéia da arte ainda constituísse o teto sob o qual ambas se sentiam em casa, ela não proporcionava mais a imagem de um todo. Desse modo, ambos os modelos se contradiziam quando ocupavam um lugar comum, na medida em que continham como contradição a continuidade da história e a ruptura com a história. O ideal da primeira modalidade de história da arte estava no passado e o da segunda no futuro. (BELTING, 2006, p.172).

O “fim da vanguarda” ou “fim da história”, da história como progresso para o novo (advindo inclusive da “institucionalização da modernidade”), segundo Belting, emergiu na década de 1960, “quando nem arte nem mesmo a própria história pareciam ainda oferecer alternativas e rumos a que se pudesse apelar. Surgiu desde então a

impressão de que seria preciso lançar-se a um balanço pós-histórico com tudo o que estivesse às mãos” (BELTING, 2006: pp.176).

O “fim da história da arte” estaria para o fim de um determinado enquadramento, de um determinado artefato, no sentido de “fim de regras do jogo”. No entanto, o que se nega não é a continuidade, o prosseguimento do jogo: é a continuidade das antigas regras, dos antigos paradigmas. O jogo prosseguirá de uma outra forma. Com isso, Belting aparta de suas considerações quaisquer tentativas de pensamento conclusivo em relação ao tema, já que é um processo vivo, em contínua transformação.