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Capítulo 2 Por Davidson

2.5. Relativismo, verdade, e esquemas conceituais

“Vários esquemas podem ser vistos como relativos a esse elemento comum e como tendo recebido o papel de organizá-lo,”.137 O elemento comum dos esquemas conceituais, afirma

Davidson, pode assumir duas formas: “ou ele é a realidade (o universo, o mundo, a natureza),

137 Davidson (The Myth of Subjective, 1988:40 - “... various schemes might be seen as relative to, and assigned the role of

ou é a experiência (o espetáculo movente, irritações cutâneas, estimulações sensórias, dados sensíveis, o dado)”.138

A primeira ideia é dificilmente inteligível, pois nos coloca diante da organização de uma coisa única (mundo, natureza) que não contém partes ou objetos constituintes. A coisa única, não-conceitual, assim concebida, não poderia ser organizada em nenhum sentido inteligível. Como no exemplo de Davidson, tente organizar o guarda-roupa sem mexer em nada dentro dele: arrumar o guarda-roupa-que-não-tem-nada-dentro, o guarda-roupa-em-si.139 Ficamos,

evidentemente, perplexos diante dessa situação.

No outro caso, a experiência é aquilo que a linguagem organiza, ou ao que a linguagem, ou o esquema conceitual, se adapta. Se destacarmos o sentido de se adaptar ao mundo (fit the

world), teremos sentenças da linguagem enfrentando em bloco o tribunal da experiência.

Segundo essa imagem, “uma teoria é verdadeira se ela se adequa ou enfrenta a totalidade das evidências sensórias possíveis”.140 O relativismo volta a bater à porta: os objetos sobre os quais

nossa linguagem quantifica seriam entidades intra-esquema que compõem uma teoria ou visão de mundo que, como um todo, se adequa às evidências sensórias. Não é à toa que tal perspectiva concebe os objetos dos quais falamos e que habitam o mundo como postulados (posits) teóricos.

O resultado do relativismo é bem conhecido: nosso vínculo com o mundo fica fraco demais. Os objetos do pensamento deixam de ser genuinamente mundanos. Nossa mente fica povoada por entidades intra-teóricas que não possuem cidadania no mundo extra-teórico. A mente cria, segundo a imagética relativista, o seu próprio mundo, e toma por verdade aquilo que se adequa às informações dos intermediários. Não podemos, assim, falar do mundo objetivo, independente de nós, nem podemos ser diretamente controlados por ele. O problema dessa imagem é tipicamente cartesiano: voltamos a vestir o “véu das ideias”. A crítica de Davidson ao dualismo esquema-conteúdo, ou ao relativismo, mistura-se, nesse sentido, com uma crítica geral ao subjetivismo moderno.

138 Davidson (On the Very Idea of a Conceptual Scheme, 1974:192 - “... either it is reality (the universe, the world, nature),

or it is experience (the passing show, surface irritations, sensory promptings, sense-data, the given)”).

139 Ver Davidson (On the Very Idea of a Conceptual Scheme, 1974:192).

140 Davidson (On the Very Idea of a Conceptual Scheme, 1974:193 - “... that for a theory to fit or face up to the totality of

A noção de verdade como adequação à totalidade da experiência, ou à totalidade dos fatos, segundo Davidson, “não adiciona nada de inteligível ao simples conceito de ser verdadeiro”.141

O relativismo se apoia sobre uma noção de verdade como confronto com intermediários. Uma via aberta para rejeitar essa imagem é abandonar a noção da verdade como confronto ou correspondência a algo. Tal manobra é, em Davidson, mais um caminho que leva em direção ao realismo direto.

O correspondentismo é absurdo, pois não podemos colocar nada num dos lados da relação. Dizer que uma sentença corresponde aos fatos equivale a dizer que ela é verdadeira, mas a primeira forma de dizer isso nos faz pensar em fatos, coisas que poderíamos pôr diante de nós e comparar com nossas sentenças, e é exatamente essa ideia de uma comparação entre duas coisas que é absurda ou ininteligível. “Nada, nenhuma coisa, torna nossas sentenças ou teorias verdadeiras”.142 Um simples fato, um acontecimento no mundo, uma coisa, enfim, nada serve

de evidência qua a coisa que é: nem uma experiência, nem uma perturbação nervosa, nem o mundo, podem tornar nossas sentenças verdadeiras.

“A sentença ‘minha pele está quente’ é verdadeira se e somente se minha pele está quente. Aqui, não há qualquer referência a um fato, mundo, experiência, ou pedaço de evidência”.143

Apontar para algo como sendo o doador da verdade nos leva sempre a coisas não-conceituais: seja um pedaço da realidade, seja uma experiência privada. O que Davidson pretende, com sua noção primitiva de verdade, é manter a intuição realista, ao mesmo tempo em que deixa a busca da verdade (nossas investigações e justificações) se guiarem num universo completamente conceitualizado.144 Aquilo que interessa à investigação da verdade deve ter uma

natureza proposicional, e não ser um pedaço do mundo não-conceitual. O que é inaceitável é o dado bruto, ou a coisa não-conceitual, ser visto como a base sobre a qual se erguem nossas sentenças e a determinação de suas verdades.

141 Davidson (On the Very Idea of a Conceptual Scheme, 1974:194) - “... adds nothing intelligible to the simple concept of

being true”).

142 Davidson (On the Very Idea of a Conceptual Scheme, 1974:194 - “Nothing, however, no thing, makes sentences and

theories true...”).

143 Davidson (On the Very Idea of a Conceptual Scheme, 1974:194 - “The sentence ‘My skin is warm’ is true if and only if

my skin is warm. Here there is no reference to a fact, a world, an experience, or a piece of evidence”).

