• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 Por Davidson

2.12. Holismo e externismo

Há uma aparente contradição entre holismo e externismo. O primeiro faz o significado depender de um ajuste geral das evidências disponíveis dentro de uma estrutura interpretativa, já o segundo parece ver os significados de certas sentenças como determinados por relações causais efetivas entre eventos ou objetos no mundo e instanciações (tokens) de sentenças ocasionais.

O externismo semântico leva Davidson a fazer afirmações como as que se seguem: (a) “nos casos mais simples, os eventos e objetos que causam uma crença determinam também o conteúdo dessa crença”245; e (b) “os conteúdos das sentenças mais básicas e aprendidas mais

cedo (‘Mamãe’, ‘Au-au’, ‘Vermelho’, ‘Fogo’, ‘Gavagai’) devem ser determinados por aquilo no mundo que nos causa a sustentação delas como verdadeiras”246.

O holismo, ao contrário, inspira passagens como essas: (a) “se as sentenças dependem, em seus significados, de suas estruturas, e se entendemos o significado de cada item na estrutura apenas como uma abstração da totalidade das sentenças nas quais ele aparece, então só podemos dar o significado de qualquer sentença (ou palavra) se dermos o significado de todas as sentenças (e palavras) na linguagem”;247 e (b) “uma crença é identificada por sua localização

244 Davidson (A Unified Theory of Thought, Meaning, and Action, 1980:166 - “... to improve our grasp of the standards of

rationality implicit in all interpretation of thought and action”).

245 Davidson (The Conditions of Thought, 1988:195 - “... in the simplest cases the events and objects that cause a belief also

determine the content of that belief”).

246 Davidson (Epistemology Externalized, 1990:200 - “... the contents of our earliest learned and most basic sentences

(‘Mama’, ‘Doggie’, ‘Red’, ‘Fire’, ‘Gavagai’) must be determined by what it is in the world that causes us to hold them true”).

247 Davidson (Truth and Meaning, 1967:22 - “If sentences depend for their meaning on their structure, and we understand

the meaning of each item in the structure only as an abstraction from the totality of sentences in which it features, then we can give the meaning of any sentence (or word) only by giving the meaning of every sentence (and word) in the language”).

num padrão de crenças; é o padrão que determina a matéria da crença, aquilo de que trata a crença”248.

As passagens revelam uma aparente contradição. De um lado, temos o holismo semântico e o coerentismo epistemológico, e de outro, temos o externismo semântico e, talvez, uma forma de fundação do conhecimento empírico em experiências particulares. Se pudermos acomodar esses dois lados num quadro geral, teremos tanto uma abordagem da determinação do conteúdo empírico de uma crença particular, quanto uma explicação de como uma justificação coerentista mostra-se sensível a acontecimentos particulares que causam nossas crenças. O que precisamos é mostrar como o mundo pode interferir racionalmente em pontos particulares da rede holista-coerentista.

Uma das formas de solucionar o aparente conflito é enfraquecendo o holismo. A ideia, nesse caso, é defender que certas sentenças ocasionais independem da relação com outras sentenças para terem o significado que têm. O conteúdo delas seria determinado por uma certa relação com elementos não-linguísticos do mundo. No entanto, tal movimento vai contra a rejeição ao mito do dado e à distinção entre analítico e sintético. Teríamos, novamente, sentenças cujo significado depende do mundo e outras cujo significado depende apenas de outras sentenças. Além disso, a relação entre linguagem e partes do mundo não- conceitualizadas é nada mais, e nada menos, que o mito do dado. Voltaríamos, assim, a separar mundo bruto de esquema linguístico, abrindo as portas para o dualismo esquema-conteúdo.

Já que não podemos enfraquecer o holismo, pelo menos não de forma tão simples, o melhor é tentarmos acomodar o externismo em seu interior. Entre as motivações do externismo, estão as exigências de uma linguagem qualquer poder ser aprendida e interpretada (exigências de learnability e interpretability). Vista como a única alternativa ao subjetivismo, a perspectiva externista procura fazer justiça ao caráter público e acessível das evidências. Se o material necessário para a interpretação não estiver disponível, o aprendizado linguístico se mostrará misterioso e impossível.

248 Davidson (Thought and Talk, 1975:168 - “... a belief is identified by its location in a pattern of beliefs; it is the pattern

Davidson afirma que o tipo de triangulação que descreve é necessário, “se deve haver qualquer resposta que seja para a questão sobre a que os conceitos de uma criatura se referem. Se considerarmos uma única criatura por si mesma, suas respostas, não importa quão complexas, não poderão mostrar que ela está reagindo ou pensando em eventos a uma certa distância dela ao invés de, digamos, a algo em sua pele. O mundo do solipsista pode ser de qualquer tamanho; o que equivale a dizer que ele não tem tamanho algum, que ele não é um mundo”.249

Uma das formas de entendermos a obrigatoriedade do externismo é a necessidade de respondermos a uma típica exigência kantiana: pensamentos não podem ser vazios, ou sem conteúdo. Um pensamento sem conteúdo não poderia pensar o mundo, assim como conceitos sem triangulação não poderiam ser conceitos de coisa alguma. Conceitos sem triangulação, assim como pensamentos vazios, são impossibilidades, não podem pensar em nada e não tornam inteligível a direção do pensamento a um mundo qualquer que seja.

Visto como uma exigência da interpretabilidade, o externismo é uma espécie de extensão do princípio de caridade. Nos casos mais básicos, em proferimentos como ‘Vaca’, as circunstâncias nas quais interpretamos e aprendemos essas palavras conferem, ao mesmo tempo, significado a elas. “Não formamos conceitos primeiro e depois descobrimos a que eles se aplicam; ao invés disso, nos casos básicos, a aplicação determina o conteúdo do conceito”.250

Podemos dissolver a aparente incompatibilidade entre holismo e externismo da seguinte forma: o externismo diz que o significado de certas sentenças é determinado, ao mesmo tempo, pelas circunstâncias no mundo externo que causam regularmente seus proferimentos e pela relação que tais sentenças possuem com as demais sentenças da linguagem. A atribuição de um conteúdo particular faz parte do processo mais amplo da interpretação. O externismo apenas vem nos lembrar que, uma vez que nossa linguagem, ou nosso sistema de crenças, nasce, na triangulação, de um jogo que acontece no mundo natural no qual vivemos e que

249 Davidson (The Conditions of Thought, 1988:198 - “... the kind of triangulation I have described (...) is necessary if there

is to be any answer at all to the question what its concepts are concepts of. If we consider a single creature by itself, its responses, no matter how complex, cannot show that it is reacting to, or thinking about, events a certain distance away rather than, say, on its skin. The solipsist’s world can be any size; which is to say, it has no size, it is not a world”).

250 Davidson (Epistemology Externalized, 1991:196 - “... we do not first form concepts and then discover what they apply

compartilhamos, então aprendemos o que algumas sentenças significam relacionando-as com eventos mundanos. Não há nada que nos impeça de aceitar isso. A interpretação nada mais seria que o processo sistemático de acomodar tais relações. A linguagem e a realidade não precisam, para sermos externistas, estarem em relação de confrontação: a linguagem não faz a mediação, não se adequa ou enfrenta a realidade, “mas aprender uma linguagem é parte de nosso aprendizado de como viver no mundo”.251