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Capítulo 2 Por Davidson

3.6. Segunda natureza e Bildung

Uma vez que o caráter sui generis do espaço das razões está fora de questão (nem Davidson, nem McDowell, aceitam o “naturalismo nu e cru”, que tenta reduzir a esfera racional à esfera natural, no sentido de reino da lei), então precisamos integrar reinos distintos num espaço comum.

A estratégia adotada por McDowell consiste em rever o legado da ciência moderna, que nos ensina a igualar natureza e reino da lei. A espontaneidade deve ser admitida no mundo natural: nossa sensibilidade a razões não é sobrenatural. Nossas vidas são modeladas segundo as operações da espontaneidade, e tal aspecto delas só se torna visível a partir de um olhar normativo, guiado pelo “ideal constitutivo da racionalidade”. Mas isso não expulsa a espontaneidade do mundo: são seus exercícios que devem ser vistos como pertencendo ao nosso modo de viver. Para McDowell, “os exercícios da espontaneidade pertencem ao nosso modo de realizar nossas potencialidades como animais”.349

Tendo em vista uma nova concepção da natureza, McDowell dirige nossa atenção para a ética de Aristóteles.350 A prudência, ou sabedoria prática (phronesis), consiste numa

sensibilidade a certas demandas da razão: em nossas vidas práticas, certas exigências racionais se impõem, sejamos ou não conscientes delas, e podemos nos tornar sensíveis a elas adquirindo a sabedoria prática.351 A prudência opera como uma segunda natureza para quem a

possui: o sujeito passa a agir, naturalmente, de uma forma prudente, sensível às razões relativas à sua ação no mundo. Numa natureza desencantada, razões não poderiam habitar o mundo, e, portanto, a sabedoria prática não poderia constituir nossa natureza. Mas Aristóteles nos convida a pensar os hábitos de pensamento e de ação como resultantes de uma educação apropriada que desenvolvem no sujeito uma segunda natureza. Ela não é sobrenatural, não paira no ar, desconectada das potencialidades de um ser vivo humano real. Ser educado, algo nada misterioso, é ser inserido numa forma de vida ou tradição, é adquirir certas capacidades

349 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:115/78 - “... exercises of spontaneity belong to our way of

actualizing ourselves as animals”).

350 McDowell (Might There Be External Reasons?, 1995:101 e Mente e Mundo: 1994:116) pretende fazer uma apropriação

conscientemente vaga, mas inspiradora e profícua, dos livros II e VI da Ética a Nicômacos de Aristóteles.

conceituais, é se tornar sensível a razões. Adquirir uma segunda natureza consiste em abrir os olhos às razões, interpretar o mundo conforme ideais normativos, agir conforme eles e pensar e perceber conforme eles. Para nomear essa introdução no mundo do significado, McDowell usa a expressão alemã Bildung.352 A ideia é ver a inserção num mundo habitado por razões como

natural, ao mesmo tempo em que tais entidades propriamente racionais podem ser, também, naturais, para todos os efeitos.

“Nossa segunda natureza é do jeito que é, não apenas em função das potencialidades com que nascemos, mas também em função de nossa formação, de nossa Bildung. Dada a noção de

segunda natureza, podemos dizer que nossas vidas são modeladas pela razão de um modo

natural, ao mesmo tempo em que negamos que a estrutura do espaço das razões possa ser integrada na esquematização geral do reino da lei”.353 Essa naturalização da razão

acompanhada da negação da natureza como, exclusivamente, o reino da lei, funciona como um “re-encantamento parcial da natureza”.354

Uma vez que a Bildung atualiza potências naturais com as quais nascemos, não temos mais porque abraçar um “platonismo desenfreado”. O espaço das razões não se torna sobrenatural porque deixa de poder ser reconstruído com materiais do reino da lei. Ele é apenas o lugar onde significados ganham visibilidade. Seu caráter sui generis não o retira do mundo, nem exige uma redução ontológica ao reino da lei, mas apenas mostra que para vermos certas

coisas precisamos ter nossos olhos abertos pela Bildung, precisamos passar por um processo

normal de maturação e aprendizagem que nos inicie numa certa forma de ver o mundo.

Os rótulos escolhidos por McDowell para nomear sua posição são bastante sugestivos: “naturalismo de segunda natureza”, ou “platonismo naturalizado”. Uma passagem de Wittgenstein ilustra o ponto que ele pretende trazer à tona: “Ordenar, perguntar, narrar, papear, fazem parte de nossa história natural tanto quanto andar, comer, beber, jogar”.355 352 McDowell pega essa expressão de Gadamer (Verdade e Método, 1960). Quanto à apropriação desse termo em

McDowell, ver Dingli (On Thinking and the World: John McDowell’s Mind and World, 2005:131-45).

353 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:125/87-8 - “... our second nature is the way it is not just because of

the potentialities we were born with, but also because of our upbringing, our Bildung. Given the notion of second nature, we can say that the way our lives are shaped by reason is natural, even while we deny that the structure of the space of reasons can be integrated into the layout of the realm of law”).

354 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:125/88 - “... partial re-enchantment of nature...”).

355 Wittgenstein (Investigações Filosóficas / Philosophische Untersuchungen, 1953:§25 - “Befehlen, fragen, erzählen,

O aspecto natural das razões deve ser entendido como um aspecto da nossa própria natureza. McDowell apropria-se da distinção feita por Gadamer entre vida propriamente humana e vida animal.356 Há uma diferença que não deve ser negligenciada entre a vida

humana e o enfrentamento animal com o meio-ambiente, descritível na forma de oportunidades e problemas enfrentados, uma existência guiada exclusivamente por imperativos biológicos. Para o homem, além do meramente biológico, além do meio-ambiente, há o mundo. Habitar o mundo não é o mesmo que existir num ambiente. O homem, ao contrário dos animais, é livre diante do mundo, ele é sensível a razões e se guia por elas.

McDowell afirma que Marx, ao criticar a alienação do trabalho, apontava para uma desumanização, ou animalização, da existência humana no mundo, para uma perda de liberdade.357 Isso que separa o homem do animal não desloca o homem para fora da natureza,

mas estende os limites da mesma. Não é acidental o fato de Marx e Gadamer serem fortemente influenciados por Hegel. McDowell pretende mostrar que a existência racional do homem no mundo é algo melhor compreendido com lentes hegelianas.

A capacidade conceitual, segundo o “naturalismo de segunda natureza”, surgiu no animal humano num certo momento da história natural. Nesse sentido, a segunda natureza é também um capítulo da nossa filogênese. “Houve um tempo em que não havia animais racionais”: esse truísmo não é negado por McDowell.358 A busca de uma explicação plausível de como as forças

que atuam na natureza levaram à evolução de animais com potencialidades conceituais é uma empreitada legítima para a investigação humana. É essa origem na filogênese e na ontogênese que explica o caráter não misterioso de nossos conceitos, é isso que desabona o “platonismo desenfreado”. Nossa ignorância acerca do surgimento dos conceitos, ou da cultura, ou da linguagem, não é argumento a favor do platonismo desenfreado, nem precisamos de uma teoria substantiva nesse sentido para provarmos o caráter natural dessas coisas. Essa ignorância suscita, no máximo, uma curiosidade, que deve ser satisfeita a partir de uma explicação evolucionista convencional.

356 Ver McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994: sexta conferência). 357 Ver McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:157/118).

358 McDowell (Mente e Mundo / Mind and World, 1994:162-3/123 - “There was a time when there were no rational