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Naturalmente, não nós propomos aqui a convocar o conjunto das obras consagradas por historiadores, filósofos e cientistas sociais ao racismo, inclusive o antissemitismo, e o antirracismo. Seria impossível e, desde já, nos declaramos incompetentes – não lemos sequer todos os títulos importantes, sobre o tema. Não obstante, talvez possa ser útil situar nosso projeto em relação a grandes questões que percorrem este campo de estudos. São: de que falamos, isto é, o que é o racismo? Qual é sua história, sua cronologia? Inclui ou não o ódio aos judeus (“antissemitismo”)? Existe um racismo sem raças, ou seja, pode a noção de “racismo” conservar sua pertinência, apesar do declínio da crença na ideia de “raças humanas”? Enfim, existem valores comuns compartilhados por todos os antirracistas, todos os adversários do racismo?38

38 O próprio P.-A. Taguieff evoca este contexto historiográfico, no sentido amplo, isto é, além das

pesquisas propriamente históricas, no avant-propos de seu Dictionnaire historique et critique du

racisme (Paris: PUF, 2013, 1964 páginas). Muitos artigos do dicionário são suscetíveis de uma leitura

historiográfica. O historiador americano George M. Fredrickson escreveu um livro sintético, Racism.

A Short History (Princeton: Princeton University Press, 2002), que inclui um instigante suplemento, The Concept of Racism in Historical Discourse. Consultamos em particular as obras seguintes.

Colette Guillaumin, L’idéologie raciste. Genèse et Langage actuel. Paris e La Haye: Mouton, 1972. Léon Poliakov, Hommes et bêtes. Entretiens sur le racisme. La Haye: Mouton, 1975. George L. Mosse, Toward the Final Solution. A History of European Racism. New York: Howard Fertig, 1997 (1978). Albert Memmi, Le Racisme. Paris: Gallimard, 1982. Michael Banton, Racial Theories. Cambridge: Cambridge University Presse, 1987. Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Race,

nation, classe. Les identités ambiguës. Paris: La Découverte poche, 1997 (1988). Tzvetan Todorov, Nous et les autres. La réflexion française sur la diversité humaine. Paris: Le Seuil, 1989. Ivan

Hannaford, Race. The history of an Idea in the West. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1996. Neil MacMaster, Racism in Europe 1870-2000, New York: Palgrave, 2001. Ali Rattansi,

Racism: A Very Short Introduction. Oxford, Oxford University Press, 2007. Pap Ndiaye, La condition noire: Essai sur une minorité française. Paris: Gallimard, 2009. Claude Liauzu, Colonisations, migrations, racismes: Histoires d'un passeur de civilisations. Paris: Syllepse, 2009. Jean-Frédéric

Schaub, Pour une histoire politique de la race. Paris: Le Seuil, 2015. Race, racisme, discriminations.

Anthologie de textes fondamentaux. Org. Magali Bessone e Daniel Sabbagh, Paris: Hermann, 2015

(trata-se de uma instigante apresentação do debate norte-americano). De propósito, deixamos de lado o campo dos estudos brasileiros sobre o tema, embora tenhamos lido algumas das obras

Todos os autores concordam sobre a dificuldade de fixar os limites do racismo. Se o conceito for alargado demais, se dissolve na xenofobia, na hostilidade ao outro, que parece de todos os tempos e de todas as civilizações. O racismo, portanto, se naturaliza, parece pertencer à natureza do homem, e é o antirracismo que se torna extraordinário. A perspectiva inversa limita o racismo aos anos 1840- 1940, ao dito “racismo científico”, isto é, com pretensão científica. É com certeza o racismo o mais estudado pelos historiadores, com uma erudição impecável, inclusive pelo próprio P.-A. Taguieff (ver abaixo, neste capítulo, assim como o estado de suas reflexões sobre os limites do racismo). Concordamos, com a maioria dos autores, que a melhor opção é intermediaria. O “nacionalista” francês que pretende proibir a um compatriota a qualidade de compatriota porque este é negro ou muçulmano, e, portanto, nunca será capaz de “ser francês” é racista, independentemente de suas convicções sobre as “raças humanas”. É racista porque essencializa e exclui. A diferença e a essencialização são, portanto, os marcadores do racismo, um ponto que se tornou consenso na literatura no último terço do século XX. É mais que xenófobo, já que o outro rejeitado não é um estrangeiro, ou, mais exatamente, somente se torna um estrangeiro ao termo do processo de essencialização. É um compatriota que poderia muito bem contribuir à prosperidade de seu país – ponto que um nacionalista inteligente, aberto, não deixará escapar.

