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A análise das relações entre música e política dentro de uma linha de pesquisa da história política foi uma vertente importante dos estudos historiográ icos sobre a música popular no período em foco na pesquisa que originou este livro. A dissertação de Antonio Pedro, Samba da Legitimidade, apresentada como parte da historiogra ia do samba, é também um trabalho de história política, conforme a irmado anteriormente. Mas essa linha de estudos teve um grande impulso com as pesquisas e a atuação docente de Arnaldo Contier.

Nessa linha de pesquisa, as relações entre a canção popular, especialmente o samba, e o primeiro governo de Getúlio Vargas constituíram-se num objeto privilegiado. Essa incidência de pesquisas nesse objeto pode ser atribuída ao cruzamento de diversas séries entre cerca de 1930 a 1945, que inspiraram estudos nessa linha: a elevação do status social do samba carioca, erigido à condição de música nacional; os debates em torno da identidade cultural brasileira; a modernização e industrialização do país; a ampliação do mercado de bens culturais, com destaque para o papel do rádio; o momento da história política do país; e a utilização da música − popular e erudita − como instrumento de propaganda política do regime. Ainda que o cruzamento dessas séries possa ser localizado nos anos da chamada Era Vargas, especialmente no que diz respeito à conexão dos eventos socioculturais com as políticas da ditadura varguista, alguns desses eventos remontam à década de 1920, como podemos deduzir dos estudos de Arnaldo Contier e Tiago de Melo Gomes. Um certo imaginário que se construiu acerca do primeiro governo Vargas, bem de acordo com os interesses políticos do trabalhismo e

seus herdeiros, como o momento de construção de um “Brasil Novo”, moderno e industrializado, e ponto de a irmação da nacionalidade e de uma identidade cultural, foi decerto um elemento que inspirou os pesquisadores a confrontar essa versão com a pesquisa histórica.

O outro período, em que se concentram os trabalhos que estudam as relações entre música e política, está compreendido entre os anos que vão de 1959, com o surgimento da bossa nova, até 1978, com o im da censura que se implantou após a radicalização da ditadura militar a partir da edição do AI-5 em dezembro de 1968. Naturalmente, os estudos estão distribuídos em distintas periodizações, dependendo do objeto especí ico de cada pesquisa. Generalizando, podemos dizer que as periodizações estariam entre 1959 e 1969, se pensarmos num momento de importantes transformações no campo de produção musical e nas suas relações com o mercado cultural, ou entre 1968 e 1978, se o objeto principal da análise for a censura do regime militar e as manifestações na canção popular em face dessa realidade.

Com sua periodização de inida no primeiro governo de Getúlio Vargas, temos O combate ao samba e o samba de combate: música,

guerra e política (1930-1945),26 de João Ernani Furtado Filho. O objetivo

do autor nessa pesquisa é articular as críticas ao samba e aos demais gêneros de música popular correlatos em torno das questões políticas do período, bem como discutir a utilização dessa mesma música popular anteriormente criticada como parte da propaganda governamental em torno da participação do país na Segunda Guerra Mundial. Discutindo a posição dos compositores frente a essas questões, Furtado Filho vai também abordar temas como a malandragem, o elogio ao trabalho e a censura no Estado Novo.27

26 FURTADO FILHO, João Ernani. O combate ao samba e o samba de combate: música, guerra e política (1930-1945). Dissertação (Mestrado em História) – Ponti ícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.

27 O autor deu continuidade a essa pesquisa em sua tese de doutorado em História, já fora da periodização deste estudo. FURTADO FILHO, João Ernani. Um Brasil brasileiro: música, política, brasilidade (1930-1945).

A censura será o tema central de Sinal fechado: a música

popular brasileira sob censura (1937-1945 / 1969-1978), de autoria de Alberto Moby. O trabalho se propõe a fazer uma análise comparada do papel da censura no Estado Novo e no regime militar, procurando identi icar qual foi a política desses regimes autoritários para a cultura em geral e a música em particular, quais seus objetivos e quais foram as posições dos compositores frente ao regime e à censura. O autor procura demonstrar que o Estado Novo e o regime militar, ainda que apresentassem “propostas semelhantes de Estado-nação baseadas em pressupostos autoritários e antiliberais”, tinham projetos e práticas distintas em relação às artes e à música popular. Assim, para o autor, querer aproximá- las para além de uma generalização enquanto autoritarismos, seria “atropelar as especi icidades históricas de cada um dos dois regimes”, uma vez que se tratam de “dois ‘autoritarismos’” distintos para os quais não se poderia utilizar “os mesmos parâmetros, baseados numa conceituação meramente abstrata de ‘autoritarismo’ ou de ‘ditadura’”. O trabalho de Moby concentra-se na produção da tradição do samba carioca e na MPB, sigla que o autor procura situar dentro de uma perspectiva mais restrita, ao contrário de outros trabalhos precedentes e contemporâneos que usavam a sigla MPB como sinônimo de música popular brasileira, o que não é preciso, como veremos adiante. 28

