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Em 1983, o uso político que doutrinas extremistas poderiam fazer de um elogio da diferença, que pertencia ao espírito da época, não podia ser imaginado. O debate público estava marcado pelas polêmicas sobre o Regime de Vichy. O antissemitismo francês, suas responsabilidades especificas na Shoah, o papel da administração francesa e da extrema-direita “colaboracionista” dominavam as preocupações, entre as publicações dos livros fundamentais, respectivos de Robert Paxton em 1972 e Henry Rousso em 1987127.

Nessa perspectiva, o trabalho de P.-A. Taguieff mostrou-se fundamental. Foi ele que alarmou a opinião intelectual, e, em particular, os militantes antirracistas obcecados pelos eventos de 1940-1944: o perigo é novo, o racismo mudou, e a mudança vem da própria matriz cultural do antirracismo (ver abaixo). Essa advertência vinha a contracorrente, porque a sociedade francesa estava repleta de referências à Segunda Guerra Mundial, como mostrou o historiador Henry Rousso128. P.-A. Taguieff chamou a atenção para o erro de perspectiva. Era o forte

interesse por Vichy e a ocupação nazista que tinha levado jornalistas e intelectuais a dirigir a atenção sobre o GRECE. No entanto, precisamente, esta organização intrigava não por seus usos do passado, mas pelas rupturas às quais procedia. Era justificável, a preocupação, porém, ocorria de forma desorientada – o GRECE anunciava uma mudança, no campo das ideias, do lado da extrema-direita, e uma ruptura permitida pela dominação ideológica de um antirracismo que tinha difundido o tema do direito à diferença. Era um fato instigante, visto que, precisamente, o

corpus teórico dela não tinha mudado muito desde sua cristalização na época de

Drumont e do caso Dreyfus. O mérito de P.-A. Taguieff foi ter percebido isso129.

Dois textos foram publicados em 1984. São finas análises críticas da evolução do GRECE, no primeiro, e das ideias filosóficas de Alain de Benoist, no segundo. O primeiro é o texto mais comprido (140 páginas) de um livro coletivo

127 R. Paxton. La France de Vichy (1940-1944). Paris: Le Seuil, 1972; H. Rousso. Le syndrome de

Vichy (1944-198…). Paris: Le Seuil, 1987.

128 H. Rousso, ibidem; H. Rousso; É. Conan. Vichy, un passé qui ne passe pas. Paris: Fayard, 1994. 129 Michel Winock (org.). Histoire de l’extrême droite en France. Paris: Le Seuil, 1994.

oriundo das atividades de um clube de reflexão política de esquerda, próximo do Partido Socialista. O segundo é um artigo publicado pela revista Les Temps

Modernes130. Ambos são bastante eruditos. Achamos sem cabimento tentar resumir

estes trabalhos. Mas talvez não seja desinteressante tentar caracterizar o estilo, e o modo de trabalhar de P.-A. Taguieff.

1. “La stratégie culturelle de la ‘Nouvelle Droite’ en France (1968-1983)”

Uma leitura atenta do texto, não exatamente de seus resultados científicos, mas de como consegue chegar a esses resultados, mostra o seguinte: o autor inscreve-se na intersecção de três campos raramente relacionados.

Primeiro, há uma pesquisa histórica detalhada (fontes, contextos, recepções dos textos), que leva P.-A. Taguieff a interessar-se por textos sem dimensão filosófica elevada ou nobre, textos de ideias medíocres, ou até, às vezes, muito medíocres, e a levá-los a sério. Procedimento que se repete com o percurso biográfico dos atores envolvidos ou a trajetória das instituições, por exemplo, as revistas. Em segundo lugar, o trabalho filosófico de Taguieff merece um olhar específico. De um lado, trata-se para ele de reconstituir o percurso das ideias, as influências, as transferências, o que implica uma sólida formação filosófica. Do outro, é preciso esboçar (ou aprofundar) uma análise conceitual das palavras- chave: o que significa, por exemplo, “universalismo” no vocabulário do GRECE? A quais ideias ou temas está associado? Contra quais conceitos está sendo usado? Enfim, em terceiro lugar, propõe uma análise da argumentação, inspirada pela nova retórica de Chaïm Perelman. Interessa-se, portanto, pelo discurso que convence, que faz agir e modifica as relações de força política. O que é, numa situação dada, um argumento convincente, isto é, plausível, e suscetível de atrair adesões e participações de leitores e militantes?

130 P.-A. Taguieff. “La statégie culturelle de la ‘Nouvelle Droite’ en France (1968-1983)”, op. cit., 1984;

O conjunto desenha um campo de pesquisa muito próximo à disciplina História das Ideias, recentemente descrita por Marc Angenot131.

