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3. O POSFÁCIO DE 1969 COMO PARTE DA ESTRUTURA

3.2. OS PARADIGMAS COMO COMPROMISSOS DE GRUPO

O aspecto que tratarei a partir de agora é o que recebe maior ênfase por Kuhn em seu

Posfácio. Nele, as áreas complementares abarcadas pelo paradigma revelam-se em uma noção

mais madura em relação ao texto original, na qual, para designar paradigma, Kuhn utiliza o termo “matriz disciplinar” (KUHN, 1992: 226). Esse termo serve para designar a finalidade da utilização do paradigma no contexto da produção científica, que é de servir como uma espécie de fonte da qual emanam as diretrizes da atividade científica.

Em sua relação com a comunidade da qual faz parte, o paradigma enquanto matriz disciplinar é como uma “posse comum aos praticantes de uma disciplina particular” (KUHN, 1992: 226).

Segundo o Posfácio, as diretrizes emanadas do paradigma enquanto matriz disciplinar são aqueles descritos na figura seguintes:

FIGURA 3.1 – Conceitos atrelados à matriz disciplinar

Cada conceito atrelado à matriz disciplinar compreende um espaço no qual o fazer científico está concentrado em regras gerais de caráter metodológico, que orientam a ação das comunidades científicas em sua prática e também nas delimitações disciplinares.

Segundo Kuhn, “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 1992: 219). A definição do paradigma agora é apresentada por Kuhn a partir de uma relação de complementaridade, a qual relaciona o trabalho da comunidade científica com o desenvolvimento do paradigma. Dessa forma, uma comunidade não pode existir sem um paradigma que a congregue e um paradigma não pode existir sem uma comunidade que o compartilhe.

Fica mais simples compreender essa noção se observarmos a importância do trabalho empreendido no período de ciência normal para o conjunto do paradigma. Uma vez que o paradigma é limitado quando de seu surgimento, o trabalho de ciência normal consiste em alargá-lo, o que implica, necessariamente, em um sucessivo conjunto de testes com essa finalidade. Complementar a isso, o que guia o trabalho da ciência normal é o paradigma que está sendo alargado, ao mesmo tempo que fornece condições metodológicas para o trabalho de ser continuamente inspecionado.

Nesse elemento, subjaz um provável problema: as condições para que possam ocorrer testes são fornecidas pelo paradigma que está em uso. Mas é nesse processo de caráter duplo que o paradigma é desenvolvido, tornando-se o elemento que traduz as expectativas científicas na descrição do trabalho empírico empreendido pela ciência. A duplicidade empreendida é uma construção contínua do próprio paradigma com base nele mesmo.

MATRIZ DISCIPLINAR

Generalizações simbólicas

Crenças em determinados modelos

Valores

As implicações diretas dessa metodologia encontram dificuldades quando analisadas sob a ótica de que deveria haver um método externo para averiguar a validade do que está sendo proposto – conforme o método popperiano, por exemplo. No entanto, aí haveria uma circularidade ao infinito, pois seria necessário um “método verificador do método”, por assim dizer, e na sequência, um outro método e assim sucessivamente. No caso do paradigma, ele por si só, já é tomado como suficiente, o que também gera seus problemas, como observam bem os críticos do modelo kuhniano.

Quanto à relação da comunidade com um paradigma, a duplicidade mostra que no mesmo instante em que um paradigma é definido pelo uso que uma comunidade científica faz dele, a comunidade científica também é definida pelo paradigma que é compartilhado.

Quando falamos em comunidade, compreendemos uma parcela do grupo de humanos que estão numa relação de proximidade por possuírem algo em comum. Essas pessoas estão agrupadas por razões que as fazem compartilhar expectativas e entendimentos que, comuns, estão sendo alterados conforme regras que são criadas em seu interior. As comunidades científicas apontadas por Kuhn não são diferentes, compartilham informações, perspectivas e criam suas próprias regras. O desenvolvimento da ciência em comunidades implica o agrupamento de indivíduos pelo compartilhamento de ideias, de expectativas e interesse.

Para Kuhn, uma comunidade científica é formada por participantes de uma especialidade científica, que foram submetidos a uma iniciação profissional numa extensão sem precedentes em uma determinada área. A formação de uma comunidade é um processo amplo, que implica a vinculação com uma disciplina específica capaz de agregar interessados em discutir as questões que são suscitadas por ela.

A comunidade possui um objeto de estudo próprio, ainda que este também possa ser considerado por outras comunidades, que podem trabalhá-lo com um enfoque diferente. Nesse caso, o que dá a característica de comunidade é a abordagem empreendida. Isso quer dizer que se cada abordagem pode significar um grupo, a noção de paradigma presente no Posfácio revela um entendimento de que podem existir diversos paradigmas ao mesmo tempo, o que não esteve claro na edição de 1962.

