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Pendência de ação que possa reduzir o devedor à insolvência

2. FRAUDE DE EXECUÇÃO: TERMINOLOGIA, PREMISSAS CONCEITUAIS E HIPÓTESES

2.3. As hipóteses da fraude de execução na legislação atual

2.3.2. Pendência de ação que possa reduzir o devedor à insolvência

O inciso II do artigo 593 do CPC prevê o caso mais comum de fraude de execução, e também o que provoca o maior número de discussões. Trata-se da alienação de bens no curso de ação capaz de reduzir o devedor à insolvência.

Enquanto no inciso I do artigo 593, o legislador foi específico em relação às ações que podem dar ensejo àquela modalidade de fraude de execução, limitando-as àquelas fundadas em direito real, no inciso II, a hipótese é genérica, bastando apenas que a ação pendente possa gerar atividade executiva para pagamento de quantia e que o valor do crédito seja tal que não exista no patrimônio do devedor bens passíveis de penhora suficientes para satisfazê-lo.

Novamente oportuna, aqui, a lição de LIEBMAN, considerando que esta segunda hipótese de fraude de execução decorre da alienação de bens que constituam "objeto instrumental da execução".66 A utilização do adjetivo "instrumental" pelo autor explica-se em razão de aqueles bens não serem os próprios objetos da prestação a que estava obrigado o devedor, servindo apenas como meio para que de sua expropriação se possa extrair a quantia necessária para o cumprimento da obrigação.67

Quanto à natureza da demanda pendente, afirma ALCIDES DE MENDONÇA LIMA que esta é "em regra, a condenatória, pois será apenas a única que poderá visar à alteração no patrimônio do devedor pela satisfação do respectivo quantum." No entanto, esse autor também admite a possibilidade da ocorrência dessa hipótese de fraude de execução "em ação meramente declaratória ou em ação constitutiva", diante da "possibilidade de condenação em pedidos acessórios, de cunho processual" e, finalmente, também em caso de pendência de ação penal, "se já houver sentença criminal condenatória com trânsito em julgado, habilitando o ofendido a executá-la no juízo cível."68

Apenas à necessidade de trânsito em julgado da sentença penal, discordamos do autor, entendendo, com DINAMARCO, que "um ato de disposição realizado

66LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução, cit., p. 109.

67O que é feito, atualmente, por meio de uma das formas previstas nos artigos 685-A a 707 do Código de

Processo Civil.

depois de instaurado o processo crime também é, em princípio, apto a frustrar uma futura execução, qualificando-se por isso como fraude a esta.”69

Realmente, mesmo as execuções de sentenças penais, arbitrais70 ou estrangeiras homologadas71 (arts. 475-N, II, IV e VI, CPC) podem ser frustradas, podendo ocorrer fraude de execução durante o curso do processo nas quais sejam proferidas.

O artigo 593, II, do CPC exige apenas a pendência de ação que possa reduzir o devedor à insolvência, o que evoca a ideia de ação que possa gerar atividade executiva de obrigação de pagar quantia. O texto legal não traz qualquer outra condicionante, podendo tratar-se de ação condenatória, constitutiva, declaratória, executiva, mandamental ou cautelar.72

69 DINAMARCO, Cândido Rangel. As fraudes do devedor, cit., p. 442.

70 Admitindo fraude de execução no curso da arbitragem, cf. Joel Dias Figueira Júnior: "“o árbitro ou tribunal

arbitral detém uma parcela da jurisdição (...) e a sentença que vierem a proferir produzirá entre os litigantes e seus sucessores os mesmos efeitos da decisão que seria proferida pelos órgãos do Poder Judiciário, assim como a alienação ou oneração de bens durante o processo arbitral poderá ensejar a fraude de execução” (FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Arbitragem: Jurisdição e Execução. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999. p. 275). Comungam desse mesmo entendimento, AMENDOEIRA JUNIOR, Sidnei. Execução e Impugnação da Sentença Arbitral. In: SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coords.).

Processo de execução e assuntos afins. cit.. p. 708 e CAIS, Frederico Fontoura da Silva. Fraude de Execução, cit., p. 149.

71 Nesse caso, parece-nos que, em razão do artigo 90 do CPC, somente estará constituída a fraude de

execução durante o curso da ação homologatória perante o Superior Tribunal de Justiça e não da própria ação estrangeira em seu país de origem. Reconhecendo a fraude de execução em caso de homologação de sentença estrangeira, cf. STJ, 4ª T., REsp. 182.099/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 03.11.98, afirmando que: "a doação para a filha, com evidente propósito de prejudicar os credores, ocorreu na pendência de demanda (homologação de sentença estrangeira), capaz de levar o réu à insolvência, que, aliás, já era notória."

72Nesse sentido, cf. Araken de Assis: "não cogita o dispositivo da natureza virtual da demanda ou da lide.

