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Identificação do entendimento dominante

3. O ESTADO DA QUESTÃO: O ELEMENTO SUBJETIVO COMO REQUISITO PARA

3.1. Identificação do entendimento dominante

Conforme visto acima, o entendimento atualmente dominante sustenta que o elemento subjetivo na fraude de execução seria a má-fé, tanto do devedor quanto do terceiro, sendo tal má-fé decorrente da ciência da ação pendente, seja a fundada em direito real (art. 593, I, CPC), seja a que possa reduzir do devedor à insolvência (art. 593, II, CPC).

Sustenta, ainda, que a relevância desse elemento subjetivo seria total, de modo que, além dos requisitos previstos nos artigos 592, V, e 593 do CPC, somente estaria configurada a fraude de execução se estivessem presentes (i) a ciência do devedor da pendência da ação, ou porque já houve a citação, ou porque ficou provada por outro modo; e (ii) a ciência do terceiro da pendência da ação, ou porque há notícia dela em registro público, ou porque ficou provada por algum outro meio, sendo o ônus da prova desses dois fatos exclusivo do credor.

Com o intuito de melhor identificar esse entendimento dominante para adiante confrontá-lo com nossa hipótese, passamos a explorar os principais argumentos em que se sustenta.

Inicialmente, vamos analisar a má-fé do devedor decorrente de sua ciência da ação. Para sustentar esse requisito, que se exige indistintamente para as hipóteses dos incisos I e II do artigo 593, CPC, apresentam-se dois argumentos.

O primeiro consiste no fato de que a ação ainda não estaria "pendente" a não ser que o devedor já tivesse sido validamente citado. É a lição de SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: "somente a citação válida surte os efeitos previstos do art. 219 do

CPC. Antes da angularização da relação processual inocorre a fraude de execução, somente podendo cogitar-se, até então, da fraude contra credores."102

O segundo argumento é no sentido da impossibilidade de haver vontade de o devedor fraudar a execução sem que ele tenha ciência do processo, o que só ocorre, em regra, com a citação.

Nesse sentido, afirma DINAMARCO que “essa fraude não tem absolutamente como se caracterizar antes que um processo haja sido instaurado (formado) mas não é exato dizer que a simples formação do processo pela propositura da demanda já crie sempre, por si mesma, o clima propício à fraude executiva. Em princípio, reputa-se momento inicial do processo, para o fim de caracterização da fraude executiva, aquele em que é feita a citação do demandado e não aquele em que o processo tem início (propositura da demanda); só então ele fica ciente da demanda proposta, não sendo razoável nem legítimo afirmar uma fraude da parte de quem ainda não tenha conhecimento da litispendência instaurada (poderá sim ocorrer fraude contra credores)... Mas essa razão cessa quando por algum modo o demandado já tiver conhecimento da pendência do processo, antes de ser citado; essa é uma questão de fato a ser apreciada caso a caso, sendo legítimo considerar até mais maliciosa a conduta daquele que se furta à citação com o objetivo de desfazer-se de bens ou onerá-los antes que esta se consuma." 103

102TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Fraude de execução, cit., p. 12. Ainda nessa linha: Araken de Assis:

“consoante dispõem os artigos 263, 2ª parte, e 219, do CPC, a litispendência decorre da citação válida. E isso, porque se destina a produzir o efeito da 'pendência' da lide perante o réu, não se relacionando, absolutamente, à constituição da relação processual linear entre o autor e o Estado (art. 263, 1ª parte). É a partir da data em que ocorreu a citação válida do réu, portanto, que se passará a cogitar da fraude de execução.” (ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., p. 246).

Também esse o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive por sua Corte Especial: “para que se considere a alienação em fraude de execução não é suficiente o ajuizamento da ação. Há, para tanto, necessidade da citação válida do executado para demanda com possibilidade de convertê-lo à insolvência" (STJ, 4ª T., REsp. 2.573-RS, rel. Min. Fontes de Alencar, j. 14.05.90); "não é possível a declaração de fraude de execução sem a existência de demanda anterior com citação válida" (STJ, Corte Especial, EREsp. 259.890/SP, rel. Min. José Delgado, j. 02.06.04); "a alienação ou oneração de bens, antes da citação válida, não configura fraude de execução" (STJ, 4ª T., AgRg no REsp 316.905/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.11.08).

