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Ideais oposicionistas e manifestações literárias do século XIX nos países

No documento Pelos mares da língua portuguesa 2 (páginas 81-117)

São numerosas as colaborações nos exemplares do Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro que indicam uma leitura atenta do seu conteúdo, como também uma especial atenção aos escritores que por esse espaço editorial circulam. As dedicatórias, os poemas indicados como “imitação”, as epígrafes, sem contar as respostas e réplicas em relação, principalmente, a fatos históricos ou culturais, que algumas vezes são contestados. Nesse sentido, temos alguns exemplos em relação a Angola, principalmente. Destacamos no recorte temporal que adotamos, o diálogo constante entre Cordeiro da Matta e outros colaboradores, alguns de Angola, outros de Portugal, em relação a questões angolanas, especialmente históricas, como foi a polêmica em torno da história da rainha Ginga nos anos de 1882, 1883 e 1884.

Compiladas as colaborações desse período (1878 ‑1898), pudemos verificar que as mesmas podem ser indicadas a partir de cinco categorias que seriam a poesia, o fait ‑divers, a prosa etnográfica, a micronarrativa e a adivinha (charadas, enigmas e logogrifos). É de notar, no entanto, igual importância das citações e das interlocuções que encontramos nas palavras dos editores nas seções de “Prólogo” e de “Correspondência”. Nestas últimas notamos a revelação de uma diretriz editorial, e, principalmente, de um cuidado com a sua manutenção, como podemos ver no excerto a seguir destacado: “A.S. (Angola). – Ainda que a sua indicação seja a benefício d´essa parte da Africa, tão digna de uma boa sorte, parece ella envolver censura a uma authoridade, e como tal foge do nosso programa” (Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, 1864, p. 32).

Além disso, notamos, outrossim, indícios de uma postura que não se distancia da postura colonial, que se poderia esperar de um periódico metropolitano, ainda que aberto a todas as comunidades de língua portuguesa, publicando, inclusive, textos em línguas de algumas “etnias africanas” ou em crioulo. Destacamos, nesse sentido, a resposta dos editores ao colaborador “Reparador africano”, em que se aponta “a índole que imprime nos corpos o calor africano”: “Ao leitor, que dominado pela índole que imprime nos corpos o calor africano, só mezes depois de lá chegar o Almanach de 1884, se lembrou de debicar n´uma das suas paginas, respondemos: ‑ Escapou, sim senhor” (1885, p. 57).

Como elemento de leitura e fruição, ao mesmo tempo em que é instrumento de lazer e de informação, o Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro é dirigido por seus editores com uma atenta seleção dos textos recebidos, evitando as participações marcadamente críticas e combativas de seus colaboradores, o que certamente traria à nossa colação um perfil mais completo dessa elite intelectual africana oitocentista que perscrutamos.

Colocamos, assim, algumas reflexões acerca da possibilidade de existência de um discurso protonacional que começaria a ser construído no final do século XIX da imprensa dos espaços de língua portuguesa do continente africano.

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Desse modo, teríamos uma expressão política desses indivíduos na imprensa local, produzindo um discurso sobre o seu próprio lugar, a sua própria sociedade.

Podemos apontar no final do século XIX, um período de intensa atividade da imprensa com uma produção literária peculiar que nos chama a atenção e merece destaque no tocante às reflexões sobre uma primeira fase nacionalista ou protonacionalista em algumas das então chamadas províncias ultramarinas portuguesas do continente africano. Uma fase incipiente, mas que faz parte de um processo de invenção nacionalista que Gellner e Hobsbawm enfatizam como uma engenharia na formação das nações, em que o nacionalismo toma culturas preexistentes, as inventa ou mesmo as oblitera completamente para a consolidação de um Estado ‑nação (Cf. Hobsbawm, 2002, p. 19). Nessa perspectiva, cabe ressaltar que não são os Estados ou as nações que promovem o nacionalismo, mas sim o contrário. É a construção desse sentimento de pertença, a consolidação do nacionalismo, que levará ao surgimento da nação, e assim, do Estado ‑nação. A partir da concepção de nação e Estado ‑nação na era do liberalismo burguês durante o século XIX, um dos critérios que permitiam a um povo ser classificado como nação era a existência de uma elite cultural estabelecida, que possuísse um vernáculo administrativo e literário escrito. Assim, a identificação nacional era muito mais linguís tica, ainda que a língua nacional fosse falada apenas por uma pequena minoria inserida na elite intelectual local. São relevantes, pois, à nossa perspectiva de pesquisa e análise na imprensa oitocentista, notadamente no Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, os laços e vocabulários políticos dessa elite que estava diretamente ou indiretamente ligada às esferas de poder (instituições políticas e administrativas), ocupando cargos públicos da adminis‑ tração colonial portuguesa, assim como de uma certa burguesia local. A atuação desses escritores / jornalistas amadores seria a responsável pelas tentativas de generalização, extensão e popularização desse sentimento de pertença à terra africana, além dos ideais separatistas em relação à metrópole portuguesa.