Além das ações condenatórias, cujo caráter patrimonial naturalmente provocam semelhante estado [de insolvência], outras ações, penais ou civis, constitutivas (v.g. separação ou divórcio), declaratórias, executivas ou mandamentais, ensejam o resultado coibido pelo instituto." (ASSIS, Araken de. Manual do

processo de execução. 8. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 453). Essa interpretação é

praticamente unânime na doutrina, permanecendo constante desde a promulgação do Código de Processo Civil, cf. MOURA, Mário Aguiar. Fraude de execução pela insolvência do devedor, cit., p. 301; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Fraude de execução, cit., p. 8; e DINAMARCO, Cândido Rangel. As fraudes do devedor, cit., p. 442. Talvez a única voz que se levanta contra tal entendimento seja a de Gelson Amaro de Souza, que defende a restrição da ocorrência da fraude de execução às "demandas executivas", afirmando que "quisesse o legislador que a expressão demanda pendente para efeito de fraude à execução fosse a demanda do processo de conhecimento, por certo teria feito tal alusão no Livro I, mais propriamente no art. 219, do CPC e não a reservado somente para o Livro II, referente ao processo de execução." (SOUZA, Gelson Amaro de. Fraude de execução e o direito de defesa do adquirente, cit., p. 80). Sem razão, contudo, esse último autor, pois, além de historicamente – mesmo no regime do artigo 895, II, do CPC revogado – ter prevalecido essa interpretação dado o objetivo do instituto de assegurar a eficácia do processo jurisdicional, atualmente, após a Lei n.º 11.232/05, em relação às execuções de títulos judiciais, a pendência da demanda ocorrerá efetivamente desde a fase de conhecimento, pois já não existe mais processo ou ação autônoma de execução nesse caso.

Com exceção da ação que tenha por objeto principal do pedido a condenação do réu para o pagamento de quantia,73 nos demais casos, essa hipótese de fraude de execução decorrerá da possibilidade de frustração de atividade executiva que se baseie em condenações acessórias (v.g. verbas sucumbenciais, multas punitivas e coercitivas etc.) ou em condenações subsidiárias (v.g. conversão em perdas e danos das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, cf. arts. 461, § 1º, e 461-A, § 3º, CPC).

Os protestos judiciais ou extrajudiciais e as medidas cautelares preparatórias, como o arresto ou o sequestro, não são aptos a ensejar fraude de execução – a não ser em relação às condenações acessórias –, pois não constituem "demandas capazes de reduzir o devedor à insolvência", e sim atos que meramente as antecedem.74

É recorrente na doutrina a observação de que “não é a demanda em si que reduz o devedor à insolvência, mas o ato de alienação ou de oneração que se efetivou no seu curso.”75 Tal observação não deixa de ser correta, mas não exprime totalmente a ideia em que se baseia essa hipótese de fraude de execução.

A circunstância prevista no inciso II do artigo 593 do CPC como caracterizadora de fraude de execução é a pendência, no momento da alienação, de ação capaz de reduzir o devedor à insolvência e não o fato – certamente mais grave, mas mais restrito – de o devedor ter efetivamente se reduzido à insolvência no curso da ação.

Equivale isso a dizer que o legislador quis levar em consideração o reflexo no patrimônio do devedor do resultado da ação em curso como se procedente fosse,

73Para os autores que sustentam que o legislador, com a "correção de linguagem" introduzida apenas no

Senado Federal no artigo 475-N, I, do Código de Processo Civil, teria ampliado os limites do antigo artigo 584, I, abrangendo também as sentenças declaratórias como título executivo, leia-se também aqui as ações

declaratórias que tenham por objeto o reconhecimento da existência de uma obrigação de pagar quantia.

Não é essa, porém, a posição tecnicamente mais correta, como já demonstramos no nosso “O novo procedimento da execução de título executivo judicial de obrigação de pagar quantia. In: CARMONA, Carlos Alberto (Coord.). Reflexões sobre a reforma do Código de Processo Civil: estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover, Cândido R. Dinamarco e Kazuo Watanabe. São Paulo: Atlas, 2007. p. 284-286", com base nos comentários específicos sobre essa alteração de Araken de Assis, Leonardo Greco e Cássio Scarpinella Bueno e nos fundamentos de José Ignacio Botelho de Mesquita e Amílcar de Castro.

74Nesse sentido, Alcides de Mendonça Lima: "nem o protesto cambiário, nem mesmo o judicial nem as

próprias medidas preventivas servem para configurar a fraude de execução." (Comentários ao Código de

Processo Civil, cit., v. 6, t. 2, p. 573). Há autores, no entanto, que defendem que tais atos têm o condão de

antecipar o marco inicial da fraude de execução, trazendo-o para antes da propositura da ação que poderia reduzir o devedor à insolvência, desde que já fosse possível divisar qual seria o delineamento da ação condenatória a ser proposta (cf. ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., v. 8, p. 270-271).

ainda que estivesse no início da fase de conhecimento. Somente assim pode-se aferir se o ato de alienação de bens frustraria a atividade executiva decorrente daquele processo.

Exemplificando: se, no momento da alienação, o devedor possuísse um patrimônio de R$ 100.000,00 e tivesse sido proposta ação com o objetivo de condená-lo ao pagamento de indenização também no valor de R$ 100.000,00, qualquer alienação poderia ser considerada em fraude de execução ainda que não tivesse sido reconhecida judicialmente a existência da obrigação de indenizar, pois se a ação for julgada procedente, dando ensejo à atividade executiva, toda a alienação ocorrida durante o seu curso terá tido por consequência a criação ou o agravamento da insolvência do devedor.

Noutros termos, para se aferir se a ação pendente era "capaz de reduzir o devedor à insolvência" deve-se considerar a obrigação objeto dessa ação como já sendo certa – ou seja, existente – e líquida – isto é, de valor determinado –, quando da alienação.