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Identificação Ideomórfica, de acordo com a teoria de Coimbra de Matos.

“OS HERÓIS JÁ MORRERAM TODOS”

41 Identificação Ideomórfica, de acordo com a teoria de Coimbra de Matos.

Esta jovem portuguesa, de origem africana, nunca se sentiu verdadeiramente integrada em nenhum dos diversos “mundos" que foi habitando: o grupo da escola ou o grupo religioso, a casa do pai ou a casa da mãe, o mundo dos “brancos” ou dos “mulatos". Nesta permanente busca pela aceitação dos outros, as aulas pouco lhe ensinavam o que sentia vontade de aprender: como “se r alguém ” respeitado e valorizado pelos demais. Assim, valia a pena faltar às aulas para ficar com as amigas a aprender as

“coisas da vida”. Os professores eram sentidos como desinteressantes, incapazes de

espelhar uma imagem mais positiva de si, e sobretudo, incapazes de ajudá-la a encontrar limites que a defendessem de si mesma.

Mas, a vida tam bém ensinou a Sónia a admirar a capacidade de “sacrifício” da mãe e a ternura ilimitada do pai e, por isso, acreditou que também valia a pena voltar a estudar mas, desta vez, algo que lhe permitisse vir a “te r um bom em prego”, “d a r orgulho aos

p ais”, “s e r alguém .” O curso EFJ, na área comercial, surgiu à Sónia com o sendo a

“solução" óbvia para as suas aspirações. Quando conversámos, a Sónia estava a frequentar esta acção de formação, a qual havia assumido uma enorme relevância na sua vida.

Quando perguntamos qual o sentido que a Sónia atribuiu a esta acção de formação? Podemos responder que, na sua perspectiva, o curso se revestiu de um importante significado. Para esta jovem, o curso representa uma verdadeira oportunidade para adquirir com petências na área comercial, as quais acredita serem inteiramente mobilizáveis em situações concretas mas, sobretudo, acredita que após a form ação será mais “fácil” encontrar um emprego e, consequentemente, ser mais respeitada pelos outros.

Por outro lado, há um sentido que não é tão claramente explicitado, mas que se torna evidente no discurso da Sónia: o facto de se sentir mais integrada na acção de formação, do que em qualquer outra situação da sua vida. A relação com os seus pares mostra-nos que se “reconhecem" e alguns formadores parecem ter encontrado uma distância "óptima” : suficientemente “perto” para que se criem laços afectivos e, suficientemente, “longe” para não se “diluírem" as fronteiras que os distingue enquanto “guias" de um cam inho ainda por percorrer. Ainda assim, a Sónia sente que alguns

form adores têm uma atitude demasiado “facilitadora” o que a deixa com a sensação de não ser considerada como verdadeiramente capaz.

Assim, poderá considerar-se que esta experiência possibilita alguma transformação individual, pelo menos na esfera das atitudes e da sua contribuição para a construção de uma identidade social e profissional mais estável, na medida em que representa uma oportunidade deliberada de socialização. No contexto da acção de formação, a Sónia tem firm ado relações que lhe têm permitido interiorizar uma imagem “regenerada” de si42, o que poderá ser um ponto de partida para uma “abordagem" mais confiante da realidade. Contudo, Não deixa de ser “tentador" perguntarmo-nos que outros “sentidos" poderão ser atribuídos à experiência formativa, a partir do momento em que ocorra um “verdadeiro" confronto com a “realidade” do mercado de trabalho?

Para já, e na perspectiva da Sónia43, esta acção de formação representa uma válida alternativa ao sistema escolar, que abandonou sem nunca se ter sentido verdadeiramente incluída e, por isso, aspira, como diz, a ter “um emprego que goste”,

“sentir-m e bem consigo m esma" e “te r dinheiro para fazer as coisas que gosta".

1.3. “ O R IC AR D O ” ...

