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I NTERJEIÇÕES COMO SATÉLITES DE RELAÇÕES RETÓRICAS

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4.5 I NTERJEIÇÕES COMO SATÉLITES DE RELAÇÕES RETÓRICAS

Conforme se viu, a interjeição, por si só, nas trocas comunicacionais, é capaz de constituir um enunciado, chamado, neste estudo, de enunciado interjetivo. Como se pretende analisar as interjeições do ponto de vista de sua integração num texto, seja da modalidade escrita, seja da modalidade falada, para, desse modo, identificar as condições e/ou as restrições para a existência de uma relação retórica do e no campo emocional, é necessário discorrer sobre qual o papel delas numa relação retórica: núcleo ou satélite.

Na RST, como já foi dito, há dois tipos de relações: as do tipo multinuclear e as do tipo núcleo-satélite. As manifestações interjetivas, para que a elas seja atribuída uma interpretação, subordinam-se sempre a uma situação sociocomunicativa. Sem essa condição, não seriam capazes de se constituírem como unidades autônomas nas trocas comunicacionais — unidades estas de valor emocional ou emotivo. A ser assim, elas pertenceriam, de modo geral, às relações do tipo núcleo – satélite, em que uma porção de texto é ancilar a outra.

A questão de as manifestações interjetivas constituírem satélite de uma relação retórica não é simples. A interjeição que abre o poema Cárcere das almas, de Cruz e Souza, é ilustrativa dessa problematização.

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(32) Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza. Tudo se veste de uma igual grandeza Quando a alma entre grilhões as liberdades Sonha e, sonhando, as imortalidades Rasga no etéreo o Espaço da Pureza. Ó almas presas, mudas e fechadas Nas prisões colossais e abandonadas, Da Dor no calabouço, atroz, funéreo! Nesses silêncios solitários, graves, que chaveiro do Céu possui as chaves para abrir-vos as portas do Mistério?! (P1).

Para demonstração, considerando-se o nível macroestrutural, divide-se o texto em duas porções: uma formada pela interjeição “Ah!” e outra pelo restante do poema. As duas possibilidades podem ser assim esquematizadas:

ESQUEMA 4: Relação núcleo-satélite interjetivo em Cárcere das almas 1

O Esquema 4 mostra a interjeição “Ah!” como núcleo e o restante do poema como satélite. Justifica essa opção de análise se se considerar a situação sociocomunicativa: a Escola Simbolista caracteriza-se pelo subjetivismo e pelo pessimismo, entre outros pontos; o estilo do poeta Cruz e Souza é marcado pela dor de existir. Com base nessas informações de natureza ampla, pode-se argumentar que a porção denominada “restante do poema” oferece os argumentos para a manifestação de “Ah!”, que sintetiza a visão do eu lírico acerca da prisão da alma no corpo.

No entanto, não há como resumir o poema referindo-se ao “Ah!” como o foco das intenções de Cruz e Sousa. Um resumo do texto envolve a questão da prisão da alma num cárcere, que é o corpo, e o questionamento do eu lírico acerca da possibilidade de se abrir o cárcere para que a alma se liberte — a ausência de manifestações interjetivas num resumo é um critério a ser adotado para considerá-las como satélite de uma relação retórica. A ser assim, o Esquema 5 é o apropriado para este trabalho, uma vez que a porção “restante do poema” traz essas informações; portanto, é o núcleo. O “Ah!” é uma porção subsidiária a todo o texto: antecipa, por meio de uma vetorização, o tom subjetivo e a visão (quase) pessimista e questionadora do eu lírico e fornece uma coloração emocional que é radiada para todo o texto. Nesse poema, o “Ah!” é um encapsulador de elevado grau de expressividade emocional.

Devido à criatividade dos falantes em situações tanto da escrita quanto da oralidade, a demarcação do satélite interjetivo não é tarefa fácil. Isso porque uma manifestação interjetiva, como já se viu, é desencadeada por fatores externos (da realidade) ou por fatores internos (do próprio falante, mas que, por sua vez, sofre influências da realidade factual). Se há o desencadeamento, as manifestações interjetivas podem referir-se, no texto, a algo anterior (fator desencadeador) e, ao mesmo tempo, introduzir os efeitos dessa causa. Em algumas situações, as manifestações interjetivas, por não estarem agarradas sintaticamente, podem ser cambiáveis. Nesse sentido, o satélite interjetivo não apresenta uma órbita definida; apesar

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disso, sua coloração emocional ou emotiva é radiada ao núcleo ou a todo o texto. Para ilustrar, apresenta-se este fragmento:

(33) UFA! Finalmente alguém do meio publicitário ou do farmacêutico percebeu a pouca funcionalidade do uso das expressões “A persistirem os sintomas...” / “Ao persistirem os sintomas...”, ainda presentes em quase todas as peças publicitárias de medicamentos. (CJ6).

O autor desse fragmento de texto em (33) optou pela inserção da interjeição “UFA!” no início, mas é sabido que ela é uma reação ao fato de alguém do meio publicitário ou farmacêutico ter percebido a pouca funcionalidade do uso das expressões "A persistirem os sintomas..." / "Ao persistirem os sintomas...", ainda presentes em quase todas as peças publicitárias de medicamentos.” O esquema arbóreo é o seguinte:

ESQUEMA 6: Relação núcleo-satélite interjetivo UFA!