A tese de doutorado de Marcos Napolitano, Seguindo a

canção: engajamento político e indústria cultural na trajetória da música popular brasileira (1959-1969), também um estudo da

Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

28 MOBY, Alberto. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-1945/1969-1978). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1993. Citações retiradas do livro homônimo: MOBY, Alberto. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-1945/1969-1978). 2. ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p.165 e 170.

história política do período, mas com o foco claramente colocado na música popular, aborda “as diversas formas de engajamento político e crítica cultural assumidas pela canção” popular brasileira “entre o surgimento da bossa nova e a diluição do tropicalismo”. O autor apresenta a tese de que a MPB “traduziu projetos e contradições dos artistas e intelectuais envolvidos de alguma forma com o paradigma ‘nacional-popular’”, entendido “como uma cultura política”, ao mesmo tempo em que “esteve no epicentro da reorganização da indústria cultural brasileira, tornando-se um dos seus produtos mais rentáveis”.29 Argumenta que, nesse processo,

a MPB transformou-se numa instituição sociocultural com lugar e espaço social bem de inido. Esse trabalho, assim como outras produções de Napolitano mencionadas ao longo deste livro, tornou- se referência importante nos estudos do campo.

Sobre a MPB, temos ainda A MPB em movimento: música,

festivais e censura, dissertação de mestrado de Ramon Casas Vilarino. O objetivo dessa pesquisa foi analisar os primeiros anos da ditadura implantada no Brasil com o golpe militar de 1964. Segundo o autor, a música “tornou-se o fio condutor da análise” por apresentar-se “como uma fonte abundante, atrativa e reveladora”. O autor afirma ter procurado demonstrar que numa sociedade dividida “entre exploradores e explorados há uma disputa por posições, lugares e situações, onde o que está em jogo, em última instância, é, de um lado, a permanência ou até o aumento dessa exploração e, de outro, a diminuição ou o fim dessa condição”. Assim, o trabalho tem uma perspectiva claramente comprometida com uma posição política de esquerda, que pode ser localizada, por exemplo, na afirmação

29 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na trajetória da música popular brasileira (1959- 1969). 1999. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999b. p.s/n-resumo.

de que “a MPB é um movimento no interior da música popular brasileira, que travou o bom e necessário combate”.30 O trabalho

tem uma sequência cronológica de eventos bem organizada, que pode ser útil nesse sentido, mas toda a reflexão sobre eles está centrada na ideia da MPB como resistência à ditadura e à exploração capitalista.

Dentre os trabalhos orientados por Arnaldo Contier, encontra-se a tese de doutoramento de Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, Fundamentos histórico-políticos da música nova e da

música engajada no Brasil a partir de 1962: o salto do tigre de papel,31

estudo que também tem o foco nas conexões entre estética musical e projetos políticos e ideológicos, mas num outro momento histórico. Olhando para o campo de produção erudito, a pesquisa investiga as noções de história e política que sustentaram os projetos de política cultural dos músicos da vanguarda dos anos 1960, reunidos em torno do grupo Música Nova, até o seu desdobramento em direção a uma música politicamente engajada. Em função das características do estudo, a música popular vai aparecer de maneira muito secundária na tese que, entretanto, oferece muitos elementos para o entendimento das polêmicas estético-políticas das esquerdas nos anos 1960, que tiveram in luência marcante na música popular, e é representativa de um momento da pesquisa sobre música na universidade brasileira.

O foco numa certa linhagem da música popular urbana brasileira articulada em torno do samba e expressa na sigla MPB seria criticado por Paulo Cesar de Araújo em Eu não sou cachorro,

não: música popular cafona e ditadura militar, dissertação de mestrado defendida na Unirio em 1999. O objetivo dessa pesquisa

30 VILARINO, Ramon Casas. A MPB em movimento: música, festivais e censura. Dissertação (Mestrado em História). Pontifeicia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1998. As citações foram retiradas do prefácio da 5ª edição da publicação do livro homônimo: São Paulo: Olho d’Água, 2006, p.6-7.