103DINAMARCO, Cândido Rangel. As fraudes do devedor, cit., v. 4, p. 443. Também nesse mesmo sentido,

Carlos Alberto Carmona: “o réu só pode cometer ato que objetive fraudar o processo se estiver ciente da existência desse mesmo processo, o que ocorrerá com a citação.(...) Se o credor puder provar que antes mesmo da citação o devedor teve conhecimento da existência da demanda, alienando seus bens para impedir a excussão patrimonial, não parece despropositado abrir exceção à regra para abarcar o ato na fraude de execução” (in MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo Civil interpretado, cit., p. 1.951), Paulo Henrique dos Santos Lucon: "antes da penhora, os requisitos caracterizadores da fraude de execução podem ser assim elencados: a) ato jurídico que importe a alienação ou oneração de bens; b) capaz de reduzir o devedor à insolvência; c) após a sua citação em processo cognitivo ou executivo ou, ainda, o seu conhecimento inequívoco da existência da demanda por qualquer meio possível de ser provado

Já no tocante à exigência da má-fé do terceiro, configurada por sua ciência da demanda pendente, diferem os argumentos quanto às hipóteses dos incisos I e II do artigo 593 do CPC.

No primeiro caso, das ações fundadas em direito real, argumenta-se que a presente Lei de Registros Públicos exige – como antes exigia o Decreto n.º 4.857/1939 – o registro da citação. Nesse sentido: ALCIDES DE MENDONÇA LIMA: "não basta, porém, a simples ação em juízo, já proposta, isto é, com a citação do réu (art. 263, 2ª parte, deste Código), para que a 'fraude de execução' se caracterize de modo absoluto, envolvendo o terceiro adquirente. É indispensável a formalidade da inscrição da citação do réu em tais ações no Registro de Imóveis, referentes aos bens (Decreto n.º 4.857, de 19.11.1939, art. 178, letra a, VI e VII; e art. 279 a 281, que regulou os Registros Públicos; e, presentemente, desde 1º.1.1976, a Lei n.º 6.015, de 31.12.1973, art. 168, I, letra t, e art. 169). (...) Cabe ao exequente, sem a inscrição, o "ônus de provar que o adquirente tinha conhecimento de que sobre os bens está sendo movido litígio fundado em direito real."104

No segundo caso, referente às ações que podem reduzir o devedor à insolvência, originalmente, o argumento também se baseia no registro – hoje averbação – da penhora, também prevista na Lei de Registros Públicos, mais precisamente em seus artigos 167, I, 5, 169 e 240. No entanto, após as reformas processuais implementadas pelas Leis n.os 8.953, de 14 de dezembro de 1994, 10.444, de 7 de maio de 2002, e 11.382, de 6 de dezembro de 2006, o entendimento dominante também passou a fundamentar-se no § 4º do artigo 659 e no artigo 615-A, que foram então introduzidos no CPC.

Nesse sentido, SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA: "inexistindo registro da citação (hipóteses dos ns. I e II do art. 593 do CPC) ou do gravame judicial, ao credor cabe

judicialmente (p. ex. notificação)" (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Fraude à execução, responsabilidade processual civil e registro da penhora, cit., p. 132) e Ricardo Chemale Selistre Peña (Fraude à execução, cit., p. 73).

104LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., v. 6, t. 2, p. 567-568,

referindo-se à numeração antiga da Lei n.º 6.015/1973. Também nesse sentido, Teori Albino Zavascki: "na hipótese do inciso I, há que se ter como relativa, e não absoluta, a presunção de que o terceiro, participante do negócio, conhecia a litigiosidade instalada sobre o bem. Em se tratando, porém, de bem imóvel, o registro da citação no ofício imobiliário, previsto no artigo 167, I, 21, da Lei 6.015, de 31.12.1973, é 'prova presumida irrefragável de conhecimento das condições legais de fraude por parte de terceiro." Se o registro não tiver sido lavrado, nem por isso se descarta a fraude, e a questão se resume então em definir a quem cabe o ônus de provar a ciência, pelo terceiro, da pendência da ação." (ZAVASCKI, Teori Albino.

