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A pesquisa sobre as “origens”: momento formativo da música popular no Brasil

Alguns trabalhos situam sua periodização no inal do século XIX e começo do século XX, momento de formação e consolidação dos primeiros gêneros de música popular urbana no Brasil. Em Os tangos brasileiros. Rio de Janeiro: 1870-1920, Paulo Roberto Peloso Augusto aborda o surgimento de novos gêneros musicais na cidade do Rio de Janeiro, no período determinado, com enfoque nos tangos brasileiros − que ele utiliza no plural, “pela pluralidade de interpretações válidas” a partir dos diversos elementos rítmicos e sociais que entraram em sua composição − e suas conexões com o maxixe e a habanera. Segundo o autor, os tangos brasileiros não somente encobriam “os ritmos proibidos do maxixe”, interpretação que se tornou um senso comum sobre o gênero, mas também representaram “outras vertentes formais, como a havanera, com células rítmicas sincopadas, próprias da música brasileira”, tendo o nome tango brasileiro sido “dado ainda, indistintamente, a novos gêneros formais que surgiram no início do século XX”. Peloso Augusto reúne informações documentais sobre as origens do tango e da habanera. Em sua narrativa, essa última, popularizada em Havana, logo se difundiu pela Espanha. Seu ritmo característico no acompanhamento era o mesmo do tango, esse na origem uma dança mexicana, que se diferenciava basicamente da habanera apenas pela variação no andamento. Em ins da década de 1920, “a larga divulgação do

possível a elas, o que resultou em muitas citações. Uma vez que todos os trabalhos estão explicitamente mencionados, e é deles que se está falando, as referências foram agrupadas ao inal dos parágrafos, para não poluir demais o texto e di icultar a leitura.

tango argentino” no Rio de Janeiro “contribuiu para que o tango brasileiro, pouco a pouco desaparecesse, dada a ambiguidade do nome com aquela dança”. Por volta desse período, “o surgimento do samba despertou a preferência entre as camadas subalternas”.2

Esse é o único trabalho na área de História, no período que estamos analisando, a ter o foco central nesse momento criativo da música popular no Rio de Janeiro. Não por acaso, a tese de Peloso Augusto tem uma abordagem que tende para a Musicologia. O tema do surgimento dos gêneros de música popular carioca no inal do século XIX sempre despertou mais o interesse dos músicos, no meio dos quais é forte a tendência a discutir a origem desses primeiros gêneros de música popular brasileira e buscar denominações e de inições precisas de elementos estruturais que os diferenciem, tarefa di ícil e nem sempre viável. Conforme já observado, a Musicologia sempre incorporou esses primeiros gêneros de música brasileira como seu objeto de estudo, ainda que a inclusão dos gêneros que os sucederam e se constituíram em estreita ligação com o mercado seja um fenômeno mais recente. Assim, a pesquisa de Peloso Augusto veio somar-se a outros esforços empreendidos até então com o objetivo de compreender esses primeiros gêneros de música urbana popular no Brasil até então realizados na área de Música, a exemplo de A inϔluência da habanera nos tangos de Ernesto

Nazareth,3 ou mesmo em outras áreas, como Choro: a construção de

2 AUGUSTO, Paulo Roberto Peloso. Os tangos brasileiros: Rio de Janeiro. 1870-1920. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. 1996, p.144. Obs.: o autor prefere grafar com “v”: havanera. O aportuguesamento da palavra também pode ser “havaneira”. As três formas – habanera, havanera e havaneira – encontram-se dicionarizadas.

3 NASCIMENTO, Antonio Adriano. A inϔluência da habanera nos tangos de Ernesto Nazareth. 1990. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.

um estilo musical.4 Em Feitiço Decente,5 Carlos Sandroni apresenta

uma elaboração que se constituiu numa importante contribuição sobre a questão. O autor considera que os ritmos da habanera e do tango, assim como os gêneros musicais brasileiros no inal do século XIX, são variações surgidas nas Américas de uma estrutura fundamental derivada das concepções rítmicas da música africana. Assim, para o autor,

lundu, polca-lundu, cateretê, fado, chula, tango, habanera, maxixe e todas as combinações destes nomes, embora em outros contextos possam ter determinações próprias, quando estampados nas capas das partituras brasileiras do século XIX, nos informavam basicamente que se tratava de música ‘sincopada’, ‘tipicamente brasileira’.6

A historiogra ia tradicional da música no Brasil havia, até então, observado esse período formativo da música popular urbana no Brasil com o foco na vida musical da cidade do Rio de Janeiro. Em As sonoridades paulistanas: a música popular na

cidade de São Paulo. Final do século XIX ao início do XX,7 José

Geraldo Vinci de Moraes coloca o foco na cidade de São Paulo. A pesquisa teve por objetivo estudar o processo de construção e constituição da música popular urbana paulistana, entre o inal do século XIX e o inal da década de 1920. Com atenção para as “singularidades geradas” nas tramas histórico-sociais, Vinci de

4 PUTERMAN, Paulo Marcos. Choro: a construção de um estilo musical. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985.

5 SANDRONI, 2001. 6 SANDRONI, 2001, p.31.

7 MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas: a música popular na cidade de São Paulo. Final do século XIX ao início do XX. Dissertação (Mestrado em História) – Ponti ícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1989.

