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McDowell diz ter aprendido com Sellars que “não há forma melhor de buscarmos uma compreensão da intencionalidade do que tentando entender Kant”.82 A ideia é pensar que as

capacidades conceituais relevantes já são exercidas na receptividade. A sensibilidade não deve 80 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:183/142).

81 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:183/142 - “...experience as openness to the world”).

82 McDowell (The Woodbridge Lectures 1997: Having the World in View: Sellars, Kant, and Intentionality, 1998:431 -

“...there is no better way for us to approach an understanding of intentionality than by working toward understanding Kant”).

ser vista como fornecendo elementos extra-conceituais. A intuição não se confunde com as entradas dos sentidos. O conteúdo mesmo que ela oferece na experiência empírica é já conceitual. A intuição, ou a experiência, nos mostra que as coisas são de tal e tal modo.83

O cerne da ideia kantiana de que McDowell pretende se apropriar é que devemos parar de opor impactos brutos a conteúdos conceituais. Os conteúdos conceituais já estão presentes nas aparições do mundo, e não precisamos derivar os conceitos a partir de um processo causal qualquer. Eles são simplesmente operativos na receptividade que temos de aspectos da realidade.

A estratégia kantiana evita a confusão entre exculpação e justificação. Ao buscarmos o fundamento dos juízos empíricos, encontramos as experiências. Mas isso não nos leva mais para fora do espaço conceitual. Elas podem agora, sem problemas, atuar como razões para crenças, como justificativas para nossa visão de mundo. Desaparece assim o mistério.

Por mais que tenhamos alguma atividade na experiência do mundo (focalizando, distinguindo aspectos salientes, etc.), há sempre um resíduo na experiência que escapa ao nosso controle. Frente a tal resíduo, somos passivos: apenas recebemos. É nesse sentido que a

experiência envolve uma operação de conceitos que difere do pensamento. Quando temos

alguma experiência, as capacidades conceituais já estão, sempre, necessariamente, atuando. Não temos escolha quanto a isso. “O conteúdo não é algo que nós mesmos construímos, como quando decidimos o que fazer a respeito de algo”.84 Na experiência, as capacidades conceituais

são operativas na receptividade, e não sobre dados supostamente antecedentes.

A receptividade passiva da experiência explica por que ela pode atender à exigência de um controle externo ao pensamento. Essa era a motivação central do mito do dado. O importante é mostrar como algo externo, do mundo, pode constranger a liberdade do pensamento. Isso pede apenas alguma forma de receptividade. A ideia de uma entrega não-conceitual por parte do mundo só serviu para complicar, ou impossibilitar, a relação de justificação necessária para

83 Ver McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:45/9).

84 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:47/10 - “The content is not something one has put together oneself,

respondermos a certas questões epistemológicas, assim como impediu, ou tornou misteriosa, a responsabilidade da mente frente ao mundo.

O pensamento empírico, no coerentismo de Davidson, fica sem controle racional. McDowell vê com desconfiança a crença davidsoniana de que podemos gerar conteúdos empíricos genuínos apenas através de relações causais, ainda que integradas com o elemento social. Tal imagem não encontra lugar para conteúdos empíricos genuínos, que sejam de fato racionalmente sensíveis ao modo como o mundo é.

Davidson só ficou satisfeito com sua proposta porque não atingiu as raízes das motivações do dado. De fato, do ponto de vista epistemológico, o dado não é nada sedutor. Ceticismo e subjetivismo ficam à espreita, tornando tal manobra um equívoco facilmente detectável. Mas o dado não surgiu do nada, como uma mera tentativa de responder ao problema de fundamentação do conhecimento empírico. Ainda que tal ideia mostre-se epistemologicamente nefasta, não estamos autorizados a descartá-la sem mais, sem colocarmos no lugar algo que desempenhe o papel que ela pretendia desempenhar.

Davidson justifica seu coerentismo apontando para a impossibilidade de uma confrontação direta entre crenças e mundo. O correspondentismo é ininteligível, pois não podemos comparar atitudes mentais e porções do mundo.

