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A eclesiologia aberta de Jürgen Moltmann como contribuição teológica à Igreja Batista brasileira

2. Contribuições de Jürgen Moltmann à Igreja Batista

2.1. Igreja e reino de Deus

Para Mendonça (1990, p. 44), a Igreja Batista “tem um objetivo único: evangelizar e converter pessoas às suas igrejas. Os convertidos serão, antes de tudo,

batistas”. Com essa síntese, Mendonça pontua dois conceitos importantes na eclesiologia batista, “evangelização” e “conversão”. Essa concepção de que os

“convertidos” serão batistas se deve a forte influência do landmarkismo presente na

Igreja Batista brasileira. Na Declaração Doutrinária da CBB, a

igreja é uma congregação local de pessoas regeneradas e batizadas após profissão de fé [...]. Tais congregações são constituídas por livre vontade dessas pessoas com a finalidade de prestarem culto a Deus, observarem as ordenanças de Jesus, meditarem nos ensinamentos da Bíblia para edificação mútua e para a propagação do evangelho (CBB, 1986, p. 13).

Essa definição de igreja está presente em outras confissões de fé dos batistas. No caso da confissão de fé brasileira, a ênfase que os batistas dão à igreja local é uma herança landmarkista que se tornou “uma convicção [para a igreja] batista brasileira” (AZEVEDO, 2004, p. 247).

Com essa definição de igreja, a Declaração Doutrinária traz uma concepção de que igreja só pode ser mesmo local, ou seja, não há a possibilidade de conceber um sistema eclesiástico onde a igreja local não tenha a primazia. Por outro lado, ela delimita a entrada na comunidade de fé quando diz que apenas “pessoas regeneradas e batizadas após pública profissão de fé” (CBB, 1986, p. 13). A dificuldade dessa definição, segundo John Landers (1986, p. 82) consiste no fato da Declaração

Doutrinária advogar que o único modo de se fazer parte da igreja é por meio do batismo, sendo esse batismo por imersão, uma vez que ele se dá por pública profissão de fé. Assim as demais igrejas que não praticam o batismo por imersão não são

consideras igrejas. Tendo, como já mencionado, a eclesiologia batista uma forte influência do landmarkismo, aqui é possível ver essa concepção uma vez que “o movimento landmarkista afirmou categoricamente que essas greis são sociedades, e não propriamente igrejas” (LANDERS, 1986, p. 82).

Quanto a esse aspecto, Moltmann entende que essa maneira de reduzir a igreja a partir de um modo de acesso, é um absolutismo (MOLTMANN, 2013, p. 205). No caso da definição da Declaração Doutrinária, na eclesiologia batista o batismo é um modo de ingresso e não uma maneira de “demonstrar o início do reino de Deus na vida de uma pessoa e a conversão comunitária para o seu futuro” (MOLTMANN, 2013, p. 294). Na forma de aplicar o batismo, Moltmann qualifica o batismo infantil como obsoleto, sendo que, para ele, o batismo de adultos é o ideal, uma vez que “pelo batismo, o crente é chamado para a comunidade messiânica e vocacionado para o serviço libertador e criativo no reino. Nesse aspecto, o batismo é um evento de vocação” (MOLTMANN, 2013, p. 307). Na eclesiologia batista, o batismo é uma “condição para ser membro de uma igreja” (CBB, 1986, p. 15). Nesse sentido, ele não tem o aspecto de vocacionar pessoas para o reino de Deus, mas sim para diferenciar os que são membros e os que não são de uma comunidade de fé. O batismo tem um caráter puramente eclesiástico no sentido de admitir ou não uma pessoa no rol de membros de uma igreja local. É nesse sentido que Ferreira (2009, p. 125) entende quando comenta este item (batismo) da

Declaração Doutrinária da CBB: “o batismo é a porta de entrada do convertido na

igreja e é o testemunho público do que se realizou em sua vida: da morte passou para a vida”. Aqui não se concebe uma ideia de vocação presente na eclesiologia

moltmanniana, antes o batismo tem um sentido apenas para quem dele participa,

pela imersão) e a ressurreição para uma nova vida (dramatizado pela emersão)” (SILVA, 2007, p. 142-143). A contribuição de Moltmann nesse sentido se dá quando é possível vincular o batismo não apenas à morte e ressurreição de Jesus, mas também à

missão dele por meio da vocação, ou seja, o batismo se traduz como vocação para uma

“nova vida no serviço da justiça, portanto, no seguimento do crucificado [...]. Contudo, é também a nova vida na comunidade de Cristo” (MOLTMANN, 2013, p. 307).

Outra temática que está atrelada à compreensão de igreja na eclesiologia batista, é a do reino de Deus. A Declaração Doutrinária da CBB no item “Reino de Deus”, traz a seguinte definição: “o reino de Deus é o domínio soberano e universal de Deus e é eterno. É também o domínio de Deus no coração dos homens que, voluntariamente, eles se submetem pela fé, aceitando-o como Senhor e Rei” (CBB, 1986, p. 16).

