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Alcir Lenharo discute a questão da “produção social da memória” por meio da biogra ia de Nora Ney e Jorge Goulart, personagens que ele considerou emblemáticos do esquecimento geral destinado aos artistas que foram sucesso de público nos anos 1950. Na sua visão, os estudos da música popular estavam seguindo uma tendência similar à do público em geral de desconsiderar a produção dos chamados “anos dourados”. O autor aponta a biogra ia de Noel Rosa, escrita por Carlos Didier e João Máximo,60 como texto que valoriza a produção musical

dos anos 1930, e o livro de Ruy Castro sobre a bossa nova61 como

exemplo de uma posição que coloca o gênero como marco de um salto qualitativo no campo da música popular. E se pergunta “o que sobrou para o período intermediário”, do qual pouco se fala e em geral se ressalta apenas “a euforia das ‘macacas de auditório’ e os escândalos” e rivalidades entre os cantores, não se atribuindo “importância musical a essa época”. O autor se propôs olhar para o período em sua singularidade, questionando as narrativas tradicionais por meio da pesquisa em vasto corpo documental cruzada com depoimentos dos biografados e outros. 62

O texto de Lenharo insere-se na perspectiva de uma História Cultural da música popular. O autor a irma claramente ter a

60 DIDIER, Carlos; MÁXIMO, João. Noel Rosa: uma biogra ia. Brasília: Linha Grá ica Editora/ Editora da UNB, 1990.

61 CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

intenção de fazer do seu texto “um recurso metodológico” por meio do qual procura “inovar em termos de recuperação do passado e de construção do conhecimento histórico”. Em suas palavras, não foi “a grande política, nem os grandes acontecimentos” que o atraíram “para a captura do espírito do tempo e o desvendamento cultural de uma época”, mas os cantores do rádio, “personagens incrivelmente a inados com seu tempo, com sua cultura, com suas transformações, com seus sonhos e realizações”. Seu trabalho tronou-se uma referência fundamental nos estudos sobre rádio e sobre um tempo em geral um tanto renegado pela historiogra ia e pelos estudos da música popular no Brasil de um modo geral. 63

Alcir Lenharo foi o orientador da dissertação de mestrado de Maria Marta Picarelli Avancini, Nas tramas da fama: as estrelas

do rádio em sua época áurea, Brasil anos 40 e 50.64 Essa pesquisa

acompanha o surgimento das estrelas do rádio a partir do inal da década de 1940. Considera que “os artistas ligados ao rádio são elevados à condição de estrelas por meio de mecanismos característicos da cultura e da comunicação de massa”, num processo que marca “a consolidação e a intensi icação” de seus “procedimentos e modos de funcionamento” no Brasil. Avancini discute dois tipos de abordagens que considera clássicas no debate sobre a radiofonia brasileira. De um lado, “a priorização da dependência do rádio às estruturas do poder econômico e político”, com consequente ênfase no sentido de dominação; de outro, “a possibilidade do rádio funcionar como autêntico canal de expressão popular, embora a determinação econômica não seja completamente descartada”. A autora cita como emblemáticos dessas posturas os trabalhos de Maria Elvira Federico e José

63 LENHARO, 1995, p.8-11.

64 AVANCINI, Maria Marta Picarelli. Nas tramas da fama: as estrelas do rádio em sua época áurea, Brasil, anos 40 e 50. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filoso ia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.

Ramos Tinhorão,65 que retraduziriam “abordagens consagradas

da cultura de massas, compreendendo-a, respectivamente, pela esfera da produção e do consumo”.Dialoga com as elaborações de Adorno, Eco e Morin, e também com o trabalho clássico de Miriam Goldfeder,66 para quem a dominação não se daria “de forma unívoca,

mas num movimento que quali ica como pendular: ora a cultura de massa funciona rigorosamente dentro do projeto de dominação que a orienta, ora responde às necessidades mais genuínas do público”.Rejeitando análises que considera generalizantes, Avancini procura identi icar a singularidade dos processos de constituição e funcionamento do circuito cultural, de práticas, sociabilidades e estéticas potencializadas em torno das estrelas do rádio nos anos 1940 e 1950. Procura demonstrar como, por meio de mecanismos de exposição dos artistas e, em especial, cantoras, criam-se determinadas iguras cujos per is combinam elementos ligados à vida privada delas, às músicas que cantam e a fatos que acontecem com elas. Segundo a autora, num processo “em que se cruzaram séries discursivas e sígnicas diversas, criam-se territórios que de inem modos de ser, comportamentos e sociabilidade que demarcam a chamada cultura do rádio” nos anos 1940 e 1950, delineando-se “uma estética historicamente demarcada”.67

Quando canta o Brasil: a Rádio Nacional e a construção de uma identidade popular 1936-1945, de Claudia Maria Silva de Oliveira, aborda o período anterior ao da dissertação de Avancini. Tem a proposta de pesquisar a construção de um

65 TINHORÃO, 1981; FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. História da comunicação: rádio e TV no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1982. Cf. AVANCINI, 1996, p.2-7.

