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McDowell está interessado numa pergunta mais profunda, à qual Davidson foi surdo: “como é possível que existam visões de mundo, quaisquer que sejam elas?”.89 A insensibilidade

de Davidson explica as deficiências de seu pensamento.

Tornar inteligível o fato de termos uma visão de mundo exige que nosso uso de conceitos seja sensível a razões. A sensibilidade a razões (responsiveness), como diz Kant, define o reino

da liberdade. Liberdade não no sentido de ausência de constrangimentos, mas entendida como

ações no interior de um espaço que admite restrições racionais, ou normas, que determinam se algo pode ou não ser razão para algo. Se as restrições racionais operam apenas dentro da mente, então a sensibilidade a razões não se aplica às nossas respostas aos impactos do mundo. Para McDowell, “torna-se, então, uma questão viva como, ao exercitar tal liberdade, poderíamos adotar tomadas de partido frente a como as coisas são no mundo”.90 Davidson não

aplaca essa angústia ao apelar para os impactos causais do mundo. Como resultado, perdemos

88 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:54/17 - “The objects that the interpreter sees the subject’s beliefs as

being about become, as it were, merely noumenal so far as the subject is concerned”).

89 McDowell (O dualismo esquema-conteúdo e empirismo / Scheme-Content Dualism and Empiricism, 1999:42/149 -

“How is it possible that there are world views at all?”).

90 McDowell (O dualismo esquema-conteúdo e empirismo / Scheme-Content Dualism and Empiricism, 1999:42-3/149 -

“... then it becomes a live question how in exercising such a freedom we could be adopting commitments as to how things are in the world”).

a possibilidade de ver os exercícios da soberania conceitual como racionalmente responsáveis diante do mundo. Nossa vida mental, ensimesmada, seria habitada por “pensamentos vazios de conteúdo”. O mundo, dessa forma, não pode se fazer presente nem nos afetar de nenhuma forma que possa tornar as operações mentais exercícios genuínos de liberdade.

Outro movimento problemático de Davidson é o abandono do empirismo. Davidson está certo ao descartar a forma clássica do empirismo, que interioriza as evidências. Mas é ilegítimo, ou enganador, igualar o empirismo a esse movimento de subjetivação. “Empirismo, no sentido interessante, captura uma condição para que seja inteligível o fato de pensamentos não serem vazios”, afirma McDowell.91 Ou seja, a grande questão é como podemos deixar de ser

empiristas, no que se refere a essa exigência mínima.

O problema do dualismo, ao contrário do que Davidson apontou, não reside no relativismo, ou no ceticismo, ou no subjetivismo. O dualismo é incoerente, pois combina a convicção de que nossa visão de mundo é racionalmente sensível à experiência com uma concepção de experiência que a proíbe de passar veredictos. Abandonar a exigência de sensibilidade racional não resolve o problema de forma satisfatória.

A dificuldade de Davidson em ver na proposta de McDowell uma possibilidade real deve-se a razões muito profundas. Não foi à toa que ele foi cego a tal possibilidade. Sua insistência em ver a experiência como impactos brutos sobre a sensibilidade não é mera idiossincrasia, e é exatamente tal concepção que impede que as experiências justifiquem crenças.

Seguindo McDowell, podemos esboçar algumas dessas razões profundas. O surgimento da ciência moderna abriu um novo campo de investigações. Seu objetivo era entender os fenômenos como inter-relacionados causalmente. Ou seja, o lugar par excellence dos fenômenos é o espaço nomológico-causal. Lá podemos desvendar as leis da natureza. Criou-se assim uma forma peculiar de descrever e compreender o mundo natural. A visão moderna diferencia o campo de relações naturais do campo de relações racionais. A forma como o mundo nos impacta passou a ser vista como uma transação causal, algo a ser situado no campo da natureza. A diferenciação desses dois modos de compreensão fez com que distanciássemos 91 McDowell (O dualismo esquema-conteúdo e empirismo / Scheme-Content Dualism and Empiricism, 1999:44/150 - “"...

tal relação daquela que situa algo no domínio das relações racionais. Uma vez que o domínio conceitual é aquele das relações racionais, passou-se a ver as intuições sensíveis como destituídas de conceitos, como pertencentes ao reino da natureza. O reino da liberdade e o reino da natureza fincaram assim suas bandeiras, traçaram suas fronteiras, e passaram a não admitir mais qualquer criatura híbrida que tentasse passar de um domínio ao outro.

Tal imagem do mental, comum a Davidson, a Quine, e aos modernos, é a fonte da dificuldade de admitir a via apresentada por McDowell. Nessa imagem, os sentidos são opostos aos conceitos. Davidson não parece questionar tal visão.

A concepção da experiência como não envolvendo conceitos desempenha um papel central na imagem do mental criticada por McDowell. A distinção entre as duas formas diferentes de compreensão, de um lado, da natureza, e, de outro, das relações racionais, é uma importante descoberta moderna. Mas ao percebemos tal distinção, não estamos compelidos a aceitar que, ao vermos algo como um acontecimento natural, estamos, eo ipso, situando tal acontecimento no espaço das ciências naturais. É como se ver algo como natural fosse o mesmo que dizer que ele não envolve conceitos. A natureza, defende McDowell, é mais ampla que o espaço aberto pelas ciências naturais. Se rejeitarmos tal identificação, veremos que os impactos do mundo em nós podem envolver conceitos, sem com isso ficarmos a um passo da realidade.

A questão epistemológica acabou roubando a cena no pensamento moderno. Mas a fonte de tal obsessão deve ser procurada em comprometimentos anteriores que passaram despercebidos. Ao aceitarmos a separação entre natureza e espaço racional, é compreensível que não consigamos mais explicar como nossas visões de mundo são garantidas. A dificuldade em detectar a origem do problema explica também a força que levou tantos a se acharem na mesma dificuldade. Como diz Wittgenstein, as contusões do espírito ao se debater numa confusão qualquer, ao sentir uma angústia qualquer do pensamento, uma doença qualquer da razão, permite-nos reconhecer o valor de uma descoberta filosófica, ou de uma terapia eficaz.92

Capítulo 2