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Capítulo 2 Por Davidson

2.16. Razões como causas, e vice-versa

Em seu primeiro artigo que alcançou notoriedade, Actions, Reasons, and Causes (1963), Davidson defendeu que as razões, intenções, ou motivos, que explicam a ação de alguém, podem também ser causas da ação explicada. Davidson pretendia, com sua argumentação, 264 Davidson (The Emergence of Thought, 1997:129 - “Social interaction, triangulation, also gives us the only account of

how experience gives a specific content to our thoughts”).

265 Davidson (Seeing Through Language, 1997:135-6 - “Of course, our sense organs are part of the causal chain from world

to perceptual belief. But not all causes are reasons: the activation of our retinas does not constitute evidence that we see a dog (...). ‘I saw it with my own eyes’ is a legitimate reason for believing there was an elephant in the supermarket. But this reports no more than that something I saw caused me to believe there was an elephant in the supermarket. Sometimes we have sensations, and we may, on occasion, refer to them as reasons for beliefs”).

refutar um entendimento bastante difundido por certa tendência neo-wittgensteiniana, que tem como adeptos pensadores como Gilbert Ryle e G. E. M. Anscombe.266 Segundo essa

tendência, uma vez aceita a concepção humeana de causalidade (segundo a qual as causas são

logicamente independentes de seus efeitos), veremos que as razões, intenções, ou motivos, não

podem ser causas de ações, pois há, entre uma coisa e outra, um elo conceitual. Davidson viu nessa perspectiva uma estranha consequência: se as razões não podem causar ações, então elas não servem para explicar o comportamento humano efetivo.

Um primeiro passo crítico de Davidson consistiu em rever a noção de causalidade humeana. Hume está certo, segundo Davidson, ao defender que todo enunciado causal singular está comprometido com a existência de uma lei geral que ele instancia. Mas ele erra ao pensar que motivos e desejos estão nomologicamente ligados às ações. O erro está no fato de ele tomar a explicação de ações humanas através de razões como um tipo de relação regulada por leis, assim como acontecimentos no mundo físico.267

A manobra de Davidson consiste, então, em negar a conclusão (razões não são causas), apesar de aceitar seus pressupostos (toda causa implica uma lei, e as racionalizações não implicam leis). Davidson faz isso enfraquecendo o primeiro pressuposto, pois apesar da noção humeana de causalidade exigir que cada enunciado causal particular pressuponha uma lei, ela não exige que tal lei possa ser formulada, ou tornada explícita, nos próprios termos em que a relação causal encontra-se expressa. Eventos no mundo relacionam-se causalmente, mas podemos descrevê-los de formas variadas. Algumas descrições enunciam uma efetiva relação causal, mas a regra geral que elas instanciam pode não ser capaz de ser expressa no tipo de descrição utilizada.

O insight de Davidson consiste em dizer que a relação entre causa e efeito liga eventos que existem independentemente de suas descrições, sendo a relação causal indiferente à linguagem que usamos para descrevê-la. Para Davidson, “são os eventos que têm o poder de mudar as coisas, não as várias formas de descrevê-los”.268 Já as leis causais dependem da linguagem,

266 Ver Ryle (The Concept of Mind, 1949) e Anscombe (Intention, 1957).

267 A causalidade humeana é critica por Davidson sob a influência da obra de Hart e Honoré (Causation in the Law, 1959). 268 Davidson (Thinking Causes, 1993:195 - “It is events that have the power to change things, not our various ways of

sendo aplicáveis a eventos enquanto descritos de uma forma particular, com certos predicados ou com um vocabulário apropriado. A instanciação de uma lei é uma relação lógica e depende de como articulamos nossos conceitos, de como situamos as coisas no espaço das razões.

