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A história da arte como produto moderno

CAPÍTULO 2. O FIM DA HISTÓRIA DA ARTE SEGUNDO HANS BELTING

2.2. A TESE DO “ FIM ” EM TRÊS ATOS

2.2.2. A história da arte como produto moderno

Há de se ter em vista algumas questões importantes ao que tange a instituição história da arte para que se haja uma compreensão mais ampla a respeito de sua fundação e de seu ocaso. Quando surgiu a moderna ciência da arte? Com que fardo surgiu a moderna ciência da arte? Sobre qual objeto se inclinava e quem estava envolvido neste empreendimento? Em suma: em qual contexto, por quem, para o quê, e para quem a história da arte foi fundada?

Hans Belting afirma que “de maneira obstinada e quase paradoxal, projeto da antiga história da arte está associado ao projeto de modernidade”. História e estilo, par conceitual no qual se dá a conhecer “a verdadeira fisionomia” da história da arte enquanto fruto da modernidade, é hoje repreendida por seu caráter unilateral, tirânico, incontestável.

Os grandes movimentos políticos projetavam o futuro tal como faziam as artes, embora de modo totalmente diferente. Uns e outros eram guiados por utopias que eles queriam transpor para uma realidade futura. Vontade de ação social e a de ação estética estavam estreitamente ligadas. Ambas tinham motivos para renunciar ao historicismo do século XIX, no qual tinham suas raízes, e para proclamar uma “nova história” ou uma “nova arte”.

O resultado disso é o que chamamos hoje de modernidade. A lógica imperativa da história era, assim como o “verdadeiro” estilo da arte, mais do que mero conceito (BELTING, 2006: p.43).

Segundo Belting, a história da arte e os museus são dois fenômenos modernos, coincidentes, os quais reúnem e expõem os fenômenos artísticos. Logo, além de um

conceito moderno, há também uma prática moderna que é exercida em ambos os lugares. A presença dos fenômenos em ambas as instituições é marcada pela noção de privilégio (seleção e eleição) e de ausência (rejeição), dividindo o mundo em duas esferas: o que é e o que não é artístico, o que faz e o que não faz parte da narrativa do artístico. A arte não está na vida: está no museu, na sala de exposições, nos institutos de pesquisa científica, no livro e em tantos outros lugares extraordinários. A era da história da arte e a era dos museus se fincam na modernidade, servindo-se, no entanto, de fenômenos artísticos que surgiram, inclusive, antes e sem qualquer relação com estas instituições.

Em No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte, Brian O’Doherty disserta a respeito da construção do espaço expositivo moderno (o que inclui os espaços museológicos), considerando como uma de suas características essenciais o fato de apartar o mundo exterior de seus domínios: paredes pintadas de branco, janelas fechadas, luz unicamente proveniente do interior como se nada mais fosse necessário ao objeto artístico para assumir vida própria. Segundo O’Doherty, este espaço estéril – “sem sombras, branco, limpo, artificial” – é o ponto de vista a partir do qual é enquadrada a história do modernismo. O espaço branco, ideal, se configura no arquétipo da arte do século XX: “a obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma” (O’DOHERTY, 2002: p.3). Por outro lado, O’Doherty afirma que o “envelhecimento” do modernismo evidencia os preceitos deste espaço e o contexto torna-se conteúdo.

Esta lógica organizacional do espaço artístico não se restringe apenas a forma de apresentação da arte nos museus, mas pode ser lido em paralelo ao discurso historiográfico moderno da arte, à grafia usada pela história da arte para representar os fenômenos artísticos. Este mesmo sentido de pureza, de esterilidade, de um espaço “artificial” (no sentido do que não é espontâneo, ou seja, o que é forçado, fingido, burlado) para arte pode ser identificado na idéia de autonomia da arte.

Segundo Hans Beting, o fim da história da arte se inscreve no fim de uma tradição que tem sua origem na modernidade, quando então seu contorno canônico foi desenhado, tal qual chega ao presente como herança. O fim, portanto, significa a falência de um determinado modelo de uma história da arte pensada a partir de uma lógica interna, a

qual se descrevia a partir do estilo de época e de suas transformações. A autonomia da arte, comprovada na obra de arte, se configurava no credo da pesquisa cientifica.

O verdadeiro tema da história da arte à maneira antiga era certamente o tema de uma autonomia artística que favorecia o desenvolvimento metodológico de uma ciência histórica da arte puramente formal. O artista de vanguarda, assim como o pesquisador do estilo, esforçaram-se ambos, cada qual à sua maneira, para obter a prova dessa autonomia: o primeiro mediante sua obra, o segundo mediante sua interpretação” (BELTING, 2006: p.199).