” SER UMA PESSOA COM ESTUDOS, PAR A ESTAR BEM NA VID A”

A história que o Ricardo nos conta sobre si é simples e breve, deixando-nos com a imagem de um jovem que reage às vicissitudes da vida sem grandes “sobressaltos”. Da escola pouco fala mas afirma sem dúvidas, que esta nunca lhe interessou muito e, talvez por isso, se tenham somado os insucessos. Não nos sabe explicar, e talvez nem a si mesmo, se o que pesava mais eram as suas dificuldades de aprendizagem ou a desmotivação que o levava a faltar às aulas. Simplesmente, nos diz que talvez não gostasse das matérias ou de alguns professores ou talvez fosse o apelo da “brincadeira” com os colegas ou de outras actividades, bem mais interessantes, às quais sempre se dedicou com afinco: o desporto ou o trabalho de voluntariado nos Bombeiros. Seja como for, o Ricardo tem a forte convicção, de que é importante

42 Num processo de identificação imagoico-imagética 43 Que é, para já, a única que nos importa compreender

estudar e ter uma profissão para "amanhã ser alguém ,” o que nos traduz dizendo que

"ser alguém ” é ter estudos e trabalhar para ter carro, casa e dinheiro suficiente para “desenrascarJ\ ou como diz: “estar bem na vida”. Assim, a formação profissional na

área de Serralharia Mecânica emergiu como uma válida alternativa à escola. A história da sua família é um claro exemplo desta “verdade" que não ousa questionar. Os pais e os irmãos mais velhos asseguraram, para si próprios, a escolaridade mínima e alguns saberes profissionais que acreditam terem contribuído para "garantir” os seus respectivos meios de sobrevivência.

A oportunidade de aprender a ser serralheiro mecânico fazia todo o sentido para este jovem de poucas palavras, mesmo que inicialmente não compreendesse a diferença entre esta profissão e a que ambicionava ter: ser mecânico e trabalhar com automóveis como o seu avô. Mas o contacto com as oficinas, onde pôde ver como é a vida no mundo do trabalho, ter o apoio “próximo” de um profissional e encontrar novos amigos, permitiu que se dissipassem quaisquer dúvidas que pudesse ter quanto a continuar o curso. Os “prémios” finais continuavam a fazer valer a pena o seu empenho: "o certificado do 9o ano” e uma “carteira profissional” .

A breve conversa com o Ricardo deixa-nos, contudo com algumas dúvidas: a experiência formativa possibilitará uma verdadeira transformação individual? Que competências serão realmente desenvolvidas? Serão estas competências mobilizáveis em situações concretas? De facto, a história que o Ricardo conta não responde claramente a estas questões. Parece haver uma mudança de atitudes, já que, ao contrário do que se passava na escola, o Ricardo parece determinado em concluir com sucesso a acção de formação, a qual diz, sem hesitar é mais “fácil” do que a escola. Este jovem parece acreditar que a “carteira profissional” profissional, que irá obter no final do curso, será um “passe” para entrar no mercado de trabalho e, provavelmente, só o confronto com o mesmo lhe mostrará se aprendeu, verdadeiramente, "como é que

a gente deve trabalharJ\ como diz. A acção de formação parece, também, representar

uma oportunidade de socialização pois possibilita o estabelecimento de novas relações e, consequentemente, permite a construção da identidade pessoal, social e profissional deste jovem.

De um modo geral, é possível concluir que o Ricardo se apropriou desta nova experiência conferindo-lhe um importante significado: "encontrar novos am igos”, “outros

professores”, "outros colegas", "aprender a lidar com m áquinas" ficar com “algum estudo” e ter uma carteira profissional pois, como diz: "sempre tenho mais esse papel que ajuda”.

1.4. “O PAULO”...

“ O QUE EU PRECISO É DE TRABALHO, NÃO PRECISO DE MAIS NADA"

As palavras do Paulo: "o que eu preciso é de trabalho, não preciso de m ais nada" não nos deixam dúvidas quanto à importância que este jovem de 19 anos atribui à obtenção de um emprego. Nascido no seio de uma fam ília de classe média baixa, que pouco “luxo” lhe pôde proporcionar, cedo aprendeu a valorizar o dinheiro como meio de satisfazer os seus prazeres imediatos, a "sustentar os seus vícios”, como diz. Após um longo período de desemprego, aprendeu, também, a perceber o quanto as rotinas lhe permitem alguma "organização” mental. Mas a “marca distintiva” deste jovem é o seu hedonismo e investimento no presente como forma de melhor “suportar” a angústia de um futuro demasiado incerto.