Davidson afirma que “a causa é o cimento do universo; o conceito de causa é o que mantém conjunta a nossa imagem do universo, uma imagem que, de outra forma, se desintegraria num díptico composto do mental e do físico”.269 Num certo sentido, as causas cortam de um lado ao

outro os reinos da natureza (caracterizado por relações brutas entre as coisas do mundo) e da razão (onde as relações são regidas por princípios normativos). É possível que dois eventos, um descrito como razão, motivo, ou intenção, e outro descrito como uma ação executada, se liguem por relações causais, mas essa relação pode não instanciar nenhuma lei que poderia ser expressa tanto pelo vocabulário relativo às motivações psicológicas quanto pelo vocabulário relativo às ações humanas. É logicamente possível que alguém tenha a intenção de levantar o braço e que isso cause sua ação, mas não há nenhuma lei geral que explique esse fenômeno, nenhuma lei científica séria ou estrita (que permita previsões, contra-factuais, etc.) que conecte intenções e ações.270

A tradição humeana inspirou uma série de tentativas de estender as explicações nomológicas à compreensão da ação humana. Uma vez que toda explicação causal implica uma lei geral, buscou-se explicar o comportamento humano através da aplicação de modelos de predição típicos das ciências naturais. A ideia é explicar e prever o comportamento humano a partir de regularidades generalizáveis em leis.271 Já a tradição neo-wittgensteiniana, que

também aceita o caráter nomológico da causalidade, reduziu a aplicação do discurso causal ao reino da natureza, proibindo-o nas ciências humanas e no estudo da linguagem e do pensamento.

Davidson procurou uma via média: sua explicação da ação humana é, ao mesmo tempo, causal e não-nomológica. A crítica de Davidson aos neo-wittgensteinianos não significa uma

269 Davidson (Introduction, 1980:xi - “Cause is the cement of the universe; the concept of cause is what holds together our

picture of the universe, a picture that would otherwise disintegrate into a diptych of the mental and the physical”).

270 Ver Nannini (Physicalism and the Anomalism of the Mental, 1999:103). 271 Quanto a essa perspectiva, ver Hempel (Rational Action, 1962).

volta à perspectiva humeana, pois a diferença entre o estudo do homem (Geistwissenschaften) e as ciências da natureza (Naturwissenschaften) é claramente enfatizada. O problema é que tal distinção se apoiava no ponto errado: a questão não é eliminar a causalidade das ciências humanas, mas sim retirar o caráter nomológico dessas explicações causais.

A defesa de uma abordagem causal da ação enfrenta dois problemas distintos. Há um problema ontológico (quanto à relação entre a ação e as razões que a explicam) e um problema epistêmico (relativo ao que constitui uma explicação por razões, ou uma racionalização).272 Os

neo-wittgensteinianos, ao rejeitarem teorias causais da ação, apontaram apenas para a tese epistêmica de que explicações por razões não poderiam ser explicações causais, mas esse argumento não levou em conta a tese ontológica de que razões podem ser causas. A distinção entre esses dois níveis explica a sutileza do argumento de Davidson.

Podemos falar da causa de um evento sem conhecermos, nem sermos capazes de apresentar, uma explicação causal adequada para ele (ou seja, sem termos uma explicação de tipo nomológico-dedutiva). Isso é possível uma vez que a constatação de uma relação causal particular deve-se ao fato de identificarmos uma possível causa, e não somos obrigados, para tanto, a conhecermos exaustivamente todos os elementos causalmente relevantes para o efeito.273 No caso da explicação causal da ação, buscamos não uma teoria completa,

determinista, e projetável a todos os casos futuros, mas apenas a racionalização de uma ação particular. Ao explicarmos a ação de um agente, identificamos não apenas qualquer razão, mas aquela por causa da qual a ação foi executada. Para Davidson, “é fundamental para a relação entre uma razão e a ação que ela explica a ideia de que o agente realizou a ação porque tinha aquela razão”.274 Temos, nesse domínio, critérios de relevância e simplicidade que conformam

os próprios conceitos que usamos. Não podemos esperar desse espaço descritivo nada que se assemelhe às previsões rigorosas e nomológicas da física.

272 Ver Rainone (Thirty-Five Years After “Actions, Reasons, and Causes”: What Has Become of Davidson’s Causal Theory

of Action?, 1999:126).

