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Capítulo 2 Por Davidson

3.5. Notas críticas preliminares ao monismo anômalo

A forma como Davidson entende a transação sensível entre mente e mundo é, para McDowell, um reflexo de sua visão lateralizada. Davidson adota uma fatoração entre elementos naturais e, digamos, não naturais, da percepção. Os aspectos naturais, que compartilhamos com os animais, são subsumidos pela explicação não-normativa das ciências naturais (ainda que na forma mais frouxa de meras regularidades, e não necessariamente instanciando leis estritas).341 Conciliar a sensorialidade pertencente à natureza com a espontaneidade do

pensamento parece impossível. Como misturar a liberdade de uma com a necessidade da outra? Uma vez que a mistura mostrava-se indigesta, pensaram-se as intuições como independentes do entendimento, com os sentidos respondendo de modo natural aos impactos do mundo.

Essa visão foi criada com a ciência moderna, que, usando a expressão que McDowell pega de Max Weber, gerou um “desencantamento do mundo”. Opôs-se, dessa forma, um tipo de inteligibilidade característico da ciência natural e outro tipo relativo ao espaço sui generis dos eventos mentais. Essa identificação da natureza com aquilo que a ciência natural, ou, mais ainda, que a física ideal, procura tornar compreensível ameaça um esvaziamento de sentido. O mundo não parece admitir nenhum sentido. Nele, tudo que existe é governado por leis naturais. O contraste que criamos, que aparece em Kant na oposição entre reino da liberdade e

340 Ver Bensusan (Pode Deus determinar o valor de π? (Ou, pensar na objetividade depois de Hegel e Wittgenstein),

2007).

reino da lei, coloca, de um lado, as relações racionais do pensamento, e, de outro, o espaço nomológico-causal.

Esse contraste, de fato, deixa aberta a possibilidade de relações causais (não-nomológicas) cruzarem a fronteira. McDowell admite que “razões poderiam ser causas”.342 Mas, ainda que

relações causais tenham salvo conduto, a inteligibilidade própria do significado é sui generis se comparada com o reino da lei. É inaceitável que a sensibilidade habite ambos domínios.

“Se aquiescemos ao desencantamento da natureza, se permitimos que o significado seja expelido daquilo que venho chamando de ‘o meramente natural’, certamente teremos de despender energia para trazer o significado de volta à imagem, quando passarmos a considerar as interações humanas”.343 Esse foi o problema de Davidson: ele admitiu a fronteira, e depois

teve de se esforçar para tentar fazer com que o significado não parecesse misterioso ou impossível. As dificuldades de Davidson originam-se dessa aceitação de partida. O significado não é algo que aparece apenas em nossa compreensão linguística, ou na interpretação mútua entre falantes. As capacidades conceituais, caso queiramos acomodar uma sensibilidade racional ao mundo, devem também ser operante em “nossa percepção do mundo exterior à esfera dos seres humanos”.344

Os esforços de Davidson contam, muitas vezes, com a simpatia de McDowell. Ambos se opõem, por exemplo, à naturalização reducionista, ou ao “naturalismo nu e cru” (bald

naturalism), que tenta reduzir, sem sobras, o espaço das razões ao reino nomológico-causal da

natureza. A ideia de um espaço sui generis governado por um “ideal normativo de racionalidade”, defendida por Davidson, é também muito importante para McDowell. Mas, além disso, há uma tese ontológica em Davidson: aquilo que satisfaz os conceitos sui generis está também disponível para uma descrição que se enquadre ao reino da lei. As diferentes descrições dividem dois tipos de inteligibilidade, mas não aquilo que é descrito. Para Davidson,

342 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:108/71 - “... reasons might be causes”).

343 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:109/72 - “If we acquiesce in the disenchantment of nature, if we let

meaning be expelled from what I have been calling ‘the merely natural’, we shall certainly need to work at bringing meaning back into the picture when we come to consider human interactions”).