foi analisar a produção musical chamada de “brega” ou “cafona”, e discutir suas implicações com o regime militar e a censura. Com a palavra “cafona”, o autor se refere “àquela vertente da música popular brasileira consumida pelo público de baixa renda, pouca escolaridade e habitante dos cortiços urbanos, dos barracos de morro e das casas simples dos subúrbios de capitais e cidades do interior”; utiliza a palavra entre aspas porque ela “contém um juízo de valor impregnado de preconceitos” com os quais ele não compartilha. Araújo considera que artistas populares como Paulo Sérgio, Odair José, Benito di Paula e até mesmo a dupla Dom e Ravel, que icaram fortemente estigmatizados como porta-vozes musicais do regime militar, teriam desempenhado um papel de resistência do ponto de vista político e social, nunca ressaltado, ou simplesmente ignorado pelos analistas, críticos, pesquisadores e historiadores da nossa música, que seriam pródigos em assinalar a “ação de combate e protesto empreendida por diversos compositores da MPB”,32 entendida num sentido mais

restrito. Como objetivo não declarado, o autor faz uma revisão da narrativa hegemônica sobre o período. A irma que

por meio da análise da construção social da memória é possível identi icar de que maneira icou cristalizada em nosso país uma memória da história musical que privilegia a obra de um grupo de cantores/compositores preferido das elites, em detrimento da obra de artistas mais populares.33

Numa linha de argumentação que tem o caráter de polêmica aberta com a hegemonia da linhagem samba-bossa-MPB, Paulo

32 ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: memória da canção popular “cafona” (1968-1978). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Citações retiradas da publicação da dissertação: Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003, p.17-21.

Cesar de Araújo faz uma contundente crítica à seleção do repertório da música popular na pesquisa acadêmica, trazendo outros discursos musicais para a re lexão da história política e social. Essa discussão proposta por Araújo será abordada e desenvolvida na parte 2 deste livro. Uma versão do trabalho foi publicada no ano 2000 pela Editora Record e transformou-se num dos maiores sucessos editoriais da produção acadêmica do campo.34

A primeira pesquisa de pós-graduação realizada na área de História no Rio de Janeiro sobre música popular foi defendida na UFRJ em 1989, Uma estratégia de controle: a relação do poder do

estado com as Escolas de Samba do Rio de Janeiro no período de 1930 a 1985, dissertação de mestrado de José Luiz de Oliveira. O objeto da pesquisa localiza-se “nas várias formas de intervenção direta ou indireta do Estado” nas escolas de samba cariocas, visando “demonstrar o caráter político-ideológico das relações mantidas entre o poder do Estado e as manifestações populares”, com especial atenção para os des iles que se realizaram durante o regime militar, período que o autor chama de “República Autoritária”. Oliveira considera que estas relações entre o poder estatal e as escolas de samba “traduzem as pressões exercidas pelo Estado e as resistências dos setores populares num per il que re lete, também, as mudanças políticas e ideológicas ocorridas na sociedade brasileira ao longo do período”. Para o autor, ao longo de “uma mudança gradual da relação entre sambistas”, a princípio perseguidos e marginalizados, e aparelho repressivo do Estado, as escolas internalizaram progressivamente uma “condição de colaboradoras voluntárias das elites dirigentes”, que se materializava nos enredos “nacionais” e sem críticas à ordem política, social e econômica, num acordo tácito que envolvia as subvenções estatais. “A ascensão do

34 Em 2006, Paulo Cesar de Araújo publicou o livro Roberto Carlos em Detalhes pela Editora Planeta do Brasil, biogra ia não autorizada, que motivou uma batalha judicial com o cantor que resultou na proibição da distribuição da publicação, em episódio amplamente divulgado e discutido na impressa diária.

des ile das escolas de samba ao lugar de principal manifestação carnavalesca fez-se acompanhar de todo um processo de elitização” do evento, cujo “caráter cada vez mais luxuoso e ostentatório” tornou elevadíssimos os custos inanceiros, decorrendo daí uma aproximação progressiva entre “algumas das principais escolas e o mundo da contravenção”. Com as transformações político- sociais ocorridas a partir de 1945 e especialmente após o golpe de 1964, desenvolveu-se paulatinamente a ambiguidade do sentido dos enredos dos des iles. Como exemplos mais extremos, o autor aponta a postura “chapa branca” da Beija-Flor de Nilópolis, de exaltação à ordem constituída nos carnavais de 1973, 1974 e 1975 e, por outro lado, os enredos de contestação política da Caprichosos de Pilares nos anos 1980.35 O trabalho traz para a área de História

uma questão que já havia sido abordada em pesquisas de outras áreas, especialmente Antropologia.36