O Paulo orgulha-se de afirmar que foi ele que tomou a iniciativa de procurar a integração no curso de Mecânica Auto, o qual concluiu cerca de dois anos antes de nos conhecermos. A forma como fala das razões dessa iniciativa deixam-nos a pensar que se tratou de um verdadeiro “acto de desespero", pois a ideia de permanecer pelo terceiro ano consecutivo no 7o ano, afigurava-se como demasiado insuportável. Quando questionamos as razões do seu insucesso escolar, o Paulo é muito franco afirmando, prontamente, que o seu comportamento de desrespeito pela autoridade dos professores era a principal causa. A escola, as aulas e os professores nunca foram sentidos como aliciantes, pelo contrário, já no ensino primário ansiava pelo momento de regressar a casa e mais tarde as aulas e as matérias tornaram-se “insuportáveis”. Apesar de tudo distingue a disciplina de História de todas as outras. A esta o Paulo conseguiu atribuir um significado: a importância de sabermos como eram as coisas antes de existirmos e, assim, com preender a nossa própria existência. Mas, o jovem não tem dúvidas quando diz que gostava desta disciplina porque também gostava dos professores que foi encontrando.

A escolha do curso não suscitou ao Paulo grande reflexão, soube que a oportunidade ia surgir na escola que frequentava e soube que iria ser na área de mecânica. Como tinha algum interesse por automóveis, e sentia uma enorm e necessidade de se “libertar” do 7o ano, não hesitou e solicitou a sua integração no curso. Desde logo se apercebeu que se mantinha o seu desinteresse pelas matérias teóricas, comuns às escolares, apesar de ter percebido uma considerável diminuição do nível exigência, em relação ao que acontecia na escola. Para seu contentamento as aulas de mecânica, particularmente a prática simulada, compensavam esse lado menos interessante do curso. Os estágios que frequentou, por sua vez, foram determ inantes para a sua decisão de não vir a trabalhar como Mecânico de automóveis. Aqui é importante sublinhar a ênfase dada pelo Paulo a aspectos como: o estilo e qualidade das relações que foi estabelecendo com os formadores e com os orientadores dos estágios, assim com o a percepção com que ficou a respeito do contexto de trabalho na área da mecânica de automóveis, pois ambos contribuíram para se apropriar desta experiência formativa, atribuindo-lhe um sentido que, no geral, parece satisfatório.

O Paulo considera o curso EFJ de mecânica pertinente pela possibilidade que lhe conferiu de concluir o 9o ano. Paradoxalmente, dois anos após a conclusão do curso, começa a questionar-se a respeito da importância desta concretização uma vez que sente que o 9o ano não foi afinal a “solução milagrosa" para aumentar a sua “empregabilidade”. O próprio Paulo diz: “hoje estou a pensar, já tenho o nono ano há

muito tempo e eu não consigo arranjar nada de jeito. Não consigo arranjar nada a não s e r nas obras. Para quê arranjar obras? (...) Para isso fícava com o sexto ano. Não estudava m ais.”. Contudo, é importante lembrar que, na verdade, este jovem nunca

chegou a procurar uma integração na área em que se qualificou. As razões que aponta para tal prendem-se com a opinião que formulou a partir do seu contacto com o contexto de trabalho da reparação de automóveis, a partir das suas experiências de estágio. De facto, o Paulo tinha expectativas em relação a este momento da formação, que não foram satisfeitas pois esperava que surgisse a oportunidade de ficar a trabalhar de forma permanente e com um salário gratificante e, ainda, ter tido a oportunidade de desenvolver mais competências. Nada disto ocorreu. As relações com os orientadores de estágio foram conflituosas pois o Paulo descreveu-os como negligentes em relação a si e às suas aspirações. Na perspectiva do jovem não lhe era

possível verificar se as competências adquiridas seriam mobilizáveis em situações concretas.

