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1. História da Infância

1.4. História da protecção da criança

A protecção das crianças maltratadas, como se pode constatar, nem sempre foi uma realidade, atendendo a que as novas práticas foram sendo culturalmente aceites de forma progressiva. A história dos maus-tratos às crianças refere-se basicamente ao maltrato físico e à negligencia grave da criança, visto que as situações relacionadas como abuso sexual e o maltrato psicológico não foram durante muito tempo referidas (Scannapieco & Connell-Carrick, 2005).

As primeiras referências aos maus-tratos a crianças surgiram nas revistas cientificas do final do século XIX (Barroso, 2004; Formosinho & Araújo, 2002), tendo o primeiro artigo médico sobre esta temática sido publicado em 1860 por um professor de Medicina Legal de Paris. Nele eram retractadas as autópsias de 32 crianças com menos de 5 anos e as lesões sofridas que originaram uma morte violenta (Canha, 2003).

Em muito contribuiu para a causa da sensibilização em relação aos maus-tratos, o caso de Mary Ellen Wilson, nos Estados Unidos (1874). Tratava-se de uma menina de oito anos, vitima de maus-tratos físicos por parte da madrasta com quem vivia. Depois de denunciada sem êxito a vários agentes de protecção, que não agiram atendendo à inexistência de leis que salvaguardassem os direitos da criança e que impediam qualquer forma de acção legal, foi através da mediação da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra os Animais, que apresentou o caso em tribunal, alegando que os animais se encontravam legalmente protegidos e que Mary Ellen, como

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um ser pertencente ao reino animal, deveria ser também protegida. Desta forma, em 1874, nos Estados Unidos foi ditada a primeira sentença contra os pais de uma criança, pelos maus-tratos que lhe eram infligidos (Canha, 2003; Formosinho & Araújo, 2002; Scannapieco & Connell-Carrick, 2005). Os autores referem ainda que em 1875 foi fundada em Nova Iorque, a National Society for the Prevention of Cruelty to Children e em 1884, a mesma foi estendida a Londres.

Em 1946, foi retomada a publicação de artigos médicos sobre a criança maltratada, por Caffey, um radiologista norte-americano que defendeu a origem traumática de fracturas dos ossos longos, de causa desconhecida (Canha, 2003; Sampaio et al., 1997; Scannapieco & Connell-Carrick, 2005). Durante o século XX, muitos foram os autores que se dedicaram ao estudo desta temática. Magalhães (cf. 2004, p. 25), citando Díaz Huertas, apresenta cinco fases da história dos maus-tratos a crianças:

a) Até 1946, de desconhecimento;

b) Entre 1946 e 1961, descrição dos sintomas sem os identificar; c) De 1962 até meados da década de 70, a descrição;

d) Meados da década de 70 a meados da década de 80, o reconhecimento; e) Após a segunda metade da década de 80, a prevenção.

Canha (2003) refere que em 1953, Silverman colocou a hipótese de serem os pais os responsáveis pelas fracturas múltiplas, por negligência, descuido ou mesmo agressão deliberada; em 1960, Altman demonstrou que o afastamento da criança do seu ambiente familiar, permitia não só a cura das lesões, como também a prevenção do aparecimento de novas lesões.

O pediatra Henry Kempe e seus colaboradores (1962) publicaram, “The Battered Child Syndrome” que definiu como maltrato físico situações em que as crianças são alvo de agressões físicas, as quais são provocadas pelos seus pais ou cuidadores, tendo trazido uma atenção significativa para a temática (cf. Canha, 2003, p.25). Canha (2003) refere que neste artigo os autores apresentam, para além da definição do problema, os factores de risco, a fisiopatologia, as manifestações clínicas, os diferentes tipos de maltrato, as manifestações radiológicas, dando uma visão global do problema e reconhecendo a necessidade de intervenção multidisciplinar, bem como o afastamento temporário da criança dos seus pais, tendo em vista a sua protecção.

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Fontana introduziu, em 1963, o conceito de maus-tratos, mais abrangente, em substituição do de criança batida. Este novo conceito inclui não só o de criança batida, mas também a criança que sem sinais de ter sido agredida, tem manifestações de privação emocional, afectiva, nutritiva e de negligência (cf. Canha, 2003, p. 26). Posteriormente, em 1965, Kempe introduziu o conceito de criança abusada, “child abused”, mais abrangente do que o anterior, uma vez que incluía para além dos maus- tratos físicos ou emocionais, as crianças abandonadas, as vítimas de negligência ou de abuso sexual (cf. Magalhães, 2004, p. 29).

Em Portugal este tema passou a ser objecto de maior preocupação, sobretudo nos anos 80, do século XX (Canha, 2003; Sampaio et al., 1997). Nesta época, começou a dar-se atenção especial à temática, usando-se uma abordagem multidisciplinar, médico-sócio- jurídica. Segundo Tomás & Fonseca (cf. 2004, p. 384), Portugal foi um dos primeiros países a adoptar um conjunto de leis de protecção para as crianças, com a promulgação em 1911 da Lei de Protecção à Infância. No entanto, foram nulas as inovações durante o Estado Novo. O decreto-lei n.º 314/78, também tem por base o decreto-lei de 1911, não distinguindo entre crianças transgressoras e crianças em perigo, dificuldade esta apenas ultrapassada em 1999 com a criação da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro) e pela Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99 de 14 de Setembro).

No sentido da colaboração efectiva entre as entidades com responsabilidade em matéria de infância e juventude (Tribunal de Família e Menores, Serviços de Educação, de Acção Social e de Saúde, entre outras), foram criadas as Comissões de Protecção de Menores, que mais tarde deram origem às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (ligadas à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo), permitindo efectuar uma vigilância das crianças de risco na comunidade (Canha, 2003; Tomás & Fonseca, 2004). Estas alterações legislativas vão no sentido de que a situação de risco em que muitas crianças vivem, só poderá ser sanada, ou pelo menos atenuada, pela solução das causas sociais que estão na sua origem.

Assim, a noção de risco social pode segundo Delgado (cf. 2006, p. 54,55) reportar-se a diferentes perspectivas que surgiram fruto da evolução que sofreu o conceito de infância bem como relativamente à importância do desenvolvimento harmonioso e do bem-estar das crianças.

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a) Relativamente à perspectiva jurídica, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens (Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro) refere que a criança em risco é aquela cujo bem-estar é posto em causa, comprometendo o seu desenvolvimento global. Este perigo resulta da acção ou omissão dos pais ou de outro cuidador responsável. Esta situação de perigo pode ainda resultar da acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou jovem e sempre que os cuidadores não consigam opor-se de forma a impedir a situação de perigo.

b) A perspectiva da acção social realça a não satisfação das necessidades da criança e a falta de cumprimento dos direitos dos menores.

c) A perspectiva preventiva (primária, secundária ou terciária) dá ênfase à necessidade de desenvolvimento de processos de intervenção com o objectivo de evitar um conjunto de perturbações que poderão resultar de uma situação de risco.

d) O surgimento das perspectivas ecológica e sistémica, que realçam-se as questões das interacções entre a criança, os pais, a família, a sociedade e as questões culturais.

Independentemente da perspectiva considerada, o conceito de risco e perigo apresenta uma inter-relação com as noções de maus-tratos, qualquer que seja a sua tipologia (físico, psicológico ou sexual), o seu agente (pais, outros cuidadores ou terceiros) ou o seu âmbito (familiar, institucional ou social). Desta forma, Delgado (cf. 2006, p. 55) considera várias formas de maus-tratos, baseando a análise em diversas perspectivas.

Situações de Maus-tratos em Crianças e Jovens

Negligência Corrupção

Maus-tratos físicos Síndroma de Munchausen

Abuso sexual Abandono

Maltrato psicológico Mendicidade

Exploração no trabalho infantil Maus-tratos e negligência intra-uterina

Quadro 1- Situações de maus-tratos