Sendo assim, o resultado seria a desintegração da unidade interna da história da arte (de sua narrativa autônoma) a partir da dissolução da história da arte em todo o campo da cultura e da sociedade. Considera então o historiador que se a modernidade é marcada por uma única história da arte, a pós-modernidade caracteriza-se pelo convívio de várias histórias da arte, pluralmente da mesma forma que ocorre com as tendências artísticas. O discurso da arte e da história da arte autônomas é contaminado pelas “outras histórias”: a autonomia da obra de arte é um paradigma de enquadramento moderno, em desajuste com a produção pós-moderna. Desta maneira, torna-se evidente que Belting já compreendia ambas (arte e história da arte) como intrinsecamente relacionadas a determinadas condições culturais e, por conseqüência, impregnadas de significados políticos.

Há de se ter em vista, por exemplo, o empréstimo do termo “vanguarda” e de seu sentido no contexto militar no qual a palavra tem em sua origem pela modernidade artística. A saber: vanguarda, do francês avant-garde, como a parte do exército que segue a frente: “dispositivo de vante de uma tropa para combate”, “posição que encabeça uma sequência; dianteira, frente”27. Entre as possibilidades de significações disponíveis, está o entendimento da vanguarda como “a parcela mais consciente e combativa, ou de idéias mais avançadas, de qualquer grupo social”; ou ainda como “grupo de indivíduos que, por

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seus conhecimentos ou por uma tendência natural, exerce papel de precursor ou pioneiro em determinado movimento cultural, artístico, científico, etc.”28

Segundo Belting, “uma vanguarda testa os caminhos por onde a batalha deve ser travada e a vitória conquistada” (BELTING, 2006: pp.195-196). Aqueles que se apropriaram do termo (pertencentes ao âmbito artístico ou não) tinham em comum o fato de compreenderem o movimento de vanguarda como um testador de caminhos que pertencem não à ordem do presente, mas que dizem respeito ao futuro. Vanguarda é o que se adianta: ela vai a frente a fim de que seja seguida pelos demais. Há assim um anacronismo constante e intrínseco à vanguarda que, paradoxalmente, é indissociável do seu presente: ao mesmo tempo que ruma ao futuro, sempre o faz a partir de um posto temporal particular, preciso. No entanto, conforme demonstra Belting, mesmo que tenha se contraposto às antigas elites de poder e da cultura, a vanguarda igualmente constitui uma outra forma de elite: uma elite de revolucionários, sonhadora e desconhecedora da realidade.

Para a história da arte, enquanto disciplina acadêmica ainda jovem em sua constituição, a produção artística moderna (logo, a ela contemporânea) era encarada com perplexidade, na medida em que esta produção não poderia ser julgada de acordo com os critérios comprovados da história, o que realmente causava um problema. Este quadro não se alterou muito, mesmo passado mais de um século: a história da arte é ainda hoje um campo de pesquisa muito tradicional, se configurando como um campo avesso a grandes mudanças.

Ainda na primeira publicação da tese do fim da história da arte, Belting conclui que o argumento por ele desenvolvido naquele ensaio preocupava-se com o estudo da história da arte, que enquanto uma disciplina acadêmica foi criada antes do surgimento da arte moderna. E que, posteriormente, apesar de muitas vezes terem sido praticadas uma ao lado da outra, a história da arte se comportou como se ela – a modernidade artística – inexistisse absolutamente durante muito tempo. Segundo o historiador, quando então a arte moderna é absorvida como um dos objetos científicos da história da arte, aqueles que a

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praticavam não sabiam exatamente o que fazer com ela. No entanto, assim afirma Belting: “para o observador que sabe o que procura, a curiosidade sobre as conseqüências é a atitude óbvia” (BELTING, 1987: p.56).

Como já apresentado no primeiro capítulo desta pesquisa, a discussão sobre arte degenerada dentro do contexto da produção artística moderna é um ponto importante tanto do processo instituição da história da arte enquanto campo científico como do de legitimação da arte moderna neste mesmo campo. Afirma Belting que no contexto do Terceiro Reich a tentativa era de apontar na arte moderna aspectos da degeneração humana. No entanto, no contexto pós-guerra, segundo o historiador, “ainda ecoava em todos os ouvidos a condenação de que não se tratava de arte, mas de degeneração – portanto de doença – e de charlatanice; em todo caso tratava-se da incapacidade de representar um ideal do homem” (BELTING, 2006: p.53). A obra A perda do centro, de Hans Sedlmayr (apontado por Belting como um dos opositores da modernidade e, igualmente, um dos grandes nomes da segunda Escola de Viena), publicada em 1948, é uma discussão tardia do tema, já no contexto pós-guerra. Em A perda do centro, Sedlmayr tem como ponto central de discussão a imagem do homem representada na arte por conta da perda da imagem humanista do homem. Complementa o argumento aí iniciado na publicação de A Revolução da Arte Moderna, em 1955. Segundo Belting, a imagem do homem torna-se “o grande tema do pós-guerra”, na medida em que “a barbárie da guerra e do delírio racial deixara atrás de si um profundo trauma e despertara a necessidade urgente de reconquistar, ‘após Auschwitz’, a imagem perdida do homem numa grande confissão”.

