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4.1 I NTERJEIÇÕES COMO FENÔMENO DA LINGUAGEM

Tratar as interjeições como fenômeno da linguagem significa levar em consideração que elas envolvem, quando de suas manifestações, uma semiotização abundante e complexa. Concorrem para a emissão de uma interjeição, como já foi dito, recursos de natureza linguística, paralinguística e cinésica. Essa estrutura triádica é própria das interações verbais; numa manifestação interjetiva, torna-se mais evidente.

Para Vallverdú & Bobo (2003), não se pode analisar uma interjeição como sendo uma palavra. As estudiosas afirmam que é impossível abordar as interjeições como categorias linguísticas, ou seja, não se abordam as interjeições com as mesmas ferramentas com as quais se analisam os verbos, os substantivos e os adjetivos, por exemplo. As palavras são uma convenção; por isso, simbólicas. A interjeição seria, na perspectiva das estudiosas, um signo à Charles Sanders Peirce — signo icônico, signo indicial e signo simbólico. Segundo Vallverdú

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& Bobo (2003, p. 14), “a interjeição é um signo — mas não uma palavra —, cuja peculiaridade radica na impossibilidade de recuperar sua representação conceptual a partir de sua simples emissão”.

Para Vallverdú & Bobo (2003), as interjeições não são um signo puramente simbólico em virtude do fato de não se conseguir alcançar o conteúdo delas por meio de um processo de vinculação convencional ou arbitrária. Se os signos simbólicos podem ser interpretados por outros signos simbólicos, isso não ocorre com as interjeições, uma vez que o sentido de uma interjeição não poderia ser representado por outra interjeição. O conteúdo de uma interjeição não se dissocia da situação em que se instaura. Sobre o caráter de indicialidade, as interjeições são, conforme Vallverdú & Bobo (2003), signos vinculados à ação. Esse caráter de índice estaria ligado ao fato de a língua(gem) ser marcada por elementos paralinguísticos e cinésicos (comunicação analógica) e por elementos codificados (comunicação digital). As interjeições manteriam uma relação causal com determinados estados internos daquele que as emite. Quanto à questão icônica, Vallverdú & Bobo (2003) discutem a diferença entre interjeições e onomatopeias. Para as autoras, as interjeições não apresentam referência extralinguística como as onomatopeias. Estas imitam ou se assemelham ao objeto a que se referem; aquelas não dispõem do caráter “descritvo” destas. Em função disso, as onomatopeias seriam denotativas, uma vez que elas mesmas seriam o denotatum, e as interjeições conotativas, uma vez que, em sua materialidade grafofonêmica, estaria presente uma nebulosidade de conteúdos possíveis. Segundo as autoras, quando a relação entre o denotatum e a forma grafofonêmica é reduzida ou inexistente, as onomatopeias comportam-se como interjeições.

Vallverdú & Bobo (2003), por meio dessa abordagem fenomenológica, discutem a representação mental das interjeições. Segundo elas, essa representação não deriva de uma interpretação convencional, como ocorre com substantivos, verbos, adjetivos ou advérbios. A interpretação de uma interjeição necessita de uma situação comunicativa de fato. Essas

considerações de Vallverdú & Bobo (2003) referem-se, sobretudo, às interjeições próprias. Se se analisarem as impróprias, ter-se-iam ressalvas, principalmente quanto ao caráter simbólico delas. Uma ressalva é o fato de elas se originarem de palavras já convencionais da língua, o que daria a elas um status simbólico. Para as autoras, quanto menos simbólica for a interjeição, maior será sua expressividade.

Um dos primeiros estudiosos de língua portuguesa que percebeu a pouca importância dada às interjeições é Said Ali (1971). “Entre as inúmeras obras de lingüística, antigas e modernas, raramente se aponta tratado ou capítulo que analise as interjeições com paciência e carinho, como é de uso as outras partes do discurso.” (SAID ALI, 1971, p.107). Segundo Said Ali (2001, p. 203), a linguagem afetiva, mais especificadamente as formas interjetivas, são “ditadas pelo sentimento e por certos estados particulares da alma, pronunciam-se com intonação própria, sobressaindo por esta forma no meio da linguagem quotidiana”. Para esse autor,

digno de exame é o modo fácil com que o homem se utiliza das vozes ou gritos que involuntariamente costuma pronunciar em certos momentos e, moderando-lhes a tonalidade, os incorpora refletidamente nos seus discursos, a fim de obter efeitos de expressão que não conseguiria com os sós recursos da linguagem comum. (SAID ALI, 2001, p. 204).

A análise de um fenômeno vivo da língua pressupõe que a noção estanque de classe seja, pelo menos, revista, principalmente porque, de acordo com Perini et al. (1998, p. 125),

rótulos como “nome”, “preposição”, “verbo” etc., no que pese seu uso

exclusivo nas análises, só podem ser entendidos como abreviaturas de matrizes de traços. E mais: só podem ser entendidos como termos aproximativos, ou seja, quando classificamos as palavras em dez (ou cem) estamos sempre deixando de lado os casos minoritários ou que se consideram, por alguma razão, menos importante. A única maneira rigorosa de falar das classes é utilizando o conjunto completo dos traços relevantes.