o ônus de provar a ciência, pelo terceiro, adquirente ou beneficiário, da existência da demanda ou do gravame."105

Também nesse sentido, a já citada súmula 375, editada em 18 de março de 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça: “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.” Tal súmula, como sói acontecer, deve representar a consolidação da jurisprudência firme daquele tribunal.106

No entanto, tínhamos ciência de que, nos anos de 2007 e 2008, havia pelo menos três acórdãos do próprio Superior Tribunal de Justiça em sentido diverso do fixado na súmula 375,107 indicando a existência de certa oscilação na jurisprudência.108

105TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Fraude de execução, cit., p. 12. Também nessa linha: Paulo Henrique

dos Santos Lucon: "a falta de registro não impede a alegação de fraude de execução, mas tem conseqüência direta sobre o ônus da prova. Isso significa, em síntese, que o exeqüente, sem o registro da penhora, tem o encargo de provar a má-fé do adquirente como imperativo de seu interesse. Ou seja, competirá ao exeqüente provar que o adquirente tinha conhecimento de que estava sendo movida em face do alienante demanda capaz de provocar um substancial desequilíbrio patrimonial de tal modo que ficaria insolvente." (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Fraude à execução, responsabilidade processual civil e registro da penhora, cit., p. 139); Cledi de Fátima Manica Moscon: "é de se concluir pela necessidade da citação o demandado como marco temporal inicial a configurar, em fraude de execução, os atos de disposição praticados pelo devedor. Entretanto o critério não deve ser rígido, comportanto prova inequívoca da ciência do réu da demanda em curso, mesmo antes de citado (...) a scientia fraudis há de ser exigida para que o terceiro adquirente sofra os efeitos da constrição dos bens adquiridos" (MOSCON, Cledi de Fátima Manica. Fraude de execução judicial, cit., p. 104 e 118).

106Essa a lição de Barbosa Moreira: "a palavra 'súmula' sempre se empregou – em perfeita consonância com a

etimologia e os dicionários – para designar o conjunto das proposições em que se resume a jurisprudência firme de cada tribunal" (BARBOSAMOREIRA,José Carlos.A Emenda Constitucional 45 e o processo. In:______.Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 27).

107Cf. os seguintes trechos dos acórdãos que, ao contrário da Súmula 375, entendem que cabe ao terceiro o

ônus de provar sua boa-fé: "cabe ao comprador do imóvel provar que desconhece a existência da ação em nome do proprietário do imóvel, não apenas porque o art. 1.º, da Lei n.º 7.433/85 exige a apresentação das certidões dos feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura pública de alienação de imóveis, mas, sobretudo, porque só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé, o comprador que toma mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição" (STJ, 3ª T., REsp 655.000/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23.08.07); "o inciso II, do art. 593, do CPC, estabelece uma presunção relativa da fraude, que beneficia o autor ou exeqüente, razão pela qual é da parte contrária o ônus da prova da inocorrência dos pressupostos da fraude de execução" (STJ, 3ª T., REsp 618.625/SC, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.02.08); e "a presunção relativa de fraude à execução pode ser invertida pelo adquirente se demonstrar que agiu com boa-fé na aquisição do bem, apresentando as certidões de tributos federais e aquelas pertinentes ao local onde registrado o bem e onde tinha residência o alienante ao tempo da alienação, em analogia às certidões exigidas pela Lei n. 7.433/85, e demonstrando que, mesmo de posse de tais certidões, não lhe era possível ter conhecimento da existência da execução fiscal" (STJ, 1ª T., REsp. 751.481/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 25.11.08).

