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Logo na primeira secção da coletânea poética O País dos Outros se manifesta

No documento Pelos mares da língua portuguesa 2 (páginas 74-78)

Vozes literárias da lusofonia: os intertextos de Rui Knopfl

2. Logo na primeira secção da coletânea poética O País dos Outros se manifesta

o valor concedido a escritores lusófonos. Na composição “Terra de Manuel Ban‑ deira”, Knopfli evoca o mito de Pasárgada, esse lugar de evasão e de concretização de todos os sonhos imaginado pelo brasileiro em diversas composições da obra poética Libertinagem (1930). Bandeira transforma esse espaço da Pérsia antiga num mítico regresso à felicidade da infância e do desejo de experimentar sensações de plenitude. Desde o verso inicial, Knopfli reitera a ambição que perpassa nos textos de Bandeira: “Também eu quisera ir ‑me embora / pra Pasárgada, / Também eu quisera libertar ‑me / e viver essa vida gostosa / que se vive lá em Pasárgada” (Knopfli, 2003, p. 44). Mas enquanto no poeta brasileiro o desejo de fuga é absoluto, na poesia do moçambicano colide com vivências felizes do momento e a perspetiva de as perder: “Como deixar ao abandono o olhar / luminoso dessa mulher que eu

1 Como assinala Pires Laranjeira (1995, p. 305), Knopfli assume na poesia “uma hesitação de identidade

ou, talvez melhor, uma aguda consciência de divisão interior entre dois mundos, na medida em que o determinismo do grupo étnico lhe demarcava o lugar no território de Próspero (o senhor), mas sem perda de simpatia pela miséria e sofrimento dos outros”.

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amo? / Quem responderá às inquietas / perguntas de minha filha pequena? / […] / E os meus mortos e as doces recordações, / as conversas de café e os passeios no / entardecer fusco da cidade? / E o cinema todos os sábados, segurando / com força a mão de minha mulher?” (Knopfli, 2003, p. 44).

Os versos finais da composição mostram que os prazeres antevistos em Pasárgada não são suficientes para realizar o desejo de evasão, ao contrário do que acontece no intertexto de Bandeira. Knopfli conclui assim: “Por isso é que eu não fujo / duma vez, pra Pasárgada” (Knopfli, 2003, p. 44).

Na secção final da mesma coletânea, o poeta altera o título do célebre poema “Lisbon Revisited” do heterónimo pessoano com o propósito de homenagear Fernando Pessoa: o título escolhido, “Pessoa Revisited”, antecipa uma apreciação não tanto do poema pessoano quanto do escritor do Primeiro Modernismo, evocado na sua “miopia”, “bigode estreito do manga ‑de ‑alpaca” (Knopfli, 2003, p. 95). De facto, toda a composição de Knopfli é um encontro imaginário entre dois escritores, que o poeta moçambicano interpreta como um imperativo: “Alguma vez todos os poetas /se encontram contigo. / Mesmo os menores como eu” (Knopfli, 2003, p. 94).

Revisitar Pessoa significa analisar a colisão que Knopfli observa entre vida literária e vida profissional – “O teu génio desmedido / frustrava em ti / o burocrata para uso externo” (Knopfli, 2003, p. 95) – e realçar a dimensão da criação literária, numa singular apreciação dos seus heterónimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis: o primeiro, “snob”; o segundo, de “frieza geométrica e longínqua” (Knopfli, 2003, p. 95).

No poema “Kaap Die Goeie Hoop” (incluído em Mangas Verdes com Sal), Knopfli evoca o criador de Mensagem. Trata ‑se de uma composição especial‑ mente relevante na recriação da viagem marítima dos Portugueses, no período das Descobertas, e da simbologia das adversidades por eles sofridas, na alusão ao Mostrengo: “Verdes vinhas de entre dois oceanos, / na lança antárctica da rosa ‑dos ‑ventos, / ao limite extremo do Cabo Fim. / Luxuriento, leito azul do Mostrengo // adormecido” (Knopfli, 2003, p. 337).