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O que se propõe, para a análise das interjeições, é o abandono da noção tradicional de classe de palavras. Conforme Hopper (1988, apud DECAT, 1993, p. 280), o falante não retira “as palavras de um catálogo por causa de sua adaptabilidade a uma construção sintática particular, mas, ao contrário, a forma categorial que uma palavra assume é um reflexo de sua função num contexto retórico particular”.

Em conformidade com a maioria das gramáticas normativas do português brasileiro, podem surgir vários candidatos à “classe” das interjeições: a) conjunto sonoro não- lexicalizado (Ah!, Hã-hã!); b) vocábulos de natureza substantiva (Coragem!, Bárbaro!), adjetiva (Ótimo!, Claro!), pronominal (Nossa!, Isso!), verbal (Basta!, Chega!), adverbial (Abaixo!, Devagar!), conjuntiva (Pois bem!, Entretanto...); c) orações (Valha-me Deus!, Macacos me mordam!) e d) onomatopéias (Pum!, Zás!)31. Apesar de as interjeições serem uma rubrica para um julgamento completo, é inegável sua condição pragmática bem marcada no funcionamento da linguagem humana. A emissão de uma interjeição abarca, de maneira saliente, aspectos linguísticos, culturais, ideológicos, cognitivos, entre outros. O corpo do falante interjetivo acompanha e completa a emissão de uma interjeição — podem-se notar movimentos de mãos, mudança corporal, por exemplo, como recursos de semiotização que acompanham o dizer interjetivo.

As interjeições como fenômeno da linguagem estão na fronteira entre o linguístico e o não linguístico. Elas significam nessa fronteira. As análises dos fragmentos a seguir ilustram a questão de que, na emissão de uma interjeição, ocorre uma semiotização diversa. Veja-se o primeiro fragmento de texto:

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Reforça-se o que já fora mencionado em nota de rodapé: um estudo sobre a gramaticalização de itens interjectivos pode contribuir com compreensão deles. Ramos (2010), em artigo intitulado de

“Interjeição e gramaticalização: Nó! e Nossa Senhora! no dialeto mineiro” apresenta uma análise

(1) Doc. e quais os tipos de bebida que você conhece?

Inf. CHI:: agora é que é quais são os tipos? Todos esses que existem à venda por aí ((risos)) então são:: os gim uísque::... o rum::... o vinho né? os refrigeran::tes e entre eles Coca-Cola claro né? ((risos))... e sendo eu mesma eu prefiro:: guaraná champanhe ((riu)) (CE23).

É sabido que há uma clássica divisão entre sons não articulados e articulados. Quanto ao primeiro, apesar de estarem na fonte da aquisição da língua(gem), são meros instintos vivenciados pelo homem, realizados por uma performance vocal não linguística, sem intencionalidades — são a tentativa de imitação de sons produzidos por animais, de barulhos de sinos, de portas etc. Quanto ao segundo, fazem parte da realidade linguística, com certo grau de convencionalidade de acordo com a estrutura fônica do sistema da língua; são intencionais a partir da situação enunciativa. São exemplos conhecidos as manifestações “Oh!” e “Ah!” e, em (1), “CHI::”. Expressões como essas já são reconhecidas pela comunidade linguística e por muitos dicionaristas e linguistas como modos de presentificação de emoções.

Torío (1994, p. 394) analisa 68 interjeições próprias da língua espanhola. Suas reflexões acerca de questões grafofonêmicas das interjeições do espanhol não se distanciam das do português. Para Torío (1994), as interjeições próprias não contrariam o sistema da língua quanto aos aspectos grafofonêmicos. Segundo esse linguista, haveria, na manifestação de interjeições próprias, desvios grafofonêmicos próprios da oralidade e trasladados para a escrita, o que geraria um efeito de anomalia. Ainda segundo esse autor, as interjeições próprias são basicamente coloquiais e pronunciadas com ruptura da curva melódica — na trasladação para a escrita mantém-se esse caráter. Seria esse o modo como entender as reduplicações na escrita de muitas interjeições. Em suas considerações finais, Torío (1994) afirma que as interjeições exploram os recursos menos frequentes da língua.

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Em (1), o “CHI::” é um interjeição não lexical, própria portanto, um “grito subitâneo” que atua como suporte da emoção repentina do Inf. diante do questionamento dirigido a ele. Esse “grito” é um recurso linguístico aceito pragmaticamente, uma vez que os usuários da língua percebem nele uma reação por meio da qual o falante sintetiza um julgamento complexo. Pronunciado com elevação do tom de voz e com alongamento vocálico, o “CHI::” particulariza o Inf. em seu próprio dizer. “Sendo rápidas as explosões de sentimento, nada mais natural do que procurar externá-las em poucas palavras e em tempo rápido.” (SAID ALI, 2001, p. 203). Talvez o alongamento vocálico seja uma estratégia inconsciente do Inf. para que ele “ganhe tempo” para formular uma resposta articulada.

