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Irrelevância do elemento subjetivo do devedor

5. CONFRONTO ENTRE O ENTENDIMENTO DOMINANTE E A HIPÓTESE PROPOSTA À LUZ

5.2. Irrelevância do elemento subjetivo do devedor

O segundo ponto de confronto entre o entendimento dominante e a hipótese aqui proposta diz respeito à relevância ou irrelevância da má-fé do devedor para a configuração da fraude de execução.

Em relação a ele, já analisamos no item 3.1, supra, que o entendimento dominante sustenta a necessidade ciência do devedor fundamentando-se em dois argumentos distintos, quais sejam, (i) o processo somente estaria pendente quando de sua citação; e, (ii) ainda que se considerasse pendente o processo antes da citação, somente seria razoável supor a fraude do devedor se esse já tivesse conhecimento da ação.

A nosso ver ambos os argumentos encontram-se suficientemente refutados pela doutrina processual com base na interpretação da legislação vigente.

Quanto ao primeiro argumento, a análise histórica feita no item 4.4, supra, evidenciou que, ao contrário do sistema do código de 1939, o CPC atual estabelece em seus artigos 262 e 263 que "o processo civil começa por iniciativa da parte",

considerando-se "proposta a demanda, tanto que a petição inicial seja despachada pelo juiz, ou simplesmente distribuída onde houver mais de uma vara."

Até mesmo a truncada redação do artigo 219 corrobora essa interpretação. Portanto, tendo sido proposta a ação – o que ocorre no mais das vezes com a distribuição da petição inicial no cartório distribuidor –, a fraude de execução já pode ser configurada.

Sobre a ausência de base legal para esse primeiro argumento, MARIA BERENICE DIAS sustenta que "fixando a lei processual, em seu art. 263, o momento em que se instaura a relação jurídica processual: ‘considera-se proposta a ação tanto que a petição inicial seja despachada pelo Juiz, ou simplesmente distribuída, onde houver mais de uma Vara’, e estabelecendo o seu art. 593 como pressuposto para comprovar a fraude de execução, a existência de demanda, não se pode afastar tal marco para momento posterior, sem que isso disponha de falta de absoluto respaldo legal." 268

Apesar de ser ainda minoritário, o entendimento que dispensa a citação do devedor para se considerar pendente a ação tem persistido e, ao longo dos últimos anos, tem ganhado força no âmbito doutrinário, angariando cada vez mais novos defensores.269

primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 60 e 67, respectivamente.

268DIAS, Maria Berenice. Fraude à execução (algumas questões controvertidas). Ajuris: revista da

Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 17, n. 50, p. 75-76, nov. 1990.

269Cf. Haroldo Cabral Figueiredo (Fraude de execução. Jurisprudência Brasileira, n. 104, p. 13-15, 1985);

José Sebastião de Oliveira (Fraude à execução, cit., p. 76); Pedro dos Santos Barcelos (Fraude de execução. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 79, n. 658, p. 45, ago. 1990); Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, (Fraude no processo civil. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 16); Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa (Do caráter objetivo da fraude à execução e suas consequências (artigo 593, II, do CPC), cit., p. 45; CAIS, Frederico Fontoura da Silva. Fraude de execução, cit., p. 135); e Luiz Fux, afirmando claramente esse último que "à luz do texto, é fraudulenta a alienação depois da propositura da

ação e antes da citação, uma vez que a exigência da lei para considerar ineficaz o ato é de que, ao tempo

da alienação, corra contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. Ora, considera-se

demandado o devedor, desde que distribuída a ação onde houver mais de um juízo com competência

concorrente ou despachada, onde houver um só juízo (art. 263 do CPC)." (FUX, Luiz. O novo processo de

execução: o cumprimento da sentença e a execução extrajudicial, cit., p. 99).

Na jurisprudência, contudo, tal posicionamento não tem demonstrado expansão. Ao contrário, atualmente, está praticamente consolidado no sentido de exigir a citação ou a prova, a cargo do credor, da ciência do devedor: "a alienação ou oneração de bens, antes da citação válida, não configura fraude de execução." (STJ, 4ª T., AgRg no REsp 316.905/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 20.11.08); "consoante entendimento das duas Turmas que compõem a 2ª Seção, não se configura fraude à execução se a venda do veículo pertencente à executada ocorreu antes da citação da devedora e da penhora do bem." (STJ, 4ª T., REsp 694.728/RS, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 07.11.06).

Além disso, tal interpretação foi reforçada pelas reformas processuais, uma vez que o legislador criou diversos mecanismos referentes à prática de atos processuais antes da citação do réu ou do devedor. O próprio artigo 615-A é exemplo disso, uma vez que permite a configuração da fraude de execução antes da citação do devedor. Outros dois exemplos são os artigos 253, II, alterado pela Lei n.º 11.280/2006 e o artigo 285-A, incluído pela Lei n.º 11.277/2006.