Moraes procura perceber, “de um lado, as contribuições que esse processo possa ter dado à instituição da música popular brasileira e, de outro, como os ritmos e sons da música popular brasileira, já consolidados, in luíram na produção da música urbana em São Paulo”.8 Por sua temática, abordagem na perspectiva da história

cultural e pesquisa de fontes primárias, este trabalho inovou em relação àquilo que vinha sendo feito de um modo geral em termos de narrativa histórica da música popular no Brasil, especialmente por não centrar a pesquisa na formação e desdobramentos da música carioca como música brasileira. Vinci daria continuidade a esse estudo em sua tese de doutorado Metrópole em Sinfonia:

história, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30.

Nesse estudo, o autor mostra como, num momento de grandes transformações numa cidade que passou da condição de provinciana à de metrópole moderna, três fatores incidiram na formação de uma poética musical paulistana diversi icada e eclética: “o ritmo intenso e contínuo de mudanças da cidade, a nostalgia dos imigrantes e desenraizados de todos os tipos e as tradições sertanejas”.9 Esses elementos contribuíram no

desenvolvimento de uma música paulistana que a historiogra ia tendia a não considerar relevante na constituição do que se chama genericamente de música popular brasileira. Vinci analisa como o samba paulistano não conseguiu se a irmar no meio urbano, restringiu-se a comunidades e seu espaço social foi sendo ocupado por uma música mais aproximada ao padrão do samba carioca. Estuda também o papel do rádio, como polo principal dos circuitos de produção e difusão cultural, na formação das sonoridades que compuseram a polifonia da cidade.

8 MORAES, 1989, p.VI.

9 MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997, p.251.

Precederam às pesquisas de Vinci de Moraes duas pesquisas realizadas em outras áreas sobre a música na cidade de São Paulo entre 1900 e 1930. A primeira delas, Samba na cidade de São Paulo

(1900-1930): contribuição ao estudo da resistência e da repressão cultural, de Iêda Marques Britto Hori. Esse trabalho, embora realizado na área de Ciências Sociais, tem per il historiográ ico: um recorte temporal, um problema histórico e uma narrativa como resposta. Segundo a autora, o trabalho “tem como inalidade maior contribuir para o estudo da resistência e da repressão cultural, ocupando-se de manifestações culturais desenvolvidas e mantidas por segmentos populacionais negros e mulatos ocorridas na cidade de São Paulo no período 1900-1930”. Como esse objetivo, buscou a reconstituição “de algumas destas manifestações, procurando delimitar os grupos sociais envolvidos, sua distribuição espacial, e, sobretudo, as circunstâncias em que tais processos se realizaram”, importando-se igualmente em “conhecer as reações surgidas ante tais manifestações, não só da população considerada como um todo, mas também e principalmente, por parte das camadas dirigentes”.10

A outra pesquisa a abordar a cidade de São Paulo no início do século XX foi Música na cidade em tempo de transformação: São Paulo,

1900-1930, de Alberto Ikeda. Esse trabalho também apresenta per il historiográ ico, na medida em que se propõe “responder a indagações decorrentes da constatação das pouquíssimas citações à cidade de São Paulo na historiogra ia da música popular no Brasil”. A partir da percepção de que a capital paulista atravessou nesse período grandes modi icações urbanas, Ikeda investiga “qual teria sido a ‘vida’ artístico-musical na cidade nesse período”, a ausência de destaque a artistas populares paulistas nos estudos de história da música popular e a própria ausência da música nos

10 HORI, Iêda Marques Britto. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): contribuição ao estudo da resistência e da repressão cultural. Dissertação (mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1981, p.3-4.

estudos sobre a história de São Paulo.11 Trata-se de uma pesquisa

historiográ ica feita por um músico, sem muitas referências diretas ao instrumental teórico próprio da História, mas com perspectiva crítica no trato com as fontes e documentos.12

Um aspecto mais especí ico desse momento formativo é o do desenvolvimento da prática instrumental e a possível formação de escolas técnico-estéticas em determinados instrumentos, tema interessante e pouco estudado, ao menos numa perspectiva historiográ ica. O trabalho de Sérgio Estephan, O violão instrumental

brasileiro: 1884-1924, aborda um período de a irmação do violão, instrumento fundamental na música brasileira, tanto naquela chamada de concerto quanto na música popular, e dá destaque para violonistas que seriam fundadores de uma “escola” do violão popular brasileiro: Quincas Laranjeiras, João Pernambuco, Américo Jacomino (Canhoto) e também Heitor Villa-Lobos. Para Estephan, o contato de Villa-Lobos com os músicos populares cariocas e com as sonoridades dos caboclos, sertanejos e habitantes das selvas brasileiras, “enriqueceu o universo técnico e composicional do violão brasileiro, com contribuições ainda não plenamente incorporadas pelo violão contemporâneo”.13 Apesar de focado no violão, o trabalho

também destaca compositores e instrumentistas como Ernesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga e Anacleto de Medeiros, com o objetivo de melhor caracterizar “aspectos da musicalidade do período”.14 11 IKEDA, Alberto Tsuyoshi. Música na cidade em tmpo de transformação: SãoPaulo, 1900-1930. Dissertação (Mestrado em Artes). Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1988, p.1-2. 12 Em 1995, Ikeda defendeu sua tese de doutorado em Comunicação, também na ECA-USP: Música política: imanência do social. Com o tempo, Alberto Ikeda desenvolveria estudos de abordagem etnomusicológica e se tornaria um dos mais respeitados pesquisadores do campo no país. 13 ESTEPHAN, Sérgio. O violão instrumental brasileiro: 1884-1924. Dissertação (Mestrado em História) – Ponti ícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999. p.4.

14 Em 2007, Estephan defendeu a tese de doutorado Viola, minha viola: a obra violonística de Américo Jacomino, o Canhoto (1889-1928), na cidade de