No entanto, tratando-se de ideias políticas contemporâneas, o cético poderia sempre pôr em dúvida o caráter científico de uma pesquisa – será que o historiador das ideias pode pretender a imparcialidade do cientista? A pergunta parece legítima. De fato, P.-A. Taguieff raramente assume a postura do acadêmico situado acima dos debates estudados, numa postura de juiz ou de árbitro. Ao contrário, geralmente – isto é verdade nestes textos de 1984 tanto quanto em quase todos seus outros trabalhos –, assume um engajamento político, porém controlado. Explícita ou implicitamente, a maioria dos textos de P.-A. Taguieff inscrevem-se no terreno da argumentação acadêmica e política, porém, uma argumentação que pretende seguir as regras científicas da análise do discurso e da História das Ideias. Isto implica que, contra os adversários, não é possível mentir, descartar ideias incômodas, fabricar sob medida um adversário caricatural, apresentar teleologicamente uma evolução complexa como se fosse um destino. O resultado é uma leitura dos textos em tensão, entre ao menos três, mais uma, dimensões: a historicidade das ideias, a análise conceitual das ideias, a análise da argumentação, inspirada na retórica de Chaïm Perelman, isto é, a “nova retórica”, e, enfim, o debate político contemporâneo132.

A maioria dos filósofos descarta os textos sem dimensão filosófica suficiente, e não tem paciência com a minúcia da erudição histórica. E, sob outro aspecto, poucos historiadores têm uma forte formação filosófica. Enfim, talvez seja possível observar que muitos autores esquivam-se conscientemente dos assuntos “quentes”, “polêmicos demais”, muitas vezes por excelentes motivos, por exemplo, porque querem consagrar-se a trabalhos científicos, e duvidam que isso seja

131 M. Angenot. L’histoire des idées. Liège: Presses Universitaires de Liège, 2014.

132 P.-A. Taguieff homenageou a figura de Chaïm Perelman em um texto importante:

“L’argumentation politique. Analyse du discours et Nouvelle Rhétorique”. In Hermès, 8-9, 1990, Paris. P.-A. Taguieff foi titular da Cátedra Chaïm Perelman (Universidade de Bruxelas) em 1994-1995, depois de Marc Fumaroli e antes de outros intelectuais, como Remo Bodei, Mireille Delmas-Marty, Michel Troper, Marc Angenot ou Étienne Balibar. Voltamos no capítulo VI sobre a importância da obra de Chaïm Perelman.

possível no caso de um assunto debatido no espaço público, sob a forma de controvérsias políticas. P.-A. Taguieff, desde seus primeiros textos, fez uma opção exatamente contrária: de um lado, tornou-se um autor “incontornável” sobre vários temas; de outro, é visto frequentemente com suspeita, como um autor “exagerado”, “polêmico”, “ideológico”, o que ele pode ser, mas na grande maioria dos casos estes epítetos servem mais para fechar a discussão, para descartar a utilidade do debate, em vez de estimular a curiosidade.

Os três-mais-um campos (historicidade das ideias, análise conceitual das ideias, análise da argumentação, e intervenção no campo político) estão presentes em “La statégie culturelle de la ‘Nouvelle Droite’ en France (1968-1983)”.

O ponto de partida é uma constatação. Diante do GRECE, a esquerda pensou que uma condenação do movimento por sua ligação com o passado, seja nazista, seja vichyiste, fosse suficiente. Os homens ou as ideias surgiam vindos dos anos 1940-44, e isto a dispensava de um trabalho crítico. O debate “reduziu-se assim a questões biográficas dos animadores do GRECE, e a debates sobre a presença real de temáticas ideológicas e políticas que eram, mais ou menos, objetos de tabus nas democracias ocidentais desde 1945”133. O inconveniente de

tal postura é que incentivou à preguiça, à não leitura dos textos teóricos oriundos do GRECE, e, ao fim e ao cabo, a uma compreensão errônea do que estava em jogo – não uma última etapa, mas o início da politização da identidade por um movimento de extrema-direita em nome do direito dos povos de manter sua identidade, isto é, do antirracismo. Uma grande contribuição de P.-A. Taguieff foi ter visto e ter levado a sério essa evolução, e ter proposto em 1984 um nome ao que estava emergindo: um racismo diferencialista. A expressão vingou no espaço público intelectual134.

133 P.-A. Taguieff. “La statégie culturelle de la ‘Nouvelle Droite’ en France (1968-1983)”, op. cit., 1984,

p. 14.

134 Como o vimos, a primeira apresentação do conceito se deu em setembro de 1984, durante um

encontro organizado pela École Normale Supérieure de Saint-Cloud (Terceiro Colóquio de Lexicologia Política). O texto da apresentação de P.-A. Taguieff, “Le néo-racisme différentialiste” foi publicado pela revista Langage et Société, 34, em dezembro de 1985.