Em Máquina de Areia (1964), terceira coletânea poética de Knopfli, mantêm ‑se os diálogos com vozes da lusofonia: em primeiro lugar, numa citação paratextual da obra de Carlos Drummond de Andrade Sentimento do Mundo:

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.

……… O tempo é a minha matéria, o tempo presente,

Os homens presentes,

A citação peritextual serve uma estratégia de legitimação poética de vin‑ culação à realidade do presente. De igual modo, a presença do texto do poeta brasileiro demonstra a relevância concedida ao tempo, um dos motivos literários mais relevantes da obra poética de Rui Knopfli. Os poemas incluídos nesta coletânea analisam os efeitos negativos do fluir temporal e revelam uma inquietação com a ideia de morte, traduzida em composições como “Certidão de óbito” e “Epitáfio”.

Cinco anos mais tarde, Knopfli publicaria a coletânea Mangas Verdes com Sal e nela evidenciaria a relevância que outorga a escritores portugueses, com destaque para Miguel Torga – evocado na composição “Ars Poética” como “Poeta de S. Martinho da Anta” (Knopfli, 2003, p. 191) – e Luís de Camões, qualificado como Épico, mas recuperado pela citação de uma composição lírica: “A ua moça de olhos verdes que o poeta tomara por azuis” (Knopfli, 2003, p. 197). A metamorfose revela um desejo de demonstrar que a cor dos olhos de uma mulher amada é um elemento irrisório no seu elogio. E o mesmo acontece com a cor da pele: o tom parodístico do poema não oculta uma rejeição explícita da discriminação racial nas relações amorosas:

Que importa? Verdes em ti, Reflectindo azul em meu olhar, Eles são apenas belos

[…]

Se o próprio Épico não discriminava, Não era discriminatório, digo, Em matéria de mulheres, Bastando ‑lhe,

Independentemente da coloratura, Que fossem do sexo oposto (Dinamene não era escura?) Porque não haveremos de relegar Este pormenor à conta

De liberdade metafórica (Knopfli, 2003, p. 197 ‑8)

Mais significativa na recuperação de aspetos da biografia camoniana e na manifestação da ausência de reconhecimento dos seus compatriotas é a com‑ posição poética “Glosa de Camões”. Nela recupera Knopfli topoi que o poeta renascentista havia já confessado no derradeiro canto de Os Lusíadas. Procura insistir na ideia de que, muito embora a passagem do tempo tudo possa apagar – mesmo a memória de um poeta imortal como Camões –, a sua rememoração constituirá um momento de felicidade ou, como se lê na citação da canção camoniana, “de viver triste sou contente” (Knopfli, 2003, p. 334).

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VOZES LITERÁRIAS DA LUSOFONIA: OS INTERTEXTOS DE RUI KNOPFLI

A coletânea em análise é particularmente relevante no que toca às relações dialógicas da obra poética de Rui Knopfli com escritores da lusofonia: o moçam‑ bicano confessa ‑se na poesia lírica “Contrição” herdeiro de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Manuel da Fonseca, Miguel Torga, José Régio, Alexandre O’Neill, Augusto Gil, António Nobre, João de Deus, Herberto Helder, Jorge de Sena e Camões, para além de escritores de países não lusófonos.

O título da composição adianta um tom intimista através do qual o sujeito poético reconhece que “a letra indecisa dos meus versos” necessita de buscar em noites de vigília “palavras e seus modelos” (Knopfli, 2003, p. 210). O uso de diversos termos semanticamente próximos ‑ “roubada”, “colhido”, “decalcado”, “furto”, “subtraio”, “pilho” ‑ e a apropriação poética do lema de Robin Hood na expressão “roubar aos ricos para dar a este pobre, sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas” (Knopfli, 2003, p. 211) ‑ demonstram uma assumida consciência da influência de escritores na sua construção poética.