Pelo contrario, a relação com pelo menos um dos seus formadores de prática simulada parece ter sido absolutamente gratificante. O seu primeiro form ador de mecânica parece ter-se apresentado a este jovem como um importante modelo de identificação. O Paulo elogia o seu saber mas, também, a qualidade da relação que conseguia estabelecer com os formandos, apesar de não dar azo a que estes ultrapassassem os limites de conduta definidos. A relação estabelecida com este formador, a par das relações, igualmente, satisfatórias que o Paulo estabeleceu com os colegas parece ter contribuído, positivamente, para firm ar a sua identidade pessoal e social.

Em síntese, a experiência formativa vivida pelo Paulo poderá ter tido alguma relevância no sentido em que contribuiu para uma mudança de atitudes comparativamente com o que se passava no contexto escolar e também representou uma oportunidade para a construção de uma identidade apoiada numa auto-imagem mais valorizada. Contudo, e apesar do Paulo continuar a valorizar o 9o ano e até desejar prosseguir estudos, a importância que atribuiu às competências profissionais específicas, que terá desenvolvido, é quase nula. Para este jovem, mais importante do que ter uma profissão que o satisfaça é ter um trabalho permanente que lhe proporcione bem-estar material. O que equivale a dizer que “mais vale ter do que ser” .

1.5. "O FRANCISCO"...

"PODE SER QUE AINDA ENTRE PARA A FACULDADE"

A história do Francisco lembra as histórias de tantos outros jovens e começa pelo seu “desencanto” em relação à escola e a, quase tudo, o que esta “não” tinha para lhe oferecer. Este sentimento foi evidente logo desde a infância. Pouco se recorda do ensino priMarco ou dos professores, embora afirme sem relutância que nunca gostou da escola. Os pais, oriundos de famílias de classe operária, as quais se empenharam bastante para conseguir ascender socialmente, reagiam com desalento a esta atitude do filho. De facto, tanto a mãe como o pai do Francisco sempre demonstraram valorizar a aquisição da escolaridade mínima, talvez por razões relacionadas com os seus próprios percursos pessoais.

O desinteresse do Francisco pela escola foi manifesto a partir do 5o ano, altura em que começou a reprovar por faltar às aulas. Nessas alturas preferia passear e conversar com os am igos sobre coisas que lhe pareciam bem mais interessantes: sobre carros, sobre a playsation... Foram-se sucedendo as reprovações e a partir do 7o ano começou a desrespeitar a autoridade dos professores e a identificar-se com jovens que partilhavam o seu desdém pela escola. O seu sentimento geral em relação à escola era de inutilidade. Não compreendia para que lhe iriam “servir'’ os conhecimentos que teria que adquirir. As relações com os professores pareciam ser “pacíficas" mas, na verdade não identifica nenhum professor que o tivesse impressionado.

Assim, quando surgiu a oportunidade de frequentar o curso de mecânica de automóveis não teve dúvidas e desde logo considerou que este seria uma verdadeira alternativa à escola “normal” , como diz. No discurso do Francisco percebemos que atribui importância ao facto de ter obtido o diploma do 9o ano. A escolaridade é algo que valoriza, talvez por influência social e familiar, pelo que após o curso planeava continuar até ao 12° ano e, talvez, até ir para o ensino superior. Mas o que realmente motiva o Francisco é o “sonho” de trabalhar com carros numa “grande marca” . É assim, que imagina o seu futuro.

No caso particular do Francisco e, talvez, devido à qualidade das relações que estabeleceu com os seus orientadores de estágio, foi possível perceber que desenvolveu competências, claramente, mobilizáveis em contexto de trabalho. Pelo que descreve foi possível viver uma experiência de formação-acção, pois o próprio Francisco nos conta que no estágio “aproveitava e revia mais ou menos a m atéria”, Assim, parece ter ocorrido alguma transformação individual na tripla dimensão dos conhecimentos, capacidades e atitudes.

Para este jovem o curso que frequentou teve sentido, sobretudo, porque lhe permitiu iniciar a construção de um projecto de vida e de uma firme identidade profissional: ser mecânico de automóveis. A oportunidade que teve de contactar com a realidade desta profissão, aprendendo a “resolver problemas" e a compreender de que forma os saberes que adquiria lhe seriam úteis na vida profissional futura, foi determinante para validar a experiência form ativa e para lhe permitir desejar “voar mais alto” e, como diz:

“pode ser que ainda entre para a faculdade.”. Contudo, é no confronto com a realidade