McDowell acusa a démarche da argumentação davidsoniana de pressupor, desde o início, a legitimidade dos conceitos, sejam eles vazios ou não. Sua crítica insinua que Davidson, ao expor o dualismo, estava já comprometido com a possibilidade de existirem, nos esquemas (ou sistemas de crenças, ou visões de mundo), conceitos genuínos, ainda que a atribuição de um

conteúdo empírico genuíno seja ininteligível nesse caso. O problema, para McDowell, é

anterior, ou mais profundo, residindo na aceitação mesma da inteligibilidade de um esquema sem conteúdo.

Davidson, entretanto, não parece se comprometer com nada disso. Ao menos da forma como a crítica foi colocada, ela se mostra injusta com a démarche davidsoniana. Sua crítica ao dualismo esquema-conteúdo pretende mostrar exatamente a ininteligibilidade mesma da ideia de esquema conceitual, e ele faz isso se servindo de um procedimento hipotético: se aceitarmos a possibilidade de esquemas conceituais, o que temos? Temos relativismo, ceticismo, intuições levadas a extremos ininteligíveis, e uma imagem da linguagem e de seu conteúdo que não sobrevive a um exame mais cuidadoso. Davidson emite algumas promissórias, mas insiste em seu ponto negativo: o dualismo é uma imagem equivocada e deve ser eliminado.

Dizer, como diz McDowell, que a argumentação de Davidson a favor da objetividade do pensamento “começa tarde demais” parece injusto.145 McDowell quer, com isso, dizer que

Davidson aceita muita coisa antes de tentar emendar-se. Mas Davidson apenas toma uma certa imagem de partida para o bem de um argumento específico.

Num certo sentido, Davidson e McDowell apontam para a mesma lição kantiana: conceitos sem intuições são vazios, e conceitos vazios são uma impossibilidade. Não devemos nos enganar pelos vestígios da leitura pouco atenta de Kant que podemos encontrar em Davidson. Ele vê as intuições de Kant como uma versão das impressões de Hume, ou da noção empirista clássica de sense data.146 Segundo Davidson, “Kant pensou que apenas um esquema era

possível; mas uma vez que o dualismo esquema-conteúdo é tornado explícito, a possibilidade

145 Ver McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:54/17 - “... starts too late...”). 146 Ver Davidson (The Myth of the Subjective, 1988:40).

de esquemas alternativos é evidente”.147 Ele afirmou também que para Kant “nunca

percebemos como o mundo realmente é”.148

A primeira afirmação negligencia o fato de a intuição (num sentido relevante) ser fruto da síntese da imaginação, sendo, portanto, um momento de receptividade conceitual. A intuição seria cega se não envolvesse conceitos já em sua gênese. McDowell foi bem atento a isso.

A segunda afirmação pressupõe que o aparato transcendental é um tipo de esquema conceitual. Ora, se não temos mais meros dados não-conceituais, e sim sínteses de intuição e conceito, então temos algo que dificilmente admitirá outros esquemas como possíveis ou inteligíveis. A ideia de esquema conceitual dependia de algo comum do lado de fora. Esse papel, para Davidson, seria desempenhado em Kant pela coisa-em-si (Ding an sich). É como se a noção de transcendental em Kant impusesse sempre uma certa distância entre os conteúdos mentais e o mundo ele mesmo (que seria habitado por entidades supra-sensíveis). A oposição entre fenômeno e noumenon é vista, assim, como uma das formas que o dualismo pode assumir. Essa interpretação é, em muitos momentos, endossada por McDowell em Mente e

Mundo, apesar dele se retratar posteriormente.149

O problema da leitura que Davidson faz de Kant está, entre outras coisas, na incompreensão do papel desempenhado pela coisa-em-si. A doutrina do idealismo transcendental pode ser reconstruída sem que precisemos postular um reino supra-sensível de objetos numenais.150 A questão exegética é complicada, e não desviarei o rumo desse trabalho

para considerações dessa ordem. Basta termos em mente que as afirmações de Davidson a respeito de Kant podem nos enganar quanto às semelhanças e distâncias entre eles. Se atentarmos para um certo “espírito kantiano”, talvez vejamos que para Davidson, assim como para Kant e McDowell, é fundamental que as intuições não sejam dados não-conceituais, mas sim uma legítima relação com o mundo objetivo. A diferença é que McDowell, assim como

147 Davidson (The Myth of the Subjective, 1988:40 - “Kant thought only one scheme was possible; but once the dualism of

scheme and content is made explicit, the possibility of alternative schemes is apparent”).

148 Davidson (Seeing Through Language, 1997:127 - “... we never perceive how the world really is”).

149 Ver McDowell (Précis of Mind and World, 1998:365). Comparar também as interpretações de Allison (Kant’s

Transcendental Idealism: An Interpretation and Defense, 1983), que parece ter influenciado significativamente sua

mudança de posição, e Strawson (The Bounds of Sense: An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason, 1966).

150 Ver Pihlström (How Minds Understand Their World: Remarks on John McDowell’s Naturalism, Kantianism, and

Kant, coloca essa relação na experiência, que se torna conceitual. Davidson acha essa solução misteriosa, e elimina a vacuidade dos conceitos numa teoria acerca de como eles são cunhados. Parece que McDowell, ao ver tanta indisposição de Davidson frente a Kant, viu ali um indício de sua falta de sensibilidade transcendental. Mas o mais certo seria ver ali uma incompreensão: Davidson provavelmente ficaria surpreso se soubesse o quanto compartilha com Kant.