Se se mudar a posição do “UFA!” para o fim do fragmento, ter-se-ia o seguinte esquema:

ESQUEMA 7: Relação núcleo-satélite interjetivo UFA! 2

O que se quer demonstrar com os Esquemas 6 e 7 é que algumas interjeições possuem, em muitos casos, caráter cambiante. Em qualquer posição, no início, no meio ou no fim da porção a que se refere, geram o mesmo efeito emocional ou emotivo. O leitor do texto vê na manifestação interjetiva “UFA!” o posicionamento vívido e presentificado do autor. Essa manifestação interjetiva é um enunciado interjetivo com a função de subsidiar emocionalmente, como satélite, a porção nuclear. Num eventual resumo do texto, essa manifestação interjetiva, mesmo que forneça ao texto uma atmosfera de coloração emocional vívida e presentificada, não apareceria como informação necessária.

Num texto de natureza argumentativa, o satélite interjetivo fornece ao leitor ou ao ouvinte indícios de como o autor do texto se posiciona em relação ao que escreve ou diz. Na situação a seguir, nota-se a posição da autora em relação aos defensores da não redução da maioridade penal. Veja-se:

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(34) Todo mundo sabe que é urgente e essencial reduzir para menos de 18 anos a idade em que se pode prender, julgar, condenar um assassino feroz, reincidente, cruel e confesso. Mas aí vem quem defenda, quem tenha pena, ah! os direitos humanos, ah! são crianças. São assassinos apavorantes: torturam e matam com frieza de animais, tantas vezes, e vão para a reeducação ou a ressocialização certamente achando graça: logo, logo estarão de volta. Basta ver os casos em que, checando-se a ficha do “menino”, ele é reincidente contumaz. (AO2).

Em (34), embora todo o fragmento de texto seja uma opinião, as duas manifestações de “ah!” intensificam o posicionamento da autora acerca de sua tese: é necessária a redução da maioridade penal. Esquematizando a porção sublinhada, tem-se:

ESQUEMA 8: Relação núcleo-satélite interjetivo ah!... ah!

Ao instaurar em seu texto as duas ocorrências de “ah!”, a autora mostra, num grau elevado, sua ironia em relação ao que pregam os direitos humanos e em relação ao que sejam crianças. Para a autora, assassinos menores de 18 anos não são crianças; portanto, devem ser

punidos. Não haveria, para autora, justificativas para não puni-las. Por meio do Esquema 6, fica mais evidente que as duas ocorrências da interjeição “ah!”, além de darem um coloração emocional aos argumentos, marcam a pressuposição de que os defensores dos direitos humanos tentam justificar as atitudes dos jovens infratores por meio da idade, inocentando-os da responsabilidade de atos infratores. A autora é contra isso; para a defesa de seu posicionamento, mostra-se irônica e jocosa por meio das ocorrências da interjeição “ah!”. Os satélites interjetivos, nesse texto de opinião, subsidiam a montagem da argumentação. Há uma dramaticidade no texto instaurada pela interjeição “ah!”; a autora considera plausível que seus leitores captem os efeitos disso.

Para textos dialogais, em que há alternância de turnos, em que um deles seja constituído por uma manifestação interjetiva, a montagem do esquema arbóreo pelo RSTTool irá depender das opções do analista. Para alguns textos do corpus que se enquadram nessa situação, opta-se por uma análise entre porções maiores, que formam o núcleo, e porções menores, que formam o satélite interjectivo, quando da constituição de um turno por um enunciado interjetivo. Assim:

(35) L1: e:: as moças (quer dizer::)... havia muito mais::... diFIculda::de de um ra// rapaz (era) diFIcilmente um rapaz saía com um moça... era muito difícil... a não ser quando havia muita intimidade... os namorados geralmente namoravam::... ( ) de lon::ge de esquina

L2: [na janela L1: de janela Doc. NO::ssa

L1: [e conversazinha

L2: [tinha hora para namorar e fechar a janela (CE9).

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ESQUEMA 9: Relação núcleo-satélite interjetivo No::ssa

Essa opção decorre do fato de que o enunciado proferido pelo Doc. advém de toda a porção anterior. O Doc. mostra, por meio da manifestação interjetiva “NO::ssa”, surpresa ou incredulidade em relação à narrativa dos informantes; é uma reação emocional que explicita o seu (auto)envolvimento não só com a construção do diálogo (assunto), mas também com o informante.

Quando o enunciado interjetivo nos textos dialogais encontrar-se no meio de uma fala, opta-se pela decomposição apenas dessa fala. Para ilustrar, apresenta-se este fragmento de texto:

(36) Virgília desatou a chorar, e para não atrair gente, metia o lenço na boca, recalcava os soluços; explosão que me desconcertou. Se alguém a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ela, travei-lhe dos pulsos, sussurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a.

— Não posso, disse ela daí a alguns instantes; não deixo meu filho; se o levar, estou certa de que ele me irá buscar ao fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o quiser, ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus! meu Deus! (R7).

Tem-se o seguinte esquema da porção sublinhada:

ESQUEMA 10: Relação núcleo-satélite interjetivo Ah! meu Deus! meu Deus!

Como se vê, a reação emocional súbita de Virgília decorre, principalmente, depois dessa porção nuclear, em que ela fala de sua dor se ficar longe do filho. A sequência interjetiva “Ah! meu Deus, meu Deus!” colore emocional a porção nuclear; no entanto, dependendo da posição do analista, pode-se considerar que essa sequência interjetiva advém de todo a narrativa anterior à porção sublinhada.

As considerações feitas acerca das manifestações interjetivas como fenômeno da linguagem, como suportes de expressividade, como marcas de envolvimento, como unidades de informação e como satélites de uma relação retórica do tipo núcleo-satélite sinalizam alguns aspectos que podem subsidiar as análises para a identificação das condições e/ou restrições para a existência da relação retórica de interjeição. Após essa “preparação” advinda dessas considerações, passa-se ao Capítulo 5.

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C

APÍTULO

5