344 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:109/72 - “... our perception of the world apart from human

todo evento, seja ou não subsumido em conceitos do espaço das razões, pode “ganhar inteligibilidade em termos das operações das leis naturais”.345

O monismo davidsoniano persegue uma forma de acomodar a ideia de que as coisas que satisfazem os conceitos sui generis também podem estabelecer relações causais. Caso contrário, elas seriam inertes e não explicariam a ação humana, assim como seriam fantasmagorias descoladas da realidade. Davidson admite o princípio nomológico de Hume, segundo o qual qualquer relação causal particular pressupõe uma lei geral que ela instancia. Portanto, as relações causais acontecem, necessariamente, entre habitantes do reino da lei. As coisas que possuem poderes causais são, então, habitantes desse reino. O problema é que, no espaço sui generis, uma coisa é o que é não por causa do lugar que ocupa no reino da lei. Ao mesmo tempo, ela causa o que causa porque é o que é enquanto habitante desse reino. Ou seja, um evento mental não pode, no monismo, ter o poder causal que tem por ser o evento mental que é. O aspecto propriamente mental é inerte, não causa nada. Podemos ter uma teoria completa do universo, uma física-que-tudo-engloba, tão determinista quanto se pode ser, ignorando propriedades mentais.

Se substituirmos a tese de que “as relações causais se dão entre ocupantes do reino da lei” pela tese de que “ser natural é ocupar uma posição no reino da lei”, entenderemos qual era o objetivo da manobra ontológica de Davidson: permitir que as coisas que satisfazem conceitos

sui generis sejam itens da natureza, sejam criaturas normais, não misteriosas, não

sobrenaturais.346 O problema é que essas criaturas mostram-se naturais não naquilo que são,

entidades sui generis, mas enquanto manifestações de outra coisa: nada nelas mesmas revela o lugar que ocupam no reino da lei.

A tese ontológica de Davidson mostra-se incompatível com a noção de experiência que McDowell recomenda. Se mantivermos a ideia de que o caráter natural de algo depende do lugar que ele ocupa no reino da lei, então o fato de a sensibilidade ser natural excluirá qualquer interferência da espontaneidade (ou dos habitantes do espaço das razões enquanto tais) nas 345 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:112/75 - “... be made intelligible in terms of the operations of

natural law”).

346 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:112/75 - “... causal relations hold between occupants of the realm of

operações da sensibilidade. Não pode ser devido ao fato de ser um certo fenômeno natural, ou uma determinada impressão dos sentidos, que a percepção é caracterizável em termos de espontaneidade. Enquanto fenômeno natural, num sentido estrito, importa apenas seu lugar no reino da lei. O monismo do reino da lei vê os produtos da natureza desencantada como operando independentemente da espontaneidade. O espaço das razões é, dessa forma, não apenas superveniente, mas inerte. Ele está fora de uma ciência total do mundo, das coisas que realmente importam nos rumos do universo.

McDowell enfrenta o seguinte desafio: “precisamos trazer a sensibilidade ao significado de volta às operações de nossas capacidades sensórias naturais consideradas em si mesmas, insistindo, ao mesmo tempo, no fato de que a sensibilidade ao significado não pode ser capturada em termos naturalistas, caso a palavra ‘naturalista’ seja interpretada em termos do reino da lei”.347 O objetivo é encontrar uma forma de naturalismo que deixe espaço para o

significado. O fato de ser, ainda assim, uma postura naturalista deve-se à rejeição de qualquer visão que torne o significado algo misterioso ou sobrenatural. Não devemos abraçar nenhuma forma de “platonismo desenfreado” (rampant platonism), que vê os seres humanos como parcialmente dentro e parcialmente fora da natureza. Para McDowell, “o monismo davidsoniano não nos ajuda nesse ponto. Não é reconfortante pensar que todas as coisas a respeito das quais falamos fazem parte da natureza, se ainda estivermos presos a verdades a respeito de algumas delas que parecem ser sobrenaturais. O problema posto pelo contraste entre o espaço das razões e o reino da lei, no contexto de um naturalismo que concebe a natureza como o reino da lei, não é ontológico, mas ideológico”.348 Ou seja, o problema não é

entre tipos de entidades, mas entre formas mesmas de inteligibilidade. Se não pudermos integrar os objetos das várias formas de inteligibilidade no mundo, eles se tornarão entidades fantasmagóricas e inertes.

347 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:114/77 - “We need to bring responsiveness to meaning back into

the operations of our natural sentient capacities as such, even while we insist that responsiveness to meaning cannot be captured in naturalistic terms, so long as ‘naturalistic’ is glossed in terms of the realm of law”).

348 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:115/78 - “Davidsonian monism is no help here. It is no comfort to

reflect that all the items we speak of figure in nature, if we are still stuck with truths about some of them that look supernatural. The problem posed by the contrast between the space of reasons and the realm of law, in the context of a naturalism that conceives nature as the realm of law, is not ontological but ideological”).