Entretanto, antes mesmo de rotularmos esse período como um pré‑ ‑nacionalismo ou um protonacionalismo, não podemos nos esquecer de que a acepção do nacionalismo moderno requer a ligação com uma unidade de organização política territorial, e o parâmetro colonial não era contestado completamente naquele momento, haja vista que aquela elite, apesar de manter uma postura mais aguerrida, não estava ainda voltada a uma práxis de defi‑ nitiva ruptura com a metrópole portuguesa (independência). Nesse sentido, encontramos algumas referências nas colaborações africanas do Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, entre estas, uma de direta e explícita relação com uma postura independentista angolana, em que Joaquim Cordeiro da Matta faz uma homenagem póstuma a José de Fontes Pereira:

Está de luto o jornalismo angolense! José de Fontes Pereira, o denotado pro‑ pugnador dos interesses da sua pátria, o estrenuo separatista, já não existe! [...] Contristou ‑me immenso a morte d´este prestante angolense. Lamentei ‑a como se fosse a d´uma pessoa de minha família. (Mas o que são os nativos d´uma terra, senão uma só família?) (Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, 1894, pp. 419 ‑422)

Nas páginas do Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, Cordeiro da Matta ainda descreve extensamente as qualidades jornalísticas do homenageado, chamando ‑o de “fiel depositário das tradições da terra”:

Foi durante muitos annos um funcionario incansável, e como jornalista, no período de vinte e sete annos, foi correspondente d´alguns jornaes da metropole e collaborou em quase todos os jornaes que se publicaram na capital d´esta província. (Almanach

de Lembranças Luso ‑Brasileiro, 1894, pp. 419 ‑422)

Os jornais que tiveram a sua colaboração foram A Voz do Minho (Valença), O Campeão das Províncias (Aveiro), O Século (Lisboa), todos da metrópole portuguesa, além dos jornais da região de Luanda como Mercantil, Cruzeiro do Sul, Jornal de Lo anda, Echo de Angola, O Futuro de Angola, Ultramar, Pharol do Povo, Imparcial, A rauto Africano e Desastre.

Apesar de José de Fontes Pereira não aparecer entre os colaboradores do Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, trata ‑se de um jornalista extremamente ativo, cuja atuação questiona e problematiza a máquina colonialista portuguesa, destacando ‑se na imprensa em Angola, como também em Portugal. Nesse sentido, trazemos um excerto de um texto seu publicado no jornal O Futuro d´Angola, cujo título muito diz por si próprio, “A Independência d´Angola”:

[...]

Assim como respeitamos as suas glorias e os grandes homens que immortalizaram Portugal detestamos e regeitamos sua deleteria administração. Aceital ‑a tal qual a vemos hoje applicada nas colônias em geral sem protestar, seria um crime de lesa liberdade. A emancipação d´um povo tanto se pode fundar nas suas riquesas naturaes bem desenvolvidas, na vasta illustração de muitos dos seus concidadãos, como se [?]. E dispotismo da nação que o detinha.

O Brazil que desenvolveu as suas riquesas naturaes á custa dos milhares de braços arrancados a esta provincia com a coadjuvação do governo da metropole; o Brazil para onde affluia a imigração sempre crescente de Portugal e que teve no seu seio a corte, achou se em breve apto para proclamar a sua independência.

A Angola, a quem roubaram os braços, que lhe [estragaram?] os campos; a quem se negam escholas e tudo quanto pode concorrer para o seu engrandecimento, assiste o direito de [extinguir?] o jugo que o opprime e esphacela, e escolher quem, sem o subjugar o [proveja?] de toda a proteção para o seu desenvolvimento moral e intellectual.