Desse texto publicado em 1984, dois aspectos são particularmente instigantes.

O primeiro é a ruptura do GRECE com o universalismo. Ela se cristalizou em relação a uma ruptura com uma forma específica de universalismo, o da Igreja Católica. A recuperação pelo GRECE dos resultados das pesquisas de Georges Dumézil foi decisiva porque permitiu ao grupo romper com o “judaico-cristianismo”, visto como uma religião oriunda do Oriente, e para inventar uma identidade europeia trans-histórica, supostamente “antitotalitária”. Supostamente seguindo Dumézil, mas de fato interpretando-o em função de seus pressupostos, o GRECE observa que os europeus teriam adotado a trifuncionalidade (rezar, combater, produzir). Estariam assim do lado da pluralidade contra a uniformidade, que pode tomar uma forma religiosa (igualdade de todos os homens diante de Deus, no monoteísmo) ou laicizada no economicismo, liberal ou marxista. A uniformidade estaria na origem dos totalitarismos. Ao final desse raciocínio (acrobático, é o mínimo que se pode dizer dele), a tarefa maior, para esse clube de reflexão política de extrema-direita, não é mais combater o comunismo, mas defender a (suposta) identidade dos europeus: pluralista, antitotalitária, desigualitária.

Tudo isso aparece como uma bricolagem ideológica, de pouca consistência científica ou filosófica. Precisamente por esse motivo, a dupla formação de P.-A. Taguieff (filosófica e linguística, com especialização no discurso político) foi decisiva para incitá-lo a ler e a levar a sério os numerosos textos produzidos pelo GRECE, a reconstituir a cadeia das racionalizações ad hoc e a propor uma periodização da evolução do GRECE. Ao término desse trabalho, observa que

a afirmação do nominalismo político é o produto natural e último da máquina doutrinal do GRECE: o Homem, na universalidade de sua dignidade, é uma ilusão, e os direitos do homem não passam de ficções perigosas, porque “paralisando” a afirmação das diferenças interindividuais, interculturais, interétnicas. É o princípio da absoluta não ingerência nos assuntos étnicos e culturais. É preciso que o homem universal desapareça para que se liberem e se

exaltem as diferenças raciais apresentadas sem o recurso do vocabulário da raça: “culturais”, “étnicas”, “nacionais”, “regionais”135.

Eis o primeiro resultado da pesquisa do autor: o “racismo diferencialista” emergente constitui-se em oposição ao universalismo, estrategicamente rotulado de “racista”, porque desrespeitando (supostamente) as diversidades das culturas. Um segundo resultado importante – para nós – desse texto é a própria “estratégia cultural” referida no título. Com efeito, se o racismo reinventa-se, sem a biologia e sem raças, embutidas em uma defesa das identidades coletivas que tinha tudo para ser aceitável na opinião dominante dos anos 1970, não é somente o resultado de uma evolução ideológica. É também o resultado de uma estratégia voluntária, denominada por Alain de Benoist um “gramscismo de direita”, em referência ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci. A grande originalidade do GRECE, e seu maior sucesso, é ter levado a luta política ao terreno das ideias, em que as esquerdas eram hegemônicas na França pós-1945. O GRECE foi reconhecido como um “perigo fascista” pela mídia (Le Monde, Le Nouvel Observateur...) em 1979, e rotulado por ela como a “Nouvelle Droite”.

Mas, como vimos, o erro de diagnóstico era quase completo. Alain de Benoist e seus amigos pouco tinham de “racistas” no sentido tradicional da palavra (implicando afirmação da superioridade “racial” de um grupo sobre outros). E facilmente conseguiram demonstrar a inanidade dessa acusação. Ganharam de seus acusadores – não eram novos hitleristas. Essa vitória no terreno das ideias foi

a primeira da extrema-direita desde 1945. Oferecia uma ótima caixa de ressonância

para as ideias do GRECE. Até as primeiras pesquisas de P.-A. Taguieff, em 1982- 1984, a esquerda intelectual não tinha conseguido explicar em que a Nouvelle Droite/GRECE era perigosa.