As discordâncias são nítidas em relação à inclusão do ódio aos judeus no racismo. De um lado, a necessidade desta inclusão é evidente, por exemplo pelo historiador americano George L. Mosse, cujo livro Toward the Final Solution. A

History of European Racism é já uma afirmação: a judeofobia é um racismo. Muitos

outros autores compartilham esta abordagem, e soaria estranhamente um livro geral sobre o racismo que deixasse de lado o ódio aos judeus. De um outro lado, todos os pesquisadores são sensíveis à particularidade do caso dos judeus. A cronologia não é a mesma, e o historiador Peter Schäfer pôde escrever um livro intitulado, em

clássicas (K. Munanga, J. d´Adesky, F. Fernandes, G. Freyre, A. Novinsky, J.J. Reis, M. L. Tucci Carneiro, T.E. Skidmore) e também os estudos consagrados especificamente ao antissemitismo europeu (L. Poliakov, J. Katz, S. Friedländer, Ph. Burrin, R. Wistrich, Y.H. Yerushalmi, M. Winock).

tradução francesa do alemão, Judéophobie. Attitudes à l´égard des Juifs dans le

monde antique. Também o que está em jogo em termos teológicos e políticos, em

particular desde o nascimento e o sucesso do sionismo, é diferente. Interrogado por nós, Richard Prasquier, quando presidente do CRIF, observava que se recusou a desfilar com organizações antirracistas depois do crime do terrorista Mohammed Merah, porque nada indica que ele fosse “racista”. Havia assassinado um adulto e três crianças em uma escola judia porque eram judeus, mas tinha convicções particulares sobre uma suposta “raça judia”? A questão nos interessa diretamente, porque veremos, em particular no capítulo IV, que um dos combates, científico e político, de P.-A. Taguieff consistiu, precisamente, em intervenções no debate público francês para alertar sobre a persistência, com características novas, do ódio aos judeus. Mais, e paradoxalmente, – e se trata, naturalmente, de um paradoxo central para nossa pesquisa –, seus adversários neste debate não foram sobretudo racistas, porém antirracistas. Nos anos 2000- 2012, era comum a ideia de que o racismo não impactava mais os judeus, e também era comum, na propaganda antissionista, a assimilação do Estado de Israel e da África do sul do tempo do apartheid. Uma parte do trabalho de P.-A. Taguieff consistiu, ao lado de outros autores, mas não muito numerosos, em interrogar os limites não só do racismo, porém também do antirracismo39.

“Racismo sem raças”, “racismo cultural”, “racismo identitário”, são diversas as denominações, ou seja, não são fixadas. Todos os autores concordam sobre o fato: a destruição das teorias “científicas” racistas pela própria ciência não concluiu a história do racismo. Mas discordam sobre a significação do fato. Por exemplo, no caso francês, uma corrente de pesquisadores (essencialmente historiadores) explica a permanência do racismo pelo peso do passado colonial deste país. A sociedade francesa seria uma sociedade “pós-colonial”. As discriminações do passado nas colônias se reproduziriam “inconscientemente”, desta vez afetando as populações imigradas ou de origem imigrada, ou oriundas das Antilhas francesas. O recurso à História permitiria identificar permanências nas discriminações. Esta

39 Mohammed Merah matou três crianças e um adulto no dia 19 de março de 2012, na escola Ozar

abordagem deu luz a obras destacadas, mas é contestada por outros pesquisadores, claro, também sensíveis à necessidade de lutar contra o racismo, para quem ela não passa de uma mitologia, e, inclusive, uma mitologia perigosa, porque contribuiria à racialização das relações sociais.

Achamos instigantes (e preocupantes) estas discordâncias. Em particular, gostaríamos de voltar aqui a um exemplo já utilizado na introdução. Quando torcedores do time inglês de Chelsea cantam “we’re racist”, nós não os entendemos, não conseguimos encontrar uma explicação racional. É uma situação bastante nova, porque o racismo do colono francês na Argélia, do branco no Mississippi antes dos anos 1960, do nazista ou da elite brasileira da Belle Époque é compreensível, apesar de ser odioso. A maioria dos pesquisadores concorda, alguma coisa em torno da identidade está em curso desde os anos 1970, a cronologia variando segundo os países. Mas o quê? A resposta do historiador George M. Fredrickson contribui ao debate, quando observa que “culture can be reified and essentialized to

the point where it has the same deterministic effect as skin color”40.

