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2. O MODELO DE CIÊNCIA PROPOSTO POR KUHN NA ESTRUTURA

2.3. CONSIDERAÇÕES SOBRE O MODELO KUHNIANO

2.3.3. História e filosofia da ciência

A filosofia da ciência de Kuhn não poderia prescindir de uma história da ciência, sendo esta o pano de fundo para suas conjecturas acerca do trabalho científico. A insistência de filósofos como Kuhn na análise histórica pode ser caracterizada na tradição da filosofia da ciência como “giro histórico” (ECHEVERRÍA, 1997: 7). Isso pode ser observado na análise kuhniana, sobretudo pela importância dada às reconstruções históricas, as quais têm seu ponto forte na identificação de paradigmas.

Segundo Kuhn, “Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina” (KUHN, 1992: 19). A proposição de Kuhn nos inclina a pensar a ciência como um espaço que deve ser continuamente analisado, o que não é novidade na filosofia da ciência, mas com a contribuição da análise histórica de diferentes períodos. Esse tipo de análise histórica colabora com a compreensão de que a ciência se desenvolve por processos de ruptura. Em cada momento histórico, a ciência estaria atrelada a diversos aspectos contextuais.

A história da ciência não pode ser considerada como algo novo, pois a utilização de exemplos científicos na literatura acadêmica é uma antiga tradição entre filósofos. Entretanto, a história da ciência foi amplamente utilizada até Kuhn sobretudo para indicação de datas de feitos científicos, entre outros elementos de menor impacto para o exame do funcionamento da ciência. A diferença estabelecida é que a partir da contribuição dada na Estrutura, a história da ciência passou a ser utilizada de forma mais qualitativa, como instrumento para a análise filosófica da ciência.

Na antiga tradição, os elementos da história da ciência servem para garantir a compreensão comum de que a ciência é desenvolvida por processos de acumulação. Como já vimos até então, para Kuhn, a ciência se desenvolve por processos de ruptura e a história da ciência tem fundamental importância na justificação dessa ideia.

Os exemplos históricos são abundantes na Estrutura, principalmente os da história da física, não por acaso, já que é a área de formação inicial do filósofo. A quantidade de exemplos é tão grande, que a caracterização da filosofia de Kuhn como sendo um giro histórico deve ser considerada como pertinente.

A utilização dos exemplos históricos deve ser compreendida como a principal maneira de analisar o desenvolvimento da ciência por meio de processos de ruptura. É por meio da investigação de diversos períodos da ciência que Kuhn fundamenta sua ideia de desenvolvimento científico, de forma que sua filosofia da ciência não pode ser sustentada sem o levantamento histórico desenvolvido.

Segundo Laudan,

Os que mantêm a concepção de a filosofia ser um empreendimento inteiramente normativo podem contestar a afirmação de que uma disciplina descritiva como a história possa ter algum impacto significativo na filosofia (LAUDAN et al., 1993: 12).

Muito mais do que a obra de Kuhn, o entendimento que temos da ciência seria drasticamente reduzido não fosse a capacidade filosófica de lançar mão dos aspectos importantes dos capítulos históricos. Conforme a célebre frase de Lakatos (1983: 107) “a filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia”.

Ainda que a intenção não seja alinhar Kuhn a uma escola, a relação que ele mantém com os exemplos históricos da produção científica traria um sentimento de pertencimento maior à análise histórica do que qualquer outra análise que se possa inferir. No entanto, há que se reconhecer as críticas vigentes sobre a maneira como se utilizam esses exemplos históricos, pois

Qualquer filosofia da ciência, especialmente aquelas que reclamam garantia empírica, deve submeter-se a testes muito mais sofisticados e elaborados do que qualquer um que se tenha empreendido. Impressões pessoais de que um modelo particular "adequa-se" a um certo domínio de casos, confiança em estudos históricos secundários ou terciários de informações sobre os casos em questão, fracasso em formular hipóteses sob teste com precisão detalhada, relutância em comparar as capacidades relativas das teorias rivais no trato do mesmo domínio de casos, restrição do domínio de casos considerados a um punhado de cinco ou seis revoluções preferidas (comumente aquelas associadas a Copérnico, Galileo, Newton, Lavoisier, Darwin e Einstein), insistência na avaliação holística de modelos inteiros ao invés da análise pormenorizada de suas afirmações componentes — essas e muitas outras falhas epistêmicas devem

levantar dúvidas sobre o compromisso sincero e pleno da escola histórica em testar suas teorias frente aos relatos empíricos (LAUDAN et al., 1993: 14).

Embora a crítica nos pareça pesada em demasia, há que se aceitar como válida, principalmente se for tomada como alerta, pois da mesma armadilha que sofre o cientista quando tenta “encaixar” a natureza em suas teorias, também pode padecer o filósofo da ciência, procurando os exemplos que se adequam à suas ideias. Mas, se assim for, não teria o exemplo cumprido seu papel e a explicação não seria aceitável, uma vez que o exemplo se encaixou com primazia na ideia defendida? Assim sendo, continuaremos defendendo a utilização do exemplo histórico, mas levando em consideração que o trabalho da filosofia da ciência vai além da pesquisa filosófica comum, pois há que se considerar um método para que a validade do que se é dito também possa ser aferida.