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Portugal dando o impulso ao florescimento de Brazil, deu ‑lhe tambem a liberdade. Portugal negando nos durante 400 annos esse mesmo impulso autorisa ‑nos a trabalhar pela nossa emancipação.

O proteccionismo não traz em si a idêa do jugo.

O Brazil quando se viu ultrajado pelo governo inglez, collocou os seus navios sob a proteção da bandeira da União Americana, que não exerceu pressão alguma sobre a sua protegida. E, no entanto, o Brazil é um império com 12 milhões de habitantes, rico, com um exercito disciplinado de 30 mil homens em tempo de paz, e mais de 200 mil em pé de guerra; e que conta uma esquadra de mais de 60 navios, sendo muitos de moderno sistema.

É mais justificável o nosso protectorado dado o caso que o pretendamos. Não temos capitaes, a população não excede a 500 mil almas: o exercito compõe se de 2.500 praças (pelo orçamento) sem disciplina; esquadra não temos, nem commercio, nem agricultura, nem industria, nem instrucção, nem egrejas, nem re ligião, nem nada! Quão bem empregados não tem sido os quatro [séculos] da oc cupação e domínio portuguez em Angola!!!

(O Futuro d´Angola, 49, 21 out 1887, p. 1)

A crítica do defensor da independência de Angola, não se faz apenas à metrópo le portuguesa, mas também ao Brasil. Se de um lado, a ex ‑colônia permanece como um modelo, para quem a metrópole contribuiu para que a sua emancipação fosse conquista da, de outro, também recebe críticas, haja vista que foi à custa da exploração perpetuada pela metrópole em Angola, que foi possível a independência brasileira. É de notar que a ideia de protecionismo colocada por José de Fontes Pereira, não traz consigo o peso da exploração ou da dominação. O jornalista reclama outra forma de administração coloni al, sem que haja o “crime de lesa liberdade”, o que traz a percepção de uma tolerância ao domínio colonial em razão da fragilidade estrutural de Angola, desprovida dos favo recimentos que a metrópole portuguesa proporcionou ao Brasil.

Este exemplo da colaboração de José de Fontes Pereira ao jornal O Futuro d´Angola demonstra as diferenças que podemos encontrar entre periódicos mais críticos em razão da sua direção e local de publicação e o Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, que mantinha um caráter de distanciamento das questões polí‑ ticas coloniais e mesmo metropolitanas. No entanto, é possível inferir a postura de outros colaboradores do Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, que, como Cordeiro da Matta, intentavam outros meios de representação literária de um novo sujeito que começava a surgir no final do século XIX, e que não estava mais completamente ligado à metrópole. Alguns destes colaboradores como Campos Oliveira (Moçambique), Francisco Stockler (São Tomé) e Guilherme Dantas (Cabo Verde) afastaram de sua escrita os estereótipos perpetuados pelo

colonizador, muito embora aquela ainda permanecesse vinculada/engessada a um modelo de referências metropolitanas e ocidentais.

Notável, sem dúvida, é a atuação de Cordeiro da Matta que, como colaborador do Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro, esteve presente em vários números desse periódico, entre os anos de 1879 e 1897. Com uma participação incansável, buscava re produzir os caminhos necessários à construção de uma literatura pátria angolense. Des tacamos, nesse sentido, um trecho da resenha ao seu livro Delírios, publicada no jornal O Arauto Africano, em que Mamede de Sant´Anna e Palma elogia o compatriota:

[...]

O mancebo a que me refiro é o meu dedicado amigo Joaquim Dias Cordeiro da Matta. Não cursou universidades, nunca esteve em collegio nenhum da Europa, nem em escola nenhuma de Loanda; e é por isso mesmo que tem jus ao elogio universal, á consideração dos seus contemporâneos, á estima dos seus patrícios e ao respeito dos homens illustrados; porque á força de muita [?] tem querido honrar o seu paiz, legando á posteridade o fructo da sua dedicação – uma obra primorosa, em fim.

[...]

E oxalá Deus vos torne mais feliz, para que um dia vosso nome figure nos lastros patrios.

