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5.2 DESCRIÇÃO DAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS

5.2.2 Liderança

Quanto à segunda categoria, percebe-se que a liderança na ECP está vinculada diretamente a médica idealizadora e fundadora da equipe. Independentemente das mudanças de chefias administrativas esta liderança

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permanece centralizada nela mesmo com o passar dos anos, provavelmente por personificar uma autoridade que delega, que autoriza a equipe quando e como funcionar. Além de também personificar o ideal profissional almejado pelos demais membros do grupo, ou por ