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2. Maus-Tratos na Infância

2.3 Tipologia dos maus-tratos

2.3.3 Maltrato Psicológico

Também denominado como maltrato emocional ou negligência emocional, abuso verbal, ou dano mental, o termo maltrato psicológico foi preferido, pois abrange os aspectos cognitivos e afectivos do maltrato (Hart, 1988; Hart, Brassard, Binggeli, & Davidson, 2002). O maltrato psicológico é referido como sendo uma forma de maltrato concomitante com todas as outras, quer sejam maltrato físico, sexual ou negligência. No entanto, também pode surgir como forma isolada de maltrato da criança (Alberto, 2006; Boulton & Hindle, 2000; Glaser, 2002; Hart et al., 2002; Magalhães, 2004; Scannapieco & Connell-Carrick, 2005; Vieth, 2004).

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& Crittenden (1991), na maioria das crianças (90%), que também sofreram maltrato físico ou negligência. Segundo Hart (1988), os subtipos de maltrato psicológico geralmente surgem sob as seguintes formas: agressão verbal ou emocional, falta de atenção passiva ou passiva-agressiva às necessidades da criança, prevenção ou punição do desenvolvimento da auto-estima e das capacidades interpessoais, interferência no desenvolvimento da autonomia e integridade pessoal e redução da capacidade da vítima para funcionar dentro das qualidades de desempenho esperadas.

Nesta forma de maltrato, ocorre um padrão repetitivo de interacções lesivas entre os cuidadores e a criança, que se torna comum na relação. Em determinadas situações, o padrão é crónico e subtil; noutras, o padrão ocorre quando desencadeado pelo consumo de álcool, ou qualquer outro factor. Ocasionalmente, um acontecimento singular, muito doloroso, tal como um divórcio, pode iniciar o maltrato psicológico (Kairys, Johnson, & Neglect, 2002).

O estabelecimento de uma definição de maltrato psicológico tem sido um processo difícil, devido a numerosas questões filosóficas, científicas, legais, políticas e culturais, no entanto, que nos últimos anos têm-se feito progressos significativos (Hart et al., 2002).

Glaser (cf. 2002, p. 702) define um conjunto de critérios a ter em conta na definição de maltrato psicológico:

Descreve a relação entre os pais/cuidadores e a criança; Interacções ansiosas invadem ou caracterizam a relação;

As interacções são prejudiciais ou potencialmente prejudiciais para o desenvolvimento e saúde psicológica/emocional da criança;

O maltrato psicológico inclui acções ou omissões; e O maltrato psicológico não requer contacto físico.

Desta forma, a American Professional Society on the Abuse of Children (APSAC) define o maltrato emocional como um padrão repetitivo do cuidador, ou um acontecimento excessivo que transmite à criança que ela é indigna de ser amada ou querida, que é imperfeita, que apenas tem valor para responder às necessidades do outro, pelo que pode sentir-se ameaçada (cf. Glaser, 2002, p.702; Hart et al., 2002, p.81; Scannapieco & Connell-Carrick, 2005, p.17).

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Doyle (2001); Hart et al. (2002) fazem referência a uma outra definição da responsabilidade da The International Conference on Psychological Abuse of Child and Youth , que afirma que o maltrato psicológico das crianças e jovens consiste em acções ou omissões, as quais são julgadas com base na combinação dos padrões comunitários e no conhecimento dos profissionais relativamente aos prejuízos psicológicos. Tais actos são cometidos individual ou colectivamente por indivíduos que pelas suas características (idade, condição, conhecimentos e forma de organização) estão numa posição de poder, que subjuga a criança vulnerável. Tais acções lesam o funcionamento comportamental, cognitivo, afectivo ou físico da criança.

Segundo Kairys et al. (cf. 2002, p. 1), os seguintes comportamentos constituem formas de maltrato psicológico:

Tratar com desprezo (interacções verbais ou não verbais hostis de rejeição, degradantes, que envergonham ou ridicularizam a criança; humilhar a criança em público; isolar a criança para a criticar ou castigar);

Aterrorizar (comportamento ameaçador; probabilidade de prejudicar fisicamente a criança; fazer a criança sentir-se insegura; fazer a criança sentir expectativas não realistas com a ameaça de perda, dano ou perigo; colocar a criança, pessoas ou objectos de que ela gosta em perigo);

Explorar/corromper (encorajar a criança a desenvolver comportamentos desapropriados; modelar, permitir ou encorajar comportamentos anti-sociais ou desapropriados; encorajar ou coagir ao abandono de comportamentos apropriados de autonomia; restringir ou interferir com o desenvolvimento cognitivo);

Negar resposta emocional (ignorar as necessidades de interacção da criança; falhar na expressão de afectos, amor ou carinho pela criança, não mostrar emoções na interacção com a criança);

Rejeitar (evitar ou afastar a criança);

Isolar (negar oportunidades à criança para interagir/comunicar com pares e adultos, ao confinar, colocar limitações despropositadas à liberdade de movimento ou às interacções sociais);

Parentalidade instável ou inconsistente (exigências contraditórias e ambivalentes);

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Negligência mental, de saúde, médica e educacional (ignorar ou não assegurar a resposta à criança em termos de tratamento ou serviços das necessidades ou problemas emocionais, comportamentais, físicas, ou educacionais da criança); Testemunhar violência doméstica (assistir a violência conjugal nas relações de

intimidade).

Azevedo & Maia (2006), referem ainda a super-protecção como uma forma mais camuflada de maus-tratos psicológicos, atendendo a que as crianças super-protegidas se tornam muito dependentes e inseguras, pouco autónomas e pouco responsáveis, incapazes de agir por si próprias.

Glaser (cf. 2002, p.703,704) propõe um outro conjunto de cinco categorias, no âmbito do maltrato emocional:

1. Falta de disponibilidade emocional, insensibilidade e negligência Inclui insensibilidade do cuidador.

O cuidador principal está geralmente ocupado com as suas dificuldades particulares (ex. problemas de saúde mental como depressão pós-parto, alcoolismo ou toxicodependência, ou ainda com o trabalho) e encontra-se indisponível para responder às necessidades emocionais da criança ou para providenciar uma alternativa adequada.

2. Atribuições negativas ou falta de atribuições à criança

Hostilidade, difamação e rejeição da criança que é percebida como merecedora desta atitude.

Algumas crianças crescem a acreditar e a actuar de acordo com as atribuições negativas que lhes são aplicadas.

3. Interacções inconsistentes ou desapropriadas em termos de desenvolvimento da

criança

Expectativas para além das capacidades da criança;

Super-protecção e limitação da exploração e aprendizagem; Exposição a acontecimentos e interacções traumáticas e confusas.

Inclui exposição a violência doméstica e a tentativa de suicídio parental. Os cuidadores perdem a noção dos cuidados apropriados à criança, bem como das práticas disciplinares e do desenvolvimento da criança, muitas vezes devido às experiências da criança. As suas interacções com a criança, enquanto

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prejudiciais, são irreflectidas e mal orientadas, em vez de procurarem ser danosas.

4. Falha em reconhecer a individualidade da criança e os seus limites psicológicos Usa a criança para satisfação das necessidades psicológicas dos pais;

Dificuldade em distinguir entre a realidade da criança e as crenças e desejos do adulto.

Ocorre geralmente no contexto de custódia e disputas entre pais divorciados. 5. Falha em promover a adaptação social da criança

Promoção de socialização deficiente (incluindo corrupção);

Negligência psicológica (falha em proporcionar estimulação cognitiva adequada e/ou oportunidades de experiências de aprendizagem)

Inclui acções e omissões, bem como o isolamento da criança e o seu envolvimento em actividades criminais.

O maltrato psicológico experimentado por crianças expostas a violência doméstica nas relações conjugais, constitui uma área de preocupação emergente (Hart et al., 2002), uma vez que a relação entre a violência parental e esta forma de maltrato se tornou clara. Segundo Rossman, Hughes, & Rosenberg (2000), alguns exemplos desta forma de maltrato são o facto de o indivíduo maltratante tender a isolar a criança e a família para manter a situação secreta, o que pode implicar a não participação da criança em actividades sociais; o terror experimentado pelas crianças que assistem a cenas de violência entre os pais ou o facto de ver ameaçado ou violentado alguém que amam; a criança pode ainda experimentar situações de hostilidade ou agressão durante o conflito conjugal; ainda o clima emocional negativo quando existe conflito conjugal que pode reflectir-se quer em hostilidade, quer em rejeição da criança.

Os maus-tratos psicológicos constituem, na opinião de Azevedo & Maia (2006), uma forma de maus-tratos bastante difícil de detectar, ainda que muito frequente. Deste modo, Boulton & Hindle (cf. 2000, p. 440) apresentam seis dimensões do maltrato psicológico, em que se estabelecem relações inadequadas, persistentes e inflexíveis, entre a criança e o(s) cuidador(es):

Atitude negativa, persistente para com a criança; Promoção de um processo de vinculação inseguro;

80 Falta de disponibilidade emocional;

Falta de reconhecimento da individualidade da criança e dos seus limites psicológicos;

Inconsistências e distorções cognitivas.

Na maioria das famílias onde se suspeita de maltrato psicológico, a criança apresenta dificuldades importantes que são objectivamente mensuráveis. Na ausência de explicação plausível para as dificuldades da criança e na presença de interacções pais - criança, que caiem nas dimensões acima descritas, esta suspeita deve ser explorada (Glaser, 2002).

Relativamente aos factores causais, Kairys et al. (2002) aponta que os pais apresentam fracas capacidades parentais, alcoolismo e/ou toxicodependência, depressão, tentativa de suicídio ou outros problemas psicológicos, baixa auto-estima, capacidades fracas de relação social, estilo parental autoritário, falta de empatia, stress social, violência doméstica e disfunção familiar.

Ao contrário do que se verifica relativamente às outras formas de maus-tratos, Hamarman, Pope, & Czaja (2002) referem que as crianças que sofrem maus-tratos psicológicos não são oriundas de comunidades com altos níveis de violência, nem parece que o nível sócio-económico tenha alguma influência.

As crianças que se encontram em risco de sofrer maltrato psicológico, são aquelas cujos pais estão envolvidos em divórcios, crianças que não foram queridas ou planeadas, crianças cujos pais são inexperientes, crianças cujos pais consomem excessivamente substâncias tóxicas, que maltratam os animais ou que têm conflitos conjugais e ainda crianças que estão socialmente isoladas ou que são portadoras de deficiências (Kairys et al., 2002). Hamarman et al. (2002) referem ainda que estas crianças têm tendência para ser mais velhas do que as que sofrem os outros tipos de maus-tratos.

Um padrão crónico de maltrato psicológico afecta o sentido de si e de segurança pessoal da criança, o que segundo Kairys et al. (cf. 2002, p. 2), conduz a: (1) sentimentos de baixa auto-estima, emotividade negativa, sintomas de ansiedade, depressão, suicídio ou pensamentos suicidas; (2) problemas emocionais tais como, instabilidade emocional, personalidade borderline, insensibilidade emocional, problemas de controlo de

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impulsos, cólera, comportamentos de auto-agressão, problemas alimentares e consumo abusivo de álcool ou drogas; (3) capacidades de relações sociais problemáticas como por exemplo, comportamentos anti-sociais, problemas no processo de vinculação, competências sociais fracas, escassa simpatia e empatia para com os outros, auto- isolamento, desobediência, problemas de ajustamento sexual, dependência, agressividade e violência, ou delinquência ou criminalidade; (4) problemas de aprendizagem, incluindo baixas competências académicas, dificuldades de aprendizagem e de raciocínio moral; (5) problemas de saúde física que incluem problemas de crescimento, queixas somáticas, problemas de saúde e mortalidade alta. Hamarman et al. (2002) referem que o maltrato psicológico permite prever problemáticas como défices sociais, comportamentos suicidas, diagnósticos e hospitalizações psiquiátricas. Por sua vez, Glaser (2002) afirma que a hostilidade e a rejeição estão associados à depressão, sobretudo nas raparigas, bem como a comportamentos de interacção social hostis e negativos com as outras crianças. Allen (2008) aponta ainda a dificuldade em desenvolver estratégias apropriadas de regulação emocional.

A exposição na infância ao maltrato psicológico permite prever ansiedade e queixas somáticas na idade adulta. Esta relação pode ser mediada por alterações do sistema psicobiológico, que aumenta a estimulação do sistema nervoso autónomo, a que corresponde uma resposta de stress (Allen, 2008).

Também nesta forma de maltrato, o modelo ecológico ajuda a clarificar o modo como esta se envolve na experiência humana, para além do nível individual de interacção, na família, na comunidade e na sociedade. Também o bulling ao nível escolar e as formas de racismo e xenofobia são exemplos clarificadores (Hart, 1988).