(O Arauto Africano, 9, Loanda, 19 mai 1889, pp. 3 ‑4)

Para além das dificuldades que uma língua comum inexistente à grande maioria pudesse causar, a escolha feita naquele momento foi a língua de prestígio em razão do poder exercido pelo colonizador. Toda a administração e a pouca e única escolarização realizada em língua portuguesa impingiam essa escolha, muito embora possamos encon trar em variados periódicos o uso do bilinguismo (Angola e Moçambique) ou da língua crioula (Cabo Verde, São Tomé e Guiné). A subversão da língua portuguesa, assim, passava pelas iniciativas de criação literária (poesia e pequenas narrativas) que traziam, em geral, a língua da etnia dominante local. (Exemplos: quimbundo em Jornal de Loanda e ronga em O Africano). No entanto, não encontramos um padrão de criação que se mantivesse ao longo das publicações consultadas.

No caso dos autores de Moçambique presentes no Almanach de Lembranças Lu ‑so ‑Brasileiro, é figura de destaque o poeta José Pedro da Silva Campos Oliveira, nasci do na Ilha de Moçambique em 1847, e que viveu vários anos em Goa. Funcionário da administração e jornalista, esse autor também foi diretor do Almanaque Popular (1864 ‑1866, Margão) e da Revista Africana (1885 ‑1887, Ilha de Moçambique). Colaborou em numerosos periódicos como O Progresso, Noticiário de Moçambique, Jornal de Mo çambique, Illustração Goana, etc. Muito

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embora seja considerado por alguns como o mais antigo escritor moçambicano, o “poeta d´África”, como o chamava Arthur Serrano, Campos Oliveira não foi além das qualidades poéticas inerentes às circunstâncias lírica e sentimental do Romantismo. Na sua obra, à exceção do poema “O pescador de Moçambique”, não parece haver qualquer traço de componentes socioculturais inerentes à realidade moçambicana, nem tampouco, questões afeitas à problematização do colonialismo português ou à reivindicação independentista.

Nessa perspectiva, é que seguem as considerações de José Capela em relação à imprensa moçambicana. Se de um lado temos uma considerável atividade jornalística desde a instalação do prelo oficial em 1854, como se verifica do Catálogo dos Periódi cos e Principais Seriados de Moçambique, de Ilídio Rocha, de outro lado, é incontestá vel que o primeiro periódico de perfil africano, como aponta José Capela, será fundado somente em 1908 pelos irmãos Albasini. E Capela vai além, em relação aos numerosos periódicos que surgiram na segunda metade do século XIX, não apenas na capital Ilha de Moçambique, como também em outras cidades como Inhambane e Quelimane:

Outros títulos apelando para a africanidade nada representam mais do que um mimetismo. [...] A publicação é africana porque é moçambicana pela naturalidade e pela paternalidade, mas nem a estética que a caracteriza nem os objectivos que persegue se fundamentam em raízes africanas. (Capela, 1996, p. 15)

Entretanto, verificamos que Campos Oliveira não estava completamente alheio às questões africanas se cotejarmos algumas colaborações oriundas de Moçambique ao Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro e a outras publicações do mesmo período. É o caso da produção literária de Arthur Serrano, reunida no livro de poesia Sons orientaes, publicado pela Imprensa Nacional em Maputo no ano de 1891, cujos poemas já haviam sido publicados em alguns jornais e no Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro. Um deles, publicado no Almanach de Lembranças Luso ‑Brasileiro para o ano de 1886, no seu Suplemento, e que tem por título “O Selvagem” (pp. 95 ‑96), traz uma importante perspectiva em relação a este autor que também assinava como Arthur S. Rano, ou simplesmente, S. Rano, de Quelimane. Nesse sentido, destacamos, do referido poema, os versos que seguem: [...] A noite é funda e triste: [...] [...] A branca e fresca brisa [...] [...]

Do preto na palhota ha lenha ainda accesa; Os fumbas, sobre o chão, estiram corpos nús,

E os filhos seus, boçáes, dormindo, que tristeza! Com pretas imbecis em cima de bambus. [...]