Na década de 1950, no entanto, a arte moderna passa por um processo de canonização, no qual é vista como vítima da política nacional socialista, ou seja, uma heroína internacional. Segundo o historiador

Após a guerra, um programa de “reparação” à “modernidade” perdida” tornou-se a meta de uma nova historiografia na qual a modernidade clássica conquistava seu perfil imaculado numa transfigurada visão retrospectiva. A arte moderna passara a possuir um espaço de culto no qual estava inscrita apenas a reverência, mas nenhuma análise crítica (BELTING, 2006: p.52).

Assim, a história da arte moderna começa a ser escrita pelos historiadores nos anos 1950, quando há então um movimento de historicização da vanguarda, o que, segundo Belting, causou um problema curioso. A historicização da vanguarda não significa que se escrevia a história da vanguarda, mas se tratava de vanguarda como história: aquela história que durante longo tempo a vanguarda outrora fizera campanha contra.

Com a historicização da vanguarda, a história da arte moderna, a imagem histórica da modernidade torna-se a vanguarda. No entanto, na década de 1960, esta idéia de arte como vanguarda, logo, como progresso para o novo, se torna incerta: a morte/ocaso da vanguarda é também, de alguma forma, o fim da modernidade, a qual, segundo Belting, foi anunciada “como lamento e triunfo” (BELTING, 2006: p.197), logo, causando conseqüências determinantes à arte moderna. De um lado, temia-se que com o fim da vanguarda se perdesse igualmente aquela direção, aquela seta apontada para o futuro, a convicção de uma marcha com um sentido muito nítido, como conseqüência de “uma arte frívola que não proclama mais a constante despedida da história” (BELTING, 2006: p.251). Ao mesmo tempo que, com a historicização da vanguarda, a imagem da histórica desta é vista com suspeição: “começa-se a indagar se não era uma imagem do desejo que sempre dependia um pouco da crença dos seguidores e ainda mais das provocações bem- sucedidas dos adversários” (BELTING, 2006: p.251). Em suma: Hans Belting afirma que tal quadro evidencia a subjugação da vanguarda às leis da história ao invés de se impor, impor sua lei à história. A vanguarda, tornando-se ideal de tradição, é esperada. No entanto, o que lhe configurou fundamentalmente enquanto vanguarda foi o seu caráter revolucionário, de resistência. Ou seja: “o programa da vanguarda, que consistia numa permanente revolução da arte, havia se imposto de maneira surpreendente entre o público e o privado – e com isso ela tinha se transformado no seu contrário” (BELTING, 2006: p.197).

Rosenberg, em A tradição do novo, afirma que o rompimento moderno com que a tradição impôs-se durante apenas o tempo suficiente para que esta mesma modernidade construísse sua própria tradição. No entanto, “o novo não pode tornar-se

tradição sem dar lugar a contradições singulares, mitos, disparates – criativos, mesmo amiúde” (ROSENBERG, 1974: p.XV).

Dois acontecimentos são considerados determinantes entre a primeira modernidade e o presente. Esses acontecimentos, segundo o historiador alemão, determinam de forma duradoura o destino da arte bem como da imagem da história escrita da arte. Destaca ainda que esses dois acontecimentos não se referem, não fazem parte de um movimento evolutivo interno à arte, mas lançam-se de fora para dentro, interrompendo “abruptamente a bela continuidade do progresso segundo as leis” (BELTING, 2006: p.51). Esses dois acontecimentos, processo que alterariam de forma radical a arte e a imagem da história da arte, seriam: a política nacional-socialista e a intervenção dos EUA. A respeito da política nacional-socialista muito já se discorreu. Resta então o papel dos Estados Unidos, brevemente citado em momento anterior.

Se a crise da modernidade se inscreve profundamente na argumentação do fim da história da arte, tece-se ainda neste emaranhado a crise da história da arte como ciência européia. A intervenção dos Estados Unidos tem como conseqüência o alargamento do “território” da história da arte. Para Belting, a idéia que se tinha de história da arte talvez tenha se desmoronado no justo momento em que, não apenas dois hemisférios, mas dois cenários distintos em seus modelos históricos decidiram por se unirem em um único cenário artístico coletivo (BELTING, 2006: p.82). Logo, sendo a era da história da arte marcada por um determinado enquadramento, condicionado a determinados conceitos e práticas localizados culturalmente; é justamente este enquadramento que está em jogo no argumento de Belting.