O reconhecimento de heranças literárias marca de modo determinante a obra poética de Rui Knopfli2. Torna ‑se também relevante, neste âmbito, o título do

poema “Hereditariedade” e as influências que o sujeito poético identifica na sua própria construção literária: de poetas franceses como François Villon, Charles Baudelaire e Paul Verlaine; de escritores portugueses como Bocage, Pessoa e Manuel Laranjeira; do dramaturgo inglês William Shakespeare.

Se se atentar de seguida na coletânea poética de 1972, A Ilha de Próspero, forçoso será concluir que Rui Knopfli continua a insistir nos diálogos intertex‑ tuais entre a sua obra literária e escritores da lusofonia. Mantém tal presença a partir de referências em epígrafes: neste caso concreto, à obra de Jorge de Sena, Peregrinatio ad Loca Infecta, cujos versos iniciais são citados: “Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria / de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações / nasci” (Knopfli, 2003, p. 311).

A citação evoca o topos do semi ‑heterónimo pessoano Bernardo Soares – “A minha pátria é a língua portuguesa” – e reforça a relevância da língua portuguesa na construção literária de Rui Knopfli e na sua própria identidade como escritor da lusofonia. O mesmo Jorge de Sena viria a ser citado na epí‑ grafe da coletânea O Escriba Acocorado (1978): “Estava velho / e não havia / em Portugal espaço pra morrer ‑se” (Knopfli, 2003, p. 375). Esta citação pode ler ‑se como um desejo de aproximação biográfica do poeta moçambicano com

2 Como assinala Fátima Monteiro (2003, p. 29), “As primeiras influências literárias propriamente ditas, segundo

o mesmo Knopfli, vêm ‑lhe do neo ‑realismo português e do modernismo brasileiro (particularmente de Bandeira e Carlos Drummond de Andrade), assim como de Cesário Verde, Pessoa e Camões. Mas insiste que cedo se envolve, também, com a anglofonia, durante as suas idas à África do Sul. São essas ‘fugas’, como as designa, que lhe permitem a descoberta de Yeats, Wordsworth e Eliot”.

o escritor português: tal como este, também aquele sentiu que o seu país natal não legitimou o seu mérito literário.

De resto, é constante em Knopfli a preocupação com o reconhecimento literário. Tal inquietação é declaradamente expressa na epígrafe peritextual que abre a coletânea O Corpo de Atena (1984): aí, a citação dos versos camonianos “E sabei que segundo o Amor tiverdes, / tereis o entendimento dos meus versos” (Knopfli, 2003, p. 425) manifesta aquela ambição, que o poeta renascentista quatro séculos antes confessara, de ver gratificado o seu labor poético, ao mesmo tempo que se conclui da existência de idêntico sofrimento diante da sua ausência. De facto, tal como no final de Os Lusíadas Camões lamentava a indiferença dos seus compatriotas – “venho / cantar a gente surda e endurecida. / O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a Pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / D’uma austera, apagada e vil tristeza” (Camões, 1989, p. 283) –, assim Knopfli sente com amargura que os seus detratores são inúmeros e o seu mérito literário não é autenticado.

Na sua derradeira coletânea poética, O Monhé das Cobras, publicada no ano em que viria a falecer, Rui Knopfli retoma essa vertente do dialogismo com as literaturas não africanas e, em particular, com dois escritores que marcam de modo indelével toda a sua criação poética: Camões, rememorado na composição “Cabo Camões” e William Shakespeare, recordado como criador da personagem de Yorick. Camões é evocado na sua vertente humana, assistindo ‑se assim no texto a uma contaminação entre o poeta renascentista e o modernista Fernando Pessoa. A cegueira do poeta gera um sentimento de proximidade emocional, que é intensificado pela alusão pessoana ao “guardador de rebanhos”.

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