Como existem formas diversas de discutir o mesmo aspecto de um objeto de investigação científica, a determinação de uma disciplina de interesse por parte do cientista implica uma série de fatores, aos quais o cientista foi submetido por longo tempo. A submissão do cientista em uma determinada área de interesse é como um processo educacional, no qual

um paradigma servirá de escola. Tal aspecto da formação do cientista geralmente ocorre em seu processo de formação profissional.

As características que marcam o surgimento e o desenvolvimento de um paradigma estão relacionadas ao amadurecimento de uma ciência, i.e., as condições fundamentais para a existência de um paradigma relacionam-se à capacidade que uma comunidade tem em lidar com ele, fazendo dele um elemento necessário para aglutinar os direcionamentos necessários para o contínuo desenvolvimento dessa ciência. Dessa forma, a ciência sem um paradigma é considerada como imatura.

Inclua-se na ideia de ciência amadurecida a capacidade que os cientistas têm em lidar com a existência de paradigmas e sua função no desenvolvimento da ciência. A duplicidade proposta pela existência de um paradigma pode confundir o cientista em seu fazer habitual, principalmente por representar, de alguma forma, que o trabalho que ele desenvolve poderá ser suprimido quando da maturidade de uma disciplina científica.

Essa maturidade implica: a) a capacidade de uma ciência desenvolver um paradigma; e b) o contínuo esforço de relacionar-se com o paradigma - ainda que de forma não consciente - na tentativa de esclarecer os problemas que surgem ao longo da pesquisa científica.

A ampliação do modelo predito por Kuhn agora conta com uma divisão da história da ciência sob a ótica da maturidade e da imaturidade. Essa ideia está explicitada a partir de duas definições de ciência: ciência pré-paradigmática e ciência pós-paradigmática. Entre os dois períodos encontra-se o paradigma que é complementar às duas fases. Seu surgimento se dá no instante em que o período pré-paradigmático focaliza o trabalho na eleição de um paradigma, o qual passará a caracterizar o fazer científico em um período seguinte superior.

Em linhas gerais, poderemos observar esse desenvolvimento a partir do esquema indicado na figura que segue.

FIGURA 3.2 – O desenvolvimento da ciência segundo o Posfácio de 1969

No esquema apresentado, a ciência é demonstrada como uma atividade constante, na qual etapas se substituem em direção ao desenvolvimento de um paradigma. A ciência pós- paradigmática desenvolve-se por meio de um paradigma e seu trabalho consiste em explorar os limites dele. Embora na forma inicial a ciência pré-paradigmática não possua um paradigma, segundo a compreensão de Kuhn, sua organização desemboca na construção de um.

Importante notar que mesmo na ciência pós-paradigmática o paradigma continua tendo papel de destaque. No entanto, o esquema não pode estar completo, tendo em vista que ele retrata a ciência de forma geral a partir de sua divisão entre imatura e madura, e não da sucessão de paradigmas, como acontece no período de ciência pós-paradigmática.

O que viria depois da ciência amadurecida é algo que não pode ser previsto segundo o modelo. Qualquer previsão nesse sentido acarretaria numa tentativa de defender que a ciência em algum momento ou seria substituída por outro tipo de conhecimento ou o que achamos ser uma ciência madura na verdade seria considerada no futuro como imatura.

A ciência pré-paradigmática se organiza numa tentativa de estabelecer limites em uma disciplina, determinando seu objeto de estudos. Esse caminho acaba permitindo a existência de algo que perpassa toda essa organização, que é o paradigma. Este, por sua vez, fornecerá as diretrizes para que tenhamos uma “ciência paradigmática” ou “amadurecida”.

CIÊNCIA PRÉ-PARADIGMÁTICA

FORMA INICIAL

Diversas escolas competem pelo domínio de um campo de estudos

determinado

TRANSIÇÃO

Redução do número de escolas (em geral para

uma única) Prática científica esotérica e orientada para a solução de quebra-cabeças PARADIGMA CIÊNCIA PÓS-PARADIGMÁTICA Natureza do paradigma alterada em relação ao momento inicial Pesquisa normal orientada para a resolução de quebra- cabeças

A ideia de matriz disciplinar parece completar a noção de ciência amadurecida, que agora conta com um elemento capaz de fornecer expectativas para o trabalho de investigação científica, normatizando metodologicamente essa atividade e agrupando sujeitos em comunidades que partilham as mesmas perspectivas de trabalho. A maturidade, portanto, consiste em ter um paradigma como orientador.

Embora a ideia de matriz disciplinar denote a intenção de Kuhn em mostrar que a comunidade é aglutinada de forma especializada em uma disciplina, o caráter disciplinar também deve ser definido como o conjunto de regras que são utilizadas pela comunidade e norteiam as atividades desta, sejam eles de caráter metodológico ou de valores compartilhados.

Todos ou quase todos os objetos de compromisso grupal que meu texto original designa como paradigmas, partes de paradigmas ou paradigmáticos, constituem essa matriz disciplinar e como tais formam um todo, funcionando em conjunto (KUHN, 1992: 227).