O poema dedicado a Lucio Velloso da Rocha, um negociante de Quelimane, traz uma terrível descrição dos moçambicanos, absolutamente eivada do olhar colonizador com todos os estereótipos possíveis, e assim segue por quatro estrofes (oitavas). Por essa razão, não nos espanta ao consultar as notas ao final do livro Sons orientaes, encontrar a seguinte explicação do seu autor:

AOS QUE LERAM

Quizemos fazer um livro puramente africano, mas não podémos conseguil ‑o tão absolutamente como desejavamos. Versos unicamente feitos em Africa, e impressos em typographia africana, são elles; mas ambicionavamos que fossem prefaciados por um poeta d´Africa.

Pedimos essa distincção ao único poeta que possuimos, a José Pedro da Silva Campos Oliveira, mas operou mais n´elle a influencia da raça e do clima, do que o nosso desejo, e nós vimo ‑nos privados do prazer de sermos apresentados por um homem de letras tão justamente apreciado.

Sabemos em demasia que a apresentação envergonhava o nosso poeta; mas tambem pensâmos que não era demais o sermos encaminhados, d´olhos vendados como vamos, por quem via tão bem e com tanta lucidez. Aos cegos faz ‑se sempre a esmola d´um bordão ou d´um braço onde se encoste, e o poeta foi duramente impellido por influencias proprias a deixar ‑nos cahir no pelago onde cahimos, sem pensar que, chegando vivos ao fim da ingreme ladeira, havíamos de dizer bem alto quanto fora deshumanitario e falto de caridade.

Mas, como temos a coragem para marchar sósinhos, ahi vamos caminhando por mãos amigas, crentes de que, sendo castigados, teremos sómente a soffrer nos fogos da indignação um auto de fé que nos fará desapparecer sem nos maguar. Doêr ‑nos ‑iam as labaredas se fossemos tão presumidos que podessemos, quando muito, pensar em ser classificados na ordem dos que sabem fazer poesia. (Serrano, 1891, pp. 91 ‑92)

Para além do citado poema “O pescador de Moçambique”, de Campos Oli‑ veira, esta observação de Arthur Serrano somada a outros trechos já encontrados de autoria do “poeta d´África”, permite ‑nos relativizar a apreciação de José Capela, que retira da figu ra de Campos Oliveira uma postura pela africanidade. O poema “O pescador de Moçambique”, nesse sentido, é exemplar:

Eu nasci em Moçambique, de paes humildes provim, a côr negra que elles tinham é a côr que tenho em mim; sou pescador desde a infancia

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e no mar sempre voguei, a pesca me dá sustento, nunca outro mister busquei. Antes que o sol se levante eis que junto á praia estou; se ao repoiso marco as horas, á preguiça não as dou; em fragil casquinha leve, sempre longe do meu lar,

ando entregue ao vento e ás ondas sem a morte receiar.

Ter continuo a vida em risco é triste coisa, não é?

mas do mar não teme as iras quem em Deus depõe a fé! É singela a recompensa da vida custosa assim! mas se a fome não me mata, que me importa o resto a mim? Vou da Cabaceira ás praias, deixo perto Mussuril, trage embora o céo de escuro ou todo seja d´anil;

de Lumbo visito as aguas a assim vou até Sancul, chego depois ao mar alto, sopre o norte, ou ruja o sul. Morre o sol? termino a lida para um pouco repoisar, e ao pé da mulher que estimo ledas horas ir passar:

da mulher doces caricias tambem quer o pescador, pois d´esta vida os pezares faz quase esquecer o amor! Sou pescador desde a infancia a no mar sempre voguei, a pesca me dá sustento, nunca outro mister busquei;

e em quanto tiver os braços a pá e a casquinha ali, viverei sempre contente n´este lidar que escolhi.

Trata ‑se de um poema de seis estrofes construído em versos de redondilha maior (oito sílabas), que é considerado o mais usado e mais popular das línguas portuguesa e espanhola. Neste caso, o “eu poético” faz questão de marcar logo no início do poema o seu local de origem, “nasci em Moçambique”, a sua condição social, “de paes humildes provim”, e a sua cor, negra, para só então, dizer que é um pescador. Importante exemplo este, que demonstra a importância do lugar de onde fala para este “sujeito poético”. O locus de enunciação se sobrepõe a todas as outras características desse sujeito, inclusive a sua cor. Destaca ‑se, também, o perfil desse pescador que se levanta antes mesmo do sol e conta as horas do repouso, mas não as dá à preguiça, como crítica ao estereótipo da preguiça nos

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