• Nenhum resultado encontrado

Depois da incursão teórica a respeito do poder e suas relações, convém fazer brevemente considerações sobre outro aspecto presente na vida da sociedade e de suas instituições. Aqui se trata da igualdade e da hierarquia.

O princípio da igualdade e suas implicações são recentes e tardias na sociedade contemporânea.

Rousseau foi um dos que se insurgiu contra a idéia de desigualdade, apesar de afirmar categoricamente, que ela é inevitável e que a igualdade verdadeira consiste na proporção. Suas afirmações tratam os ideais de igualdade e liberdade como imprescindíveis à era moderna, entretanto esta liberdade, sobretudo como autonomia, é limitada, e a igualdade, tida como algo bom, é considerada antes de tudo como um ideal. Para Rousseau, a desigualdade, considerada como algo ruim, não escapa em determinados domínios da vida em sociedade.

Dumont (1992, p. 66), numa visão mais liberal, afirma que para muitos sociólogos e filósofos contemporâneos que valorizam a igualdade e que consideram a desigualdade como sendo apenas o que se opõe a ela, não conseguem sequer ouvir a palavra hierarquia sem relacioná-la diretamente “às desigualdades inevitáveis ou residuais das aptidões e das funções ou à cadeia de comando que toda organização artificial de atividades múltiplas supõe: ´hierarquia de poder´”. É evidente que antes da modernidade se aceitava bem mais facilmente a hierarquia como algo natural e normal. Pense-se nos clássicos gregos ou mesmo na importância da hierarquia na instituição eclesial católica. Por mais que se diga que através da tradição judaico-cristã, com a idéia de uma fraternidade universal porque todos são filhos de um mesmo Deus que é Pai, que se introduz uma ruptura com a cultura antiga que defendia uma hierarquia natural entre os seres humanos (livres e escravos, homens e mulheres), é com a modernidade que se fortalece a idéia de igualdade de todos, e com ela também a dificuldade crescente de se admitir a hierarquia como algo desejável ou compatível com a própria igualdade.

Dumont, em Homo Hierarchicus (1992, p. 52), chama atenção para a idéia que fazemos da sociedade, do indivíduo na modernidade. Se a sociedade contemporânea tem como pontos axiais a idéia de igualdade e liberdade, elas

77

supõem “como princípio único e representação valorizada a idéia do indivíduo humano: a humanidade é constituída de homens, e cada um desses homens é concebido como apresentando, apesar de sua particularidade e fora dela, a essência da humanidade”.

Para que se vislumbre algo para além da mentalidade individualista sustentada pela sociedade moderna é preciso que ocorra uma mudança nessa percepção da natureza social do homem, na ideologia vigente de igualdade e liberdade, pois se estabelece uma confusão entre aquilo que é ideal e aquilo que é real.

A idéia de um indivíduo auto-suficiente se opõe ao homem social já que considera este como sendo autônomo em relação a uma humanidade coletiva particular de uma sociedade. Modificar este pensamento é uma tarefa difícil no Estado moderno, por se acreditar que o social consiste apenas das maneiras de comportamento dos indivíduos. Entretanto, estudiosos da sociologia francesa, como, por exemplo, Durkheim, insistiram na presença do social no espírito de cada homem, tentando exprimir estas idéias com as noções de representações coletivas.

Dumont (1992, p. 54) corrobora a idéia de que, para que ocorra uma mudança da percepção sociológica da sociedade contemporânea, é preciso compreender que a percepção que os indivíduos têm de si mesmos não é inata, mas sim aprendida. O indivíduo vive e compartilha de idéias sociais.

Diante disso Dumont (1992, p. 57) constata através de comparações entre o homem de sociedades tradicionais e o homem moderno que “o indivíduo é um valor – ou antes, ele faz parte de uma configuração de valores sui generis”.

Nas sociedades tradicionais aquilo que se tem como valor incide sobre a sociedade em seu conjunto, como Homem coletivo; nas sociedades modernas o Ser Humano é o ´homem´ elementar, indivisível, sob sua forma de ser biológico e ao mesmo tempo de sujeito pensante. Nas primeiras trata-se, segundo o autor, “antes de tudo, de ordem, de hierarquia, onde cada homem particular deve contribuir em seu lugar para a ordem global. E a justiça consiste em proporcionar as funções sociais com relação ao conjunto”. Nas sociedades modernas o que se chama ´sociedade´ é o meio, a vida de cada um é o fim. Assim a sociedade deixa de existir ontologicamente. Entretanto cabe ressaltar que uma sociedade individualista concebida nos princípios de liberdade e igualdade irrestrita nunca existiu, o que

corrobora a idéia de Dumont (1992, p. 57) de que

[...] o indivíduo do tipo moderno não se opõe à sociedade do tipo hierárquica, como parte ao todo (e isso é verdadeiro para o tipo moderno, em que não existe propriamente nada a se falar de um todo conceptual), mas como seu igual ou seu homólogo, um e outro correspondendo à essência do homem.