108 Tal fato foi comentado pela doutrina especializada: "a nova orientação da 3ª Turma do STJ, a respeito do

ônus da prova da (in)ocorrência da fraude de execução é a de que cabe ao terceiro-adquirente o ônus de provar, nos embargos de terceiro, que, mesmo constando da escritura de transferência de propriedade do imóvel a indicação da apresentação dos documentos comprobatórios dos feitos ajuizados em nome do proprietário do imóvel, que não lhe foi possível tomar conhecimento desse fato. (...) Essa mudança de entendimento é salutar, porquanto a jurisprudência prevalente até então tornava extremamente difícil para o credor a prova da fraude à execução, o que acabava por privilegiá-la. Espera-se que, agora, a 4ª Turma do

A existência desses acórdãos, somada à constatação de heterogeneidade entre os vinte e um precedentes que embasaram a edição da súmula 375,109 levou-nos a empreender análise jurisprudencial mais ampla, não só para aferir que o entendimento dominante efetivamente era o da súmula 375 – conclusão que era esperada e que, de fato, se confirmou –, mas também para verificar se existiam linhas determinantes na evolução do entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema objeto desta tese, principalmente em razão das reiteradas alterações na legislação infraconstitucional.110

Com base na análise empreendida, pode-se concluir que, para o entendimento dominante, o elemento subjetivo relevante para a configuração da fraude de execução é a má-fé tanto do devedor quanto do terceiro, sendo que essa má-fé decorre da ciência da ação pendente.111 E, ainda, que tal elemento subjetivo constitui verdadeiro requisito para a configuração da fraude de execução, somando-se aos previstos nos artigos 592, V, e 593 do CPC.112

STJ também siga essa orientação, a fim de que se unifique esse entendimento no âmbito da 2ª Seção." (MOREIRA, Fernando Mil Homens. Rápida exposição sobre a nova orientação da 3ª turma do STJ a respeito do ônus da prova da (in)ocorrência de fraude à execução. Revista de Processo, São Paulo, v. 33, n. 161, p. 242, jul. 2008).

109De fato, entre esses 21 precedentes, encontramos (i) hipóteses distintas de fraude de execução: 16 acórdãos

tratam do inc. II do art. 593, CPC, enquanto os outros 5 tratam de execução fiscal prevista no inc. III do art. 593, CPC c/c art. 185, CTN; (ii) bases fáticas distintas: 14 acórdãos tratam de casos em que a alienação ocorrera antes da penhora, contra apenas 7 em que a alienação se deu após a constrição; (iii) diversidade de pessoas envolvidas: 11 acórdãos tratavam de casos envolvendo terceiros mediatos, contra 10 envolvendo terceiros imediatos. O relatório da análise que nos permitiu verificar essas heterogeneidades encontra-se no Apêndice 1 desta tese.

110Para maior homogeneidade, nossa pesquisa teve por base apenas acórdãos que versassem sobre a hipótese

do inciso II do artigo 593 do CPC, julgados pela Corte Especial, 2ª Seção e pelas 3ª e 4ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, buscando, em razão da competência desses órgãos, eliminar ao máximo casos referentes às hipóteses do inciso III, notadamente casos de execução fiscal e de falência ou recuperação judicial, pois envolvem não apenas situações distintas, mas também a aplicação de normas e princípios diversos. Pelos critérios utilizados, obteve-se base de dados formada por mais de 200 acórdãos, que foram analisados conforme o relatório que está no Apêndice 2 desta tese e cujos dados serão utilizados nos próximos capítulos.

111Confirmou-se, portanto, a percepção de Dinamarco no sentido de que “ao falar em má-fé, aquela Súmula

está aludindo simplesmente ao conhecimento, pelo adquirente da pendência processual – quer seja ela cognitiva ou executiva; e que o registro da penhora serve somente para dispensa dessa prova" (DINAMARCO, Cândido Rangel. As fraudes do devedor, cit., p. 446).

112Também se confirmou, portanto, a constatação de diversos doutrinadores, entre os quais Luiz Rodrigues

Wambier e Eduardo Talamini ao afirmarem que "há clara orientação na jurisprudência (especialmente do Superior Tribunal de Justiça) no sentido de reputar imprescidível a ciência, pelo adquirente, da demanda fundada em direito real ou capaz de reduzir o devedor à insolvência. Ainda de acordo com esse entendimento, quando levada a registro público a pendência da demanda (exemplo: Lei n.º 6.015/73, art. 167, I, 21), estabelece-se presunção absoluta de sua ciência pelo adquirente. Caso contrário, é ônus do credor provar que o adquirente sabia da existência da ação." (WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. 10ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009. v. 2, p. 137).