Também os autores que sustentam o segundo argumento acabam, necessariamente, por refutar esse primeiro. Sobre o assunto, ensina DINAMARCO que “conceitualmente, processo pendente é o que já se iniciou e ainda não se extinguiu. Esse é o conceito elementar de litispendência.”270

Já quanto ao segundo argumento, além de, historicamente, o direito positivo brasileiro não exigir a má-fé do devedor para a configuração dos casos de fraude de execução – e mesmo de fraude contra credores, como vimos –, nota-se que o artigo 659, § 4º, do CPC, ao excluir do tipo legal o elemento subjetivo, presumindo-o absolutamente, o faz apenas em relação ao terceiro e não em relação ao devedor, o que demonstra que sua má-fé sequer seria exigida, de início.

Interpretação contrária implicaria admitir que, em caso de fraude de execução decorrente de alienação de bem após a averbação da penhora em registro público, se o devedor demonstrasse não ter tido ciência da pendência da ação, a aquisição do bem pelo terceiro não seria mais considerada em fraude de execução, ficando o bem a salvo da atividade executiva.

A completa falta de sentido lógico nesse caso evidencia que a má-fé do devedor é de todo irrelevante para a configuração da fraude de execução.271

270DINAMARCO, Cândido Rangel. As fraudes do devedor, cit., p. 442, destaques no original.

271Em apoio a esse ponto, cf. em termos semelhantes a Sérgio Coelho Junior: "a citação do réu é, de outro

lado, absolutamente irrelevante para as consequências advindas para o terceiro, pois não pode servir de índício para a presunção de que este sabia da existência da ação. É no subjetivismo do adquirente que se deve buscar o fundamento da ineficácia do ato fraudulento." (COELHO JUNIOR, Sérgio. Fraude de

Por fim, outro importante argumento em favor da irrelevância do elemento subjetivo do devedor será explorado no capítulo 6, infra, em que se procurará demonstrar que o efeito da decretação da fraude de execução opera-se somente em relação ao terceiro.

Contrariamente à nossa hipótese, poder-se-ia levantar o argumento de que, em duas oportunidades relacionadas com a fraude de execução, o legislador considera relevante o elemento subjetivo do devedor. Trata-se dos artigos 600, I, c/c 601 do CPC, em que a fraude de execução é considerada como ato atentatório à dignidade da justiça, e 179 do Código Penal, que tipifica o crime de fraude à execução, nos seguintes termos:

"Art. 179 – Fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa. Parágrafo único – Somente se procede mediante queixa."

No entanto, nota-se que, em nenhum dos casos, o efeito desencadeado pelo reconhecimento do elemento subjetivo do devedor é a possibilidade de o bem ser alcançado pelos atos executivos em patrimônio de terceiro. Ao contrário, os efeitos atribuídos por esses dispositivos à conduta de má-fé do devedor cingem-se à aplicação de penas – multa de até 20% do valor da execução, pelos artigos 600, I, e 601, CPC e detenção de seis meses a um ano, pelo artigo 179 do CP – ao devedor que praticar tais condutas.

É interessante observar, ainda, que as condutas descritas como crime de fraude à execução (art. 179, CP) não coincidem totalmente com os atos que podem ser praticados em fraude de execução (arts. 592, V, e 593, CPC), sendo aquelas mais amplas que esses. Assim, para o Código de Processo Civil os atos que podem ser praticados em fraude de execução são apenas a alienação ou a oneração de bens; já para o Código Penal, também configurariam crime de fraude à execução as condutas de desvio, destruição ou danificação de bens.272 Além disso, também prevalece entre os penalistas o entendimento

272Cf. Damásio E. de Jesus: “conduta típica: consiste em fraudar execução de sentença condenatória, evitando

a penhora por intermédio da alienação de bens, desvio, destruição ou sua danificação, ou por simulação de dívidas. Pressuposto Típico é a existência de uma sentença a ser executada ou uma ação executiva.” (JESUS, Damásio de. Código Penal anotado. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 688).

de que tais condutas somente configurariam crime se praticadas no âmbito da execução e não na fase de conhecimento do processo.273

Também em relação ao artigo 600, I, CPC, prevalece o entendimento de que a conduta nele prevista também não seria coincidente com os atos previstos nos artigos 592, V e 593 do CPC.274

Verifica-se, portanto, que esses dispositivos não tratam exatamente das hipóteses de fraude de execução previstas nos artigos 592, V e 593 do CPC e, menos ainda, estabelecem que o elemento subjetivo do devedor seria requisito para a sua configuração, de forma que não são capazes de infirmar a hipótese aqui defendida.