Assim como os demais grupos que compõem o protestantismo(s) de missão no Brasil, os batistas também entendem que há uma distinção entre o reino de Deus e a

igreja (SILVA, 2007, p. 135). Por outro lado, a concepção dos batistas brasileiros de reino de Deus sofreu influência do pietismo na sua versão norte-americana, ou seja, o reino de Deus é o domínio de Deus nos corações de quem se converte (SILVA, 2013, p.

96). Nesse sentido, o reino de Deus só é estabelecido à medida que as pessoas vão se

convertendo. Por isso que a noção de reino de Deus é compreendida como sendo algo

“subjetivo” (FERREIRA, 2001, p. 19). Ele se dá apenas no seu aspecto interior, quando o ser humano assume a condição de “súdito do Rei”. Azevedo (2005, p. 27), quando observa o modo subjetivo de conversão no âmbito batista, conclui que a “conversão passou, então, a significar, além da negação do passado da pessoa, negação do presente social”. Por isso que o reino de Deus não tem conotações externas na eclesiologia

batista, antes ele se dá no imaginário celestial, ou seja, ele só será possível, na

dependência de Deus, na parousia do Cristo. Essa noção é fruto de interpretações

milenaristas.

Dentro desse aspecto, quando Azevedo (2004, p. 172) faz uma análise do pensamento batista brasileiro, ele pontua as consequências do imaginário celestial, ou seja, a ideia de que os cristãos estão apenas aguardando os “céus”. Essa doutrina contribuiu para que a igreja, de alguma forma, se sentisse descompromissada com a sociedade e, como consequência, com os seus principais temas. Essa noção de transitoriedade da igreja decorre da ideia de que tudo que acontece ou irá acontecer está sendo direcionado pela bendita e soberana vontade de Deus e diante dessa verdade não

há nada que se possa fazer para mudar a realidade. Sendo assim, uma nova realidade do

reino de Deus se torna inviável, pois o reino de Deus é algo para o futuro além-morte.

Aqui se insere o debate em torno do milênio. Porque uma correta interpretação sobre o

milênio significa uma correta interpretação do reino de Deus e sua relação com o mundo e seus problemas.

A vertente do milênio que mais atraiu (e continua atraindo), adeptos em alguns ambientes teológicos, é o pré-milenismo. O teólogo batista mais influente na disseminação e ensino do pré-milenismo em Seminários e Faculdades de Teologia foi Russell Shedd. O pré-milenismo, como já visto, entende que o ser humano é incapaz de se aperfeiçoar e quanto mais houver o caos, maior será a “glória de Deus”. Quando o Senhor Jesus Cristo voltar e instaurar o milênio (reino de Deus), as coisas entram nos eixos definitivamente. Essa concepção ganhou força e o resultado foi o progressivo distanciamento entre a igreja e a sociedade. A igreja, voltada para si mesma, concentrou-se na evangelização e nas missões estrangeiras e outros temas foram solapados por essa concepção teológica, inclusive o tema da ecologia por entender que tudo que ocorre ou que irá ocorrer é sinal da “glória de Deus”.

Um exemplo desse entendimento vem do pastor e teólogo batista estadunidense John MacArthur Júnior que tem boa acessibilidade entre os pastores batistas e os demais grupos que compõem o protestantismo(s) brasileiro. MacArthur Júnior é alguém que é lido e citado em sermões. No seu livro, A sós com Deus ele diz:

a igreja tem uma única missão neste mundo: levar pessoas destinadas a passar a eternidade no inferno ao conhecimento salvador de Jesus Cristo e à eternidade no céu. Se as pessoas morrerem em um governo comunista ou em uma democracia, sob um ditador tirano ou benevolente, acreditando que a homossexualidade é certa ou errada, ou acreditando que o aborto é direito fundamental de escolha da mulher ou simplesmente um homicídio em massa, nada disso tem relação com onde elas passarão a eternidade. Se elas nunca conheceram Cristo e nunca o receberam como Senhor e Salvador passarão a eternidade no inferno. [...] Um dia o Senhor voltará para estabelecer o seu próprio reino perfeito. Então finalmente perceberemos o que temos esperado com tanta ansiedade – e o que os discípulos de Cristo do primeiro século desejavam ver – Cristo governar na terra e os povos do mundo prostrados de joelhos perante Ele. (MacARTHUR, 2009, p. 193).

Como se observa, a preocupação última se dá em “tirar pessoas do inferno”. Temas atuais como participação política, casamento de pessoas do mesmo sexo, pobreza e marginalização social são vistos como consequências do pecado e, quando da segunda vinda de Jesus, tudo irá se resolver e um tempo de paz e prosperidade se estabelecerá por meio do milênio. Sobre isso, Mary Rute Gomes Esperandio explica que no universo batista

as estruturas injustas, as condições socioeconômicas não são problematizadas. Elas são entendidas como resultado do pecado – responsável por toda ordem de mal, pelas injustiças, misérias, imperfeições e doenças. Não importa, na missão da igreja, a criação de outras formas de organização social que possam ser mais justas. Importa, sim, a restauração (ou cura) da alma, a salvação do que estava perdido (ESPERANDIO, 2002, p. 26-27).