273 Ver Davidson (Causal Relations, 1967).

274 Davidson (Actions, Reasons, and Causes, 1963:9 - “Central to the relation between a reason and an action it explains is

Davidson distingue o enunciado causal (causal statement), caracterizado por uma semântica extensional, da explicação causal (causal explanation), semanticamente intensional. Ao racionalizarmos um evento e o descrevermos em termos de razões e propósitos, temos uma explicação causal que, de certa forma, toma a relação causal sob um certo aspecto, descrevendo as causas segundo um vocabulário que atende a fins específicos. Ao defender que as razões de uma ação são as causas dela, Davidson não queria dizer que explicações por razões são nomológicas.

No nível ontológico, onde habitam os eventos, razões são eventos descritos de uma certa forma (por exemplo, como um evento mental), e qua eventos que são, elas são causas de ações, que também são eventos descritos de uma forma particular. O argumento davidsoniano parte da pressuposição ontológica de que existem entidades tais como eventos. Junta-se a isso a tese de que a forma lógica das racionalizações (ou explicações por razões) é uma sentença do tipo ‘x causou y’.275 Por fim, adiciona-se a tese de que sentenças causais apresentam uma semântica

extensional, ou seja, que um evento causa outro independentemente de como ele é descrito (podemos trocar designadores de eventos co-referentes numa sentença causal salva veritate).

A moral da história é que o poder explicativo das ações humanas a partir de razões depende, ao mesmo tempo, de suas relações racionais e de seu poder causal. A razão mais forte para uma ação é geralmente a que levou o agente a executá-la. É claro que existe a possibilidade de acrasia e de outras formas de irracionalidade, mas, como vimos na interpretação holista da ação humana, tais fenômenos não podem ser a regra, ou eliminamos a possibilidade da agência e da explicação por razões.276 Falar em ação é descrever certos eventos

a partir de sua causa racional.

A explicação de uma ação insere o evento descrito numa rede de relações normativas análoga àquela que vimos na interpretação radical. Descrever algo como uma ação envolve sua inserção numa rede holística que se guia por considerações racionalizantes. Entendemos uma ação situando-a num cenário normativo mais amplo, e relacionando-a com crenças e valores do agente, bem como com o mundo que nos cerca. Se a psicologia é essa ciência interpretativa 275 Ver Davidson (The Logical Form of Action Sentences, 1967).

direcionada à ação humana, então ela busca, ao mesmo tempo, o significado e as razões de cada comportamento, bem como uma eficácia causal dessa explicação. Esse último elemento da psicologia não a compromete com a existência, em seus domínios, de leis causais estritas. Crenças, razões, motivos, são também pro-atitudes, inclinações, ou disposições para agir de uma ou outra forma. Aliás, se não houvesse uma regularidade no comportamento, ele não seria interpretável. Davidson diz que “é um aspecto básico de uma crença ou de um desejo que ele (ou ela) irá causar certos tipos de ação em certas condições apropriadas”.277 Apesar do caráter

causal das explicações psicológicas, epistemicamente falando, elas não se comportam como leis causais presentes nas explicações por generalização que vemos em outros campos da investigação humana.

Uma forma de entender a diferença advém da constatação de que a psicologia lida com um domínio regulado por princípios gerais de racionalidade. Os agentes da psicologia são livres, se guiam por razões, e se submetem, para poderem ser o que são, a princípios normativos que explicam a própria interpretação deles como agentes. Os objetos da física, ao contrário, apenas manifestam regularidades e não obedecem a nenhum ideal normativo. Enquanto procedimento de investigação, “a psicologia é representada como uma investigação

hermenêutica, ao invés de ser uma ciência preditiva”.278 Uma explicação bem sucedida,

especialmente quando aplicada a ações aparentemente obscuras ou irracionais, depende da nossa habilidade de identificar razões que se enquadrem de forma razoável e coerente num contexto mais amplo de ações e atitudes do agente. Ou seja, uma explicação racional funciona como uma interpretação radical, e ambas, ao contrário de explicações puramente causais, são sensíveis a padrões gerais de racionalidade.

277 Davidson (Reply to J. J. C. Smart, 1985:245 - “...it is a basic aspect of a belief or desire that it will cause certain sorts of

action under appropriate conditions”).

278 Kim (Psychophysical Laws, 1985:383 - “Psychology is portrayed as a hermeneutic inquiry rather than a predictive