Por sua vez as sociedades tradicionais, que ignoram os valores de igualdade e liberdade, possuem no fundo uma idéia coletiva de homem, do homem social, sendo este o ponto que torna possível uma compreensão dos problemas sociológicos do indivíduo e uma compreensão das mesmas, através de estudos comparativos fundados em diferentes verdades.

Na tradição moderna Rousseau foi um dos autores que colocou o ideal de igualdade antes do ideal de liberdade, reconhecendo ser a democracia a “melhor forma de governo”. Entretanto enfatizou a impossibilidade da democracia direta se realizar, porque os homens não são deuses, ou seja, as idéias rousseaunianas de liberdade devem ser consideradas mais como moderadas, e até mesmo tradicionais. Seu mérito no “Discurso sobre a Origem da Desigualdade”, Rousseau aponta que a desigualdade é inevitável e que a igualdade verdadeira consiste na proporção.

Segundo Dumont (1992, p. 61) um outro autor, Tocqueville, apresenta uma concepção aristocrática da liberdade, definindo a democracia pela igualdade de condições.

Com isso traz à tona uma questão que diz respeito à ideologia política moderna, que é a realização do ideal democrático. Ao fazer isso, enfatizou a complementaridade dos domínios da política e da religião em sociedades modernas, estudando a mentalidade igualitária em contraste com a mentalidade hierárquica presente nestas mesmas sociedades. Assim Tocqueville (1992, p. 62) “põe um limite ao individualismo (político) e reintroduz para o homem vivo uma dependência”.

Leis (2003, p. 350), por sua vez, chama a atenção para inúmeros autores (TOCQUEVILLE, 1979; SCHELER, 1998; TODOROV, 1996) que observaram que as sociedades estruturadas sobre princípios hierárquicos (como a Índia do sistema de castas ou as sociedades ocidentais pré-modernas) produzem um quantum menor de ressentimento entre seus membros, quando comparada com qualquer sociedade democrática moderna. Isso acontece pelo fato dos indivíduos procurarem e encontrarem reconhecimento nos grupos sociais (familiar ou profissional) a que

79

pertencem.

Deve-se considerar que o princípio igualitário assim como o princípio hierárquico são realidades possíveis e fazem parte da vida política e social nas sociedades contemporâneas. Os homens de uma maneira geral, a despeito de preferirem ser livres a escravos, preferem mandar a obedecer, e mesmo preferindo a igualdade, gostam da hierarquia quando estão posicionados em seu grau mais elevado. E mesmo quando está situado abaixo na hierarquia, podem se sentir comodamente mais seguros, como lembra Kant (1988, p. 11) no famoso texto sobre o Iluminismo: “É tão cômodo ser menor”! Entendendo-se a menoridade como a incapacidade do homem de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Ainda de acordo com o autor “ tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem”.

A diferença entre os valores de liberdade e de igualdade e entre os de poder e os de hierarquia, é que os primeiros são mais irrealistas e não contraditórios entre si, apesar de que na vivência prática não ocorrerem conjuntamente. Já os valores de poder e os de hierarquia são contraditórios na medida em que é difícil pensar uma sociedade em que todos sejam poderosos ou hierarquicamente superiores.

Dumont (1992, p. 66) baseado nas afirmações de Parsons escreve que “adotar um valor é hierarquizar, e que certo consenso sobre valores, certa hierarquia das idéias, das coisas e das pessoas é indispensável à vida social”, sendo este pensamento completamente independente das desigualdades naturais ou da distribuição do poder.

De toda maneira, a rejeição tão comum à hierarquia dificulta o entendimento de diferentes sociedades e culturas que co-existem no mundo contemporâneo e inviabiliza até mesmo a tarefa de compreender a natureza, os limites e as condições de realização do igualitarismo moral e político que se está vinculado.

Também não se pode esquecer que o ideal de igualdade quando se torna igualitarismo pode se coadunar muito bem com o contrário de uma sociedade democrática: em sociedades totalitárias todos os que são dominados são iguais entre si, e convém que assim seja, exigindo-se de todos a mesma submissão. Ao dizê-lo, pode-se assinalar que não é sob todos os aspectos que a igualdade corresponderá a um ideal. Isso fica perceptível também no debate contemporâneo

sobre o direito à diferença, e sobre a distinção importante entre desigualdade e disfunção.