Veja-se outro fragmento de texto:

(2) Ouvi e não cri. Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mim então, não podia ser ele, foras de norma. E ao Paspe reperguntei, pedindo o exato. Era. Mas não seria, então, que ele estivesse ferido, numa perna?

Ao que nem não nem sim — mais pelo não que pelo sim... — o Paspe completou. Não tinha reparado, no relance de tempo. Só viu que o arreio era um socadinho, quase novo, e o cavalo alto, desbarrigado, mas pronto de si, riscando com todas as ferraduras, murzelo-andrino...

Aí, ai, ôi, espécie de dor em meus cantos, o senhor sabe. Agora eu pateteava. Que que era ser fiel; donde estava o amigo? Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minha companhia. Às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro. (R10).

Em (2), o escritor Guimarães Rosa recorre ao uso de interjeições. O personagem Riobaldo fala a seu interlocutor (“o senhor sabe”) acerca de seu sentimento advindo da possibilidade de Diadorim ter-se desertado dele. Em um dado momento, Riobaldo manifesta- se interjetivamente: “ai, ôi”. O personagem traduz para seu interlocutor o significado das interjeições: “espécie de dor em meus cantos”. Guimarães Rosa, nesse fragmento, estaria sinalizando para seus leitores o caráter metalinguístico de sua escrita, uma vez que ele “traduz” as interjeições proferidas por seu personagem. A manifestação interjetiva “ai, oi”

desencadeia uma coloração emocional em todo o fragmento de texto, em toda a fala de Riobaldo.

De acordo Steinberg (1988), na oralidade, principalmente em situações menos controladas, os atos paralinguísticos (episódios não verbais com significado próprio, como

Shhh para sinalizar um pedido de silêncio), cinésicos (movimentos do corpo como gestos,

postura, expressão facial, olhares e risos; como o dedo indicador sobre os lábios para contribuir com o pedido de silêncio), proxêmicos (distância mantida entre os interlocutores) e tacêsicos (uso de toques durante a interação) colaboram com o desenrolar das trocas comunicacionais. Essa permissão dada pelas circunstâncias da oralidade permite ao falante alongar e duplicar vogais e consoantes (menos recorrente), sem, no entanto, desobedecer ao sistema formal no que se refere à composição grafofonêmica das palavras da língua. Assim, encontram-se interjeições como iiiiih!, aaah!, ahhhh!, oooh!, uau!, nooo!, chiii!, meeesmo!,

noooossa!, coitaaada!, entre outras.

O fragmento de texto a seguir também é de natureza literária:

(3) — Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgília.

— Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos para o teto. Não gosto de Iaiá! Mas então de quem é que eu gostaria neste mundo?

E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem lhe os olhos, de tão fixo que era.Virgília acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido. (R5).

Em (3), nota-se um diálogo entre duas personagens. O escritor Machado de Assis, ao criar esse diálogo, procura dar a ele características típicas de uma interação face a face. Para que essa intenção seja alcançada, o escritor sinaliza para os leitores o modo como a personagem Virgília reage à fala de sua interlocutora: à fala emocional “Virgem Nossa Senhora!” o escritor acrescentou “exclamou a boa dama alçando as mãos para o teto”. A capacidade inventiva de Machado de Assis respalda-se em seu conhecimento acerca dos usos

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das interjeições, ou seja, o escritor mostra que a emissão de uma interjeição pode vir acompanhada de reações corpóreas. A personagem de Machado de Assis fala com a voz e com o corpo. Durante a narrativa, o escritor vai demonstrando que à ação de alçar “as mãos para o teto” somam-se outros aspectos cinésicos, proxêmicos e tacêsicos: “pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgília acariciou-a muito”. A reação “Virgem Nossa Senhora!” colore emocinalmente todo o fragmento de texto, toda a situação descrita por Machado de Assis.

Assim, considerar as interjeições como fenômeno da linguagem é considerar o extralinguístico. O extralinguístico é necessário a qualquer uso da língua, mas, quando da emissão de interjeições, prolifera uma diversidade de recursos que escapam ao meramente linguístico. Bechara (2001, p. 30) sintetiza essas questões:

[...] há de levar em conta, na capacidade geral de expressão, a execução de atividades que acompanham e às vezes até substituem, já que não falamos só com as unidades linguísticas, com a língua concreta. Estas são formas de expressão extralinguísticas, tais como a mímica, a entonação, o ritmo, as pausas e silêncios, os gestos, os recursos gráficos e outros.

As análises anteriores demonstram que as manifestações interjetivas envolvem fatores diversos na sua realização. Elas são, portanto, um fenômeno de linguagem; por isso, não podem ser analisadas apenas como uma “classe de palavras”.