66 GOLDFEDER, Miriam. Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. Publicação da dissertação de mestrado em Ciência Política Manipulação e participação: a Rádio Nacional em debate. Instituto de Filoso ia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1977.

modelo de radiodifusão e de uma linguagem radiofônica variada e eclética no período a partir das atuações dos artistas da Rádio Nacional. Para demonstrar o que considera criações individuais “improvisacionais” de uma “nova linguagem radiofônica”, a autora analisou quatro modalidades artísticas da Rádio Nacional por meio das iguras de Orlando Silva, Radamés Gnattali, Almirante e da dupla Jararaca e Ratinho. Discute também os dois modelos de radiofonia que se delinearam nos anos 1930, que denomina de “modelo erudito-educativo, difundido pela Rádio do Ministério da Educação” e “modelo popular-comercial”. A autora toma Mikhail Bakhtin como referencial para a reconstrução do per il do artista popular, situando-o como personagem do universo cômico, e Roberto da Matta, para a reconstrução do universo do cantor e do pro issional de rádio em geral. Oliveira cita também o trabalho de Miriam Goldfeder e os textos de Sérgio Cabral e Ruy Castro, dentre outras biogra ias. Compara o que considera a “linguagem inovadora da Rádio Nacional” e a “linguagem conservadora da radiodifusão o icial” e conclui que a nova linguagem emergiu, cresceu e se impôs “porque era a síntese de todas as vozes que compunham o universo social do Brasil”. Para a autora, “a Rádio Nacional foi o espaço de criação das várias heterogeneidades que compunham a cultura brasileira e também o espaço para difusão nacional dessa cultura”.68

A dissertação de mestrado de Raimundo Dalvo da Costa Silva,

Cotidiano, memórias e tensões: a trajetória artística das cantoras do rádio de Salvador de 1950 a 1964, tem por objetivo “recuperar a história das cantoras do rádio de Salvador”, “mostrando sua trajetória artística e cultural” na cidade. “Procura compreender sua história de vida até se formarem como cantoras do rádio e como vivenciaram e apropriaram-se dos ambientes artísticos”

68 OLIVEIRA, Cláudia Maria Silva de. Quando canta o Brasil: a Rádio Nacional e a construção de uma identidade popular (1936-1945). Dissertação (Mestrado em História) – Ponti ícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996, Resumo, 6-7 e 44.

de Salvador. A pesquisa foi construída “a partir, basicamente, das memórias das cantoras e de outras pessoas que vivenciaram a cidade e os tempos áureos do rádio”, procurando mostrar “as experiências vividas pelas cantoras como também o cenário social de Salvador”, dos anos 1950, “quando o rádio atingiu o seu ápice, e conclui na década de 1960, momento em que o rádio passou por um processo de mudança e extinção dos seus programas de auditório em razão do golpe militar de 1964.” Trata-se de um trabalho de memória social, na linha da história oral, no qual a questão musical propriamente dita não está no primeiro plano. 69

Sobre a vida musical de Salvador, no mesmo momento histórico, mas com foco numa prática instrumental, existe a dissertação de mestrado Violão, violonistas e memória social nas

décadas de 50 e 60 em Salvador, do excelente guitarrista e violonista Carlos Edmundo Chenaud Drehmer (Carlito), estudo sobre “a memória do violão, as tradições musicais e a experiência dos violonistas em Salvador, nas décadas de 1950 e 1960”. Com base em depoimentos orais de violonistas que atuaram naquele período e em pesquisas na imprensa de época, o autor re lete sobre “a memória social, a cultura violonística e a experiência social desses personagens que viviam e atuavam em Salvador, acentuando um recorte dos territórios, em um trajeto intermediado entre a cidade, os músicos, o trabalho e os meios de difusão”. Músico de formação e atuação pro issional, professor da Universidade Católica de Salvador, Carlos Drehmer estuda, sem valorações ou hierarquias, as práticas violonísticas das tradições musicais que denomina de “formal-erudita” e de “informal-popular”. Formal e informal dizem respeito aos modos de aprender e tocar, e o autor aponta conexões e circularidades entre essas práticas. Uma referência importante

69 SILVA, Raimundo Dalvo da Costa. Cotidiano, memória e tensões: a trajetória artística das cantoras do rádio de Salvador de 1950 a 1964. Dissertação (Mestrado em História) – Ponti ícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999, p.7, 16 e 110.

para o trabalho foi Cantores do Rádio, de Alcir Lenharo, como forma de se olhar a história social da cultura e a questão da memória e do esquecimento. Esquecimento que, para o autor, “é maior no caso dos músicos instrumentistas, violonistas, que não tiveram o papel de destaque dos cantores e/ou solistas”. Drehmer aponta que a historiogra ia da música raramente se refere aos instrumentistas acompanhantes ou mesmo solistas que icaram distantes dos eixos nacionais de difusão. O autor mostra que na “prática de esquecimento em relação à música instrumental”, especialmente àquela da tradição informal-popular, muito elementos se perderam “tais como técnicas, arranjos e composições” daqueles que não tiveram oportunidade de gravar suas performances. Entretanto, acredita que parte dessas tradições sobreviva incorporada nas formas de tocar dos violonistas que os sucederam. O trabalho coloca ênfase nas práticas musicais, nos modos de aprender e tocar o instrumento, de sobreviver como músico e de atuação num momento em que estas práticas estavam em transformação.70