As análises de Esperandio indicam que o imaginário celestial contribuiu para uma apatia da igreja concernente a sua participação política e seu engajamento em assuntos de interesses da sociedade. O isolamento social, sustentado pela concepção

pré-milenista da história, ocasionou no ostracismo da igreja. A partir do momento em

que a história é concebida como algo pré-existente, já dada, consumada, o que se pode esperar da igreja é a ideia de que as pessoas precisam se separar do mundo (temas e problemas dele) e aguardarem o retorno iminente de Jesus enquanto se purificam dos pecados desta terra, causando imobilismo e um reducionismo em relação às dimensões do reino de Deus (AZEVEDO, 2004, p. 296). Daí a ênfase na conversão, por entender que “as reformas políticas e sociais [se dá] através da regeneração dos indivíduos” (SILVA, 2011, p. 309).

Como o universo batista é plural e as opiniões são diversificadas, é importante mencionar, apesar de claras indicações para se configurar uma eclesiologia batista como fechada, que houve (e ainda há) preocupações com temas sociais do país. Um desses momentos e que remonta a década de 1960, foi à participação dos pastores

batistas como David Gomes, Hélcio da Silva Lessa, Merval Rosa e Isaías da Silva Rego

dentre outros, na Conferência do Nordeste que ocorreu em 1962 na cidade de Recife/PE, mobilizando cristãos militantes das causas sociais no país (SILVA, 2013, p. 127). O impacto da Conferência foi grande no universo protestante evangélico, mas, infelizmente, as condições do país a partir de 1964 não favoreceram os desdobramentos

da Conferência entre as principais denominações (CUNHA, 2014, p. 129). O contexto político do país, marcado pela ditadura militar, desfavoreceu o engajamento de muitos teólogos e pastores no país e, até mesmo, no interior das igrejas por serem taxados, inconsequentemente, de comunistas.

Outro sinal de abertura para se refletir as condições do país, se deu na Assembleia da Convenção Batista Brasileira em 1963 na cidade de Vitória/ES, ou seja, um ano depois da Conferência do Nordeste, onde se produziu um texto conhecido como

Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil (PINHEIRO, 2012, p. 251). Nesse documento, os batistas assumem os desafios sociais do país e os compromissos para com o tema, denunciando e alertando a denominação e o país

para a inadequação da estrutura social, política e econômica do país e sugeriram a necessidade de um exame objetivo da realidade brasileira, com a finalidade de reestruturação da sociedade em moldes que possibilitem o atendimento das aspirações e necessidades do povo (PINHEIRO, 2012, p. 244-245).

O texto só foi divulgado em 1964, pelo pastor Hélcio da Silva Lessa (1926- 2009). Os pontos que o Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil levantou não logrou êxito entre os batistas brasileiros porque não houve reflexão posterior, principalmente depois do Golpe Militar de 1964 que alinhou grande parte da liderança batista ao regime totalitário, e, por consequência, não houve mudanças substanciais na área teológica e na práxis da denominação.

Como refletir tal quadro eclesiológico a partir da eclesiologia de Moltmann? Para ele, o reino de Deus é “o horizonte cristão abrangente para a vida”, ou seja, o reino

de Deus está vindo e tem como foco “a conversão do ser humano e sua libertação das

condições antidivinas e desumanas deste mundo” (MOLTMANN, 2013 p. 181). Para o nosso autor, o reino de Deus não se configura em seu aspecto subjetivo, é uma realidade que precisa ser perseguida pela igreja, porque para ele o reino não se resume aos

corações dos súditos do Rei, mas antes ao “futuro de toda a criação” (MOLTMANN,

2013, p. 219). Se na eclesiologia batista o reino de Deus está atrelado à conversão de indivíduos tendo, portanto, um caráter interior, em Moltmann ele está atrelado às situações concretas da vida e suas demandas globais como economia, política e cultura. O reino de Deus se dá nas relações com a sociedade, pois “o cristianismo não existe

para si mesmo, mas sim para o reino que está vindo” (MOLTMANN, 2013, p. 218). Nesse sentido, reino de Deus é o reinar de Deus hoje, ou seja, é um reino que está vindo.

A concepção escatológica pré-milenista, presente no imaginário celestial do universo batista, favorece uma noção fatalista e escapista do mundo e suas questões. Por outro lado, Moltmann entende que os cristãos, com uma concepção escatológica correta da história, devem ficar “inquietos enquanto não virem a realidade na qual estão inseridos ser transformada em correspondência àquela desejada por Deus” (BASTOS, 2009, p. 255). O reino de Deus não é de outro mundo (MOLTMANN, 2013, p. 219). Antes, o reino de Deus é a antecipação na história tendo a igreja como “o povo do

reino de Deus” (MOLTMANN, 2013, p. 258). Quando uma concepção escatológica

“aliena o ser humano de sua própria história, referindo-se [há] um tempo futuro trans- histórico, não merece o título de escatologia, mas sim de ideologia” (BASTOS, 2011b, p. 157).