Dessa forma, os problemas implicados pela citação acima nos parecem menos problemáticos do que numa primeira leitura, posto que a escolha dos exemplos é salutar, já que sua função primeira é servir como ilustração da ideia defendida. Além disso, qualquer exemplo que possa ser tratado pode e deve ser tomado como histórico, não sendo possível para nós escapar da historicidade dos fatos científicos.

2.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Estrutura, encontram-se os principais elementos para compreender o modelo de desenvolvimento da ciência que Kuhn trabalhou ao longo de sua vida acadêmica. Embora questões adicionais tenham sido tratadas por ele35, é possível compreender o modelo com base na leitura da Estrutura. As adições empreendidas por Kuhn nos textos posteriores à Estrutura, devem ser compreendidas como ampliação do modelo original, e por isso não estão sendo consideradas aqui.

Com relação ao funcionamento do modelo de Kuhn e o impacto que pode causar no trabalho científico, é importante destacar que não há nenhuma intenção explícita de tornar o modelo como normatizador da atividade científica. A filosofia empreendida por Kuhn se dá no sentido de compreender o funcionamento da ciência, e não de determinar como a ciência deveria funcionar.

O modelo de desenvolvimento da ciência de Kuhn gira em torno de um paradigma que envolve a comunidade científica e a impulsiona em busca da compreensão do mundo. Durante o período anterior ao de ciência normal, o paradigma foi eleito como legítimo representante das intenções de solucionar o conjunto de anomalias observadas durante o período de crise. Nesse caso, a função do paradigma é fornecer respostas plausíveis às perguntas que são feitas ao longo do processo científico.

Há que se considerar que, se ciência “é a reunião de fatos, teorias e métodos reunidos nos textos atuais”, então os cientistas são “homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se em contribuir com um ou outro elemento para essa constelação específica”. O desenvolvimento científico “torna-se o processo qualitativo do qual esses itens foram adicionados, isoladamente ou em combinação, ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a técnica científicos” (KUHN, 1992: 20).

Numa imagem ideal do processo de descoberta científica, seria oportuno que o cientista registrasse seu trabalho com um caráter filosófico, ou seja, pensando o limite e o desenvolvimento do método empregado. Parece que Kuhn quer mostrar que isso não ocorre na produção do conhecimento científico e propõe a tomada mais enfática da história da ciência. Esta, por sua vez, seria responsável por relatar e resguardar o desenvolvimento da ciência, assim como responsável por citar os erros, equívocos e omissões do processo científico, pois o historiador da ciência,

De um lado deve determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi descoberta. De outro lado deve descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico (KUHN, 1992: 20).

O papel do historiador da ciência não seria um dos mais fáceis, pois lidar com uma quantidade tão surpreendentemente grande de dados, que é a produção científica, com o objetivo de perceber as falhas dos mais diversos caminhos percorridos pelo cientista em seu trabalho, parece-nos ser bastante importante para o filósofo.

Além disso, o trabalho histórico na concepção em tela demandaria também uma constante análise filosófica, na medida em que seria necessário determinar os erros atrelados às escolhas metodológicas e/ou limitações da época.

Quanto aos manuais, não se está propondo uma supressão deles, pois há neles muita utilidade para a coesão do paradigma. No entanto, uma melhoria na relação que o cientista estabelece com eles e, sobretudo, na perspectiva que eles são construídos seria um passo importante a ser dado.

Conforme Laudan,

Inúmeros e veementes tributos verbais têm sido prestados à idéia de que a história da ciência e a filosofia da ciência dependem totalmente uma da outra. Apesar disso, o casamento entre as duas disciplinas, sancionado e perpetuado pela existência de dezenas de departamentos acadêmicos consagrados à questão parece, muitas vezes, mais imaginário do que real e mais forçado do que natural. É evidente que a presença de departamentos e cadeiras universitárias com nomes híbridos não é suficiente, por si mesma, para demonstrar uma afinidade real entre os dois tópicos. Além disso, na prática efetiva, os dois são, com freqüência, inteiramente irrelevantes um para o outro (LAUDAN, 2000: 9).

A contradição em relação ao pensamento de Kuhn é aparente. A tentativa de relacionar saberes tão distintos – e por vezes tão complementares – é entendida por Laudan como problemático, sobretudo porque, como bem assevera, os departamentos continuam sendo bastante distintos – e também distantes. Propor um conhecimento pautado na relação entre filosofia, história e ciência não nos parece algo fácil.

Mas, se por um lado as divergências entre os departamentos de filosofia da ciência e da história da ciência são aparentes, por outro o trabalho fundido entre esses dois tópicos se faz necessário. A constatação apresentada por Laudan (2000) não nos parece suficiente para refutar as ideias de Kuhn, pelo contrário, reforçam ainda mais a crítica kuhniana em relação ao trabalho científico.

Não há dúvidas de que o modelo pretendido por Kuhn está sujeito a muitas críticas, sobretudo pela forma que ele pode ser delineado. Não é um ciclo, pois se assim fosse, teria que ser possível considerar que vez ou outra a ciência volta ao mesmo estágio. Mas também não é uma linha completamente conectada de fatos que se relacionam em grau de especificidade cada vez maiores, pois teria que ser considerada a ideia de acúmulo e de progresso, essa última completamente avessa às ideias kuhnianas.

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