Os pesquisadores que escrevem sobre o racismo concordam em repudiar o racismo. Mas será que pelos mesmos motivos? O próprio P.-A. Taguieff chamou a atenção, em Les fins de l´antiracisme, sobre a diversidade dos antirracismos

40 George M. Fredrickson, op. cit., p. 169. Evocamos o tema da França “sociedade pós-colonial” no

capítulo V. Os historiadores da “França pós-colonial” escreveram por exemplo: La Fracture coloniale.

La société française au prisme de l'héritage colonial (2005), Ruptures postcoloniales. Les nouveaux visages de la société françaises (2010) e Vers la guerre des identités? De la fracture coloniale à la révolution ultranationale (2017), publicados pela editora La Découverte. Os principais animadores

desta corrente são Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Ahmed Boubeker, Sandrine Lemaire, Françoise Vergès. Para uma visão oposta, a partir de abordagens diversas e nem sempre compatíveis, é possível se referir ao geografo Yves Lacoste (e de maneira geral à revista de geopolítica Herodote), ao cientista político Jean-François Bayart, ao filósofo Daniel Bensaïd, ou ao próprio P.-A. Taguieff. Nosso sentimento é que o que taxaremos de “escola La Découverte” joga um papel útil quando chama a atenção sobre o peso do passado colonial, porém exagera esse peso. Outros países europeus que não tiveram a mesma experiência imperialista que a França, podem se confrontar com tipos de problemas similares. Por exemplo, os desafios representados pelos islamismos não são diferentes na Dinamarca e na França, como o mostra o livro de Jeanne Favret- Saada, ao qual nos referimos no capítulo V, Comment produire une crise mondiale avec douze petits

dessins. O que está em jogo é uma interpretação da tradição republicana francesa – deve ser

condenada por sua contribuição ao imperialismo colonial? Ao contrário, deve ser distinguida deste imperialismo, e poderia, portanto, ser uma força de inspiração para os militantes antirracistas?

franceses41. Implica posições, escolhas, temáticas diversas. Por exemplo, o

historiador Immanuel Wallerstein relaciona o racismo com o estado presente das lutas entre o capital e o trabalho. Segundo ele, o capital possui todo interesse em desenvolver o racismo, que inferioriza e, portanto, justifica as desigualdades salariais. Também, os proletários podem sentir a tentação de se proteger dos interesses universais da burguesia afirmando uma identidade singular, de classe, de raça ou nacional. Portanto, o fim do racismo exige o fim da dominação do capital. O que não exige, de forma nenhuma, é um investimento (uma elaboração, uma reflexão) sobre a nação como ferramenta antirracista, por exemplo uma nação republicana, ou democrata, ou social, as denominações podem variar. I. Wallerstein escreve que as comunidades são “construções históricas”, “sempre em reconstrução”. Não que deixam de ter “solidez” ou de “pertinência”, mas “nunca são originárias e, portanto, toda descrição histórica de sua estrutura e de seu desenvolvimento através dos séculos é necessariamente uma ideologia do presente”42.

Esta abordagem representa uma parte da tradição antirracista, mas só uma parte. Que a reflexão sobre as comunidades políticas não passe, necessariamente, de uma “ideologia do presente” – subentendido, porque o que importa realmente é o conflito entre o trabalho e o capital –, isto pode ser contestado, e teremos a oportunidade de ver que foi contestado. Nossa hipótese é que tal diversidade dos antirracismos (e as contradições que vêm com a diversidade) não é um grande problema quando sabemos bem o que é o racismo. Assim, não era um grande problema até a década de 1970. Mas as transformações ulteriores do racismo nos obrigam a voltar com mais cuidado à diversidade dos antirracismos. Frente a um racismo tornado sobretudo diferencialista e cultural, para usar a tipologia proposta por P.-A. Taguieff, os antirracistas são confrontados à diversidade de seus horizontes. Devem levar a sério esta noção de “identidade” (coletiva), ou recusá-la como ilusão, seja como I. Wallerstein em uma perspectiva marxista, seja porque

41 Em particular no capítulo VI, “Do antirracismo aos antirracismos: origens, tradições,

funcionamentos”.

42 I. Wallerstein, posfácio, in Race, nation, classe. Les identités ambiguës (com Étienne Balibar).

somos feitos de uma pluralidade de identidades, e que, por conseguinte, trata-se de um falso problema? Um falso problema, o da boa comunidade política? Pode ser?