“É claro que não temos como sair de nossas peles para descobrir o que está causando os eventos internos de que temos consciência”, diz Davidson.85 McDowell vê tal comentário como

infeliz: a ideia não é “sair de nossas peles”. Não estamos atrás das causas de nossos eventos internos. O que queremos aplacar é a angústia gerada pelo fato de parecermos irresponsáveis diante da disposição geral do nosso meio ambiente. O que é realmente estranho é que nossa visão de mundo pareça não responder ao modo como o mundo é. Sair de nossas peles seria uma metáfora de sair dos nossos pensamentos, mas não é disso que se trata. Queremos apenas entender como podemos falar do mundo.

85 Davidson (A Coherence Theory of Truth and Knowledge, 1983:144 - “... of course we can’t get outside our skins to find

McDowell recusa-se a argumentar contra a estratégia davidsoniana de ligar mente e mundo a partir da determinação dos conteúdos mentais. As imposições da interpretação e a natureza veraz das crenças são teses que chegam tarde demais para aplacar a angústia que ele aponta. Mesmo com todas essas teorias à mão, Davidson não consegue, por exemplo, explicar porque não somos cérebros em cubas. A resposta davidsoniana consistiria em dizer que a interpretação das crenças de um cérebro numa cuba se revelariam amplamente verdadeiras em relação ao ambiente artificial da cuba.86 Tal resposta não aplaca a angústia em jogo. Não

queremos estar certos em relação a um mundo que, na verdade, pode ser totalmente distinto do que pensávamos ser. A imagem da clausura mental não deveria ameaçar nosso contato com o mundo tal como achamos que ele é. A posição davidsoniana nos deixa com a estranha sensação de que não estamos tão diretamente ligados aos objetos de nossas crenças quanto acreditamos estar.

“Pensamentos sem intuição são vazios”, diz Kant. Mas basta um contato causal das intuições? O conteúdo empírico só encontra lugar, insiste McDowell, numa relação racional entre pensamentos e intuições. Caso contrário, eles permanecem vazios, pois “intuições sem conceitos são cegas”.87 Intuições cegas nada podem ver, nem dizer, nem podem oferecer coisa

alguma ao pensamento. Ao insistir numa relação cega, puramente causal, Davidson deixa a mente sem conteúdo empírico. O fato de as crenças serem naturalmente verazes não resolve o problema. Antes de serem verdadeiras, elas precisam ser racionalmente sensíveis à forma como o mundo é, senão o que permanecerá misterioso é o fato de podermos chamar tal coisa de crença, de algo que se dirige ao mundo, podendo ser verdadeiro ou falso. Ser sistematicamente causado não torna algo responsável.

O problema não é a possibilidade de estarmos redondamente enganados, mas sim como entenderemos nossos conteúdos mentais. Alguém poderia dizer: “penso em um livro”. O objeto do pensamento não são impulsos elétricos, nem qualquer outro intermediário, mas um livro, devidamente interpretado, tal como o sujeito o pensa. Mas é possível que o intérprete faça uma reinterpretação, alterando o meio ambiente real comum a ele e ao interpretado, sem mudar a

86 Ver McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:53) e Rorty (Pragmatism, Davidson, and Truth, 1986:340). 87 Kant (Crítica da Razão Pura / Kritik der reinen Vernunft, A51/B75 - “... Anschauungen ohne Begriffe sind blind”).

forma como o segundo percebe ou pensa as coisas. O interpretado mantém seu pensamento, mas alteramos seu conteúdo radicalmente, de um ponto de vista externo. Não garantimos, dessa forma, a ideia genuína de alguém estar em contato com algo em particular. Para McDowell, “os objetos que, na visão do intérprete, são aquilo a que as crenças do sujeito se referem, tornam-se, por assim dizer, meramente numenais no que diz respeito ao sujeito”.88 Ou

seja, causas comuns compartilhadas no mundo não são a mesma coisa que objetos mentais. O numênico causa certas disposições, mas não é idêntico ao conteúdo mental gerado. Poderíamos reinterpretar as crenças de alguém de forma a tornar os objetos que ele visa radicalmente distintos do que ele imagina. A ideia de um contato direto com o mundo, que Davidson advoga, não é permitida numa visão que só admite constrangimentos causais.