135 P.-A. Taguieff. “La statégie culturelle de la ‘Nouvelle Droite’ en France (1968-1983)”, op. cit., 1984,

2. “Alain de Benoist, philosophe” (1984)

Esse estudo do pensamento do principal intelectual da chamada “Nouvelle Droite” oferece um percurso através das ideias de Alain de Benoist até 1984. Insiste sobre a diversidade das referências utilizadas por esse autor, embora Nietzsche seja determinante, e completa o texto precedente. A história das ideias do GRECE não é diretamente nosso assunto, e optamos por não entrar nos detalhes da análise de P.-A. Taguieff a esse respeito. Para nós, interessa a constatação de que já em 1984, e a propósito do principal articulador e intelectual do GRECE, ele tinha formulado esta proposta: há em curso uma redefinição do racismo. Ele evolui da biologia à cultura, da raça à identidade, da negação da diferença ao elogio da diferença. Mas ainda é legítimo falar de “racismo”, porque este discurso divide os seres humanos em entidades totalmente separadas. Não há dúvida de que é na pesquisa sobre o GRECE que P.-A. Taguieff notou esta evolução:

É por esse tipo de vias que volta hoje ao imaginário do racismo autorreferencial, fundado sobre o imperativo de preservação da identidade própria e o repúdio incondicional de toda mistura, “cultural” ou “étnica”. A mestiçagem, do corpo e/ou da alma, é posta na origem de todo declínio. Pela remitologização das pesquisas indoeuropeias, o racismo identitário, assumindo esse novo lugar-comum que é “o elogio da diferença”, conquista seus mais recentes títulos de legitimidade cultural, e apresenta uma figura amável à nossa decriptagem inquieta. O sentimento de decadência mais uma vez encontra seu remédio nas certidões dadas por cientistas da biopolítica e na chamada neomítica da identidade pura das origens136.

P.-A. Taguieff poderia ter-se limitado a uma análise crítica e militante do discurso dessa nova extrema-direita que foi o GRECE. Por sua formação de filósofo, porém, preferiu confrontar-se globalmente com a questão do racismo e dos limites do antirracismo. Daí ter escrito o livro que lhe assegurou a notoriedade: La force du

préjugé (1988). Nesse livro, propôs uma definição conceitual do racismo, uma crítica

construtiva do antirracismo para melhor lutar contra o racismo, assim como uma tipologia paralela dos racismos e dos antirracismos. Seu objetivo não é suscitar confusão. É interrogar-se sobre o tempo presente (a década de 1980 até 1988): como explicar que esta questão, o racismo, já não esteja resolvida? A resposta proposta por P.-A. Taguieff é que, se, naturalmente, o antirracismo opõe-se ao racismo, compartilha com ele, porém, algumas evidências impensadas.

II. Do racismo aos racismos: um modelo teórico para pensar o

racismo

Na década de 1980, P.-A. Taguieff consagra-se a uma tarefa que foi algumas vezes mal entendida: criticar o antirracismo para torná-lo mais eficiente, em um contexto de surpreendente progresso eleitoral de um partido de extrema-direita137.

Produziu assim um livro de referência no mundo francófono, e muitos artigos voltados para todas as áreas universitárias consagradas à tarefa de pensar o racismo. Naturalmente, repensar o antirracismo exigia reexaminar também a questão do racismo. Daí o subtítulo do livro acima referidos, La force du préjugé.

Ensaio sobre o racismo e seus duplos. Tratando-se de um livro de mais de 600

páginas, com letras impressas em corpo pequeno – sem falar dos inúmeros artigos que acompanharam a publicação dos livros –, descartamos a ideia de apresentá-lo exaustivamente ou resumi-lo. Qual foi a contribuição de P.-A. Taguieff à teoria do racismo e do antirracismo nos anos 1980? Em que medida esta contribuição, primeiro, contradizia a “vulgata” das organizações antirracistas de esquerda e, segundo, introduzia um distanciamento entre o autor e o “campo” da esquerda, ao qual nos anos 1980 ainda ostensivamente pertencia? Enfim, em que medida

137 P.-A. Taguieff. La force du préjugé, op. cit.; idem, Les fins de l’antiracisme. Paris: Michalon, 1995

emerge assim – mas trata-se unicamente de uma emergência – um antirracismo politicamente dividido?138

Seguiremos a abordagem seguinte. Primeiro, veremos que, em uma situação na qual a noção de “raças” deixou de estar no centro do discurso “racista” de uma extrema-direita virulenta, P.-A. Taguieff sentiu a necessidade de construir uma nova definição da noção de racismo. Esta definição levou-o à proposta de que existiriam dois racismos (A). A esta constatação, acrescentou uma segunda proposta: também existiriam dois antirracismos, que polemizavam prioritariamente cada um com o “seu” racismo simétrico (B). O instigante dessa construção foi estabelecer precisamente o que acontecia nos anos 1980: de um lado, o racismo prosperava porque se aproveitava de um argumento de retorção extraído do próprio discurso antirracista; de outro lado, o antirracismo perdia eficácia porque continuava a enfocar um tipo de racismo desde há muito ultrapassado. O consenso antinazista, longe de ser um sinal de força do antirracismo, indicava um problema conceitual (C).