Sobre as partes integrantes da matriz disciplinar (“generalizações simbólicas”, “crenças em determinados modelos”, “valores” e “exemplares”) deve-se destacar, em primeiro lugar, que as “generalizações simbólicas” constituem elementos comuns no interior do paradigma e são complementares a ele. Tais generalizações possibilitam pontos de apoio para os membros do grupo, tanto de caráter técnico, i.e., aquele caráter que permite manipulações da teoria, quanto de caráter matemático, que permite a construção de equações que possam ser compartilhadas.

Cada membro de uma comunidade organizada por meio de uma disciplina pode ter ideias particulares sobre o objeto de estudo. Todavia, cada ideia nova deve estar de acordo com as generalizações simbólicas compartilhadas pelo grupo, sob pena de serem consideradas como uma abordagem diversa, o que implica no não pertencimento daquela disciplina. Tais generalizações podem sofrer alterações com o tempo, todavia, seu caráter legislativo e definidor continua, sendo de extrema importância para a identidade de uma comunidade.

As “crenças em determinados modelos” são comuns ao paradigma. Fornecer modelos é uma das funções básicas do paradigma. Tais modelos servem de base para a investigação científica e podem variar de intensidade quanto a sua aplicabilidade. Embora possam variar de intensidade, os modelos fornecem uma série de compromissos teóricos, aos quais os membros

que compartilham o paradigma se submetem, orientando-se por meio deles para a construção de definições sobre as observações realizadas.

Quando surgem problemas que possam ser identificados como pequenas anomalias, os membros da comunidade, entretanto, não precisam compartilhar modelos heurísticos de resolução, o que acarreta a busca por soluções de formas e em níveis variados. Neste instante pode ocorrer que alguns modelos heurísticos não consigam resolver os problemas oriundos do alargamento do paradigma, o que não implica necessariamente na iminência de sua superação. Via de regra, haverá uma superação do paradigma somente quando esgotadas as possibilidades empreendidas pela comunidade na resolução de anomalias.

Os “valores” constituem a parte mais complexa da matriz disciplinar, pois são compartilhados de forma mais ampla e por isso podem sofrer divergências quanto a sua aplicação. Os valores contribuem de forma bastante impactante para o sentimento de participação da comunidade e implicam em como o cientista deve desenvolver sua disciplina.

O foco principal para tal aspecto é sua utilização no julgamento de teorias completas. Ou seja, é por meio desse aspecto da matriz disciplinar que as teorias são julgadas. Por conta do sentimento de participação emanado dos valores, os cientistas têm uma forte tendência a defende-los.

Os valores compartilhados podem ser determinados mesmo havendo divergências de aplicação pelos membros do grupo, o que gera formas diversas de se relacionar com eles. O valor em si é maior que sua utilização, o que garante sua aplicabilidade em processos nos quais estão sendo julgadas teorias que explicam o mesmo fenômeno.

Para que uma teoria seja aceita, acontece no interior da comunidade um constante processo de julgamento que leva em consideração elementos como: simplicidade, coerência interna e plausibilidade. Para que julgamentos possam ser executados, é necessário que algo em comum possa ser tomado como referência. Para que os julgamentos possam se dar de forma satisfatória, é necessário a existência de outro elemento, que Kuhn chama de “exemplares” (KUHN, 1992: 231-232).

Segundo Abrantes,

Por exemplares Kuhn entende um conjunto de problemas e de soluções- padrão, que materializam o consenso da comunidade científica, guiando sua prática num período de ciência normal e que são transmitidos pelos

manuais durante a formação dos cientistas. Espera-se que, por modelagem, o cientista em seu trabalho científico normal, consiga resolver novos problemas, pautando-se pelas soluções já estudadas anteriormente para problemas similares (ABRANTES, 1998: 63).

Os exemplares são soluções concretas encontradas pela comunidade desde o início do trabalho empreendido. Máximas relacionadas à gravitação dos planetas, o ciclo das chuvas ou regularidades climáticas em virtude de concentrações específicas de gases na atmosfera, podem ser utilizados como exemplos que fornecerão dados relativamente seguros para a construção de modelos de trabalho.

Os exemplares indicam como o trabalho científico deve ocorrer, definindo normas e limites nas abordagens de uma comunidade. Sem tais exemplares, não poderia haver na ciência uma espécie de compêndio ou jurisprudência sobre como os dados podem ser analisados em situações corriqueiras.

À medida em que o treinamento do cientista acontece, as generalizações simbólicas são mais especificadas por meio de conjunto de exemplares. Isso pode ser observado pela análise do currículo de um cientista em formação. Prossegue-se didaticamente das questões mais simples às questões com maior nível de complexidade. Se considerarmos que o cientista está em constante formação, essa noção encontrará especial relevância na análise que já empreendi sobre o uso de manuais na produção científica, posto que eles compõem uma forma bastante eficaz na divulgação de exemplares. Em resumo, apresento na figura a seguir um esboço de como se desenvolve a matriz disciplinar.

FIGURA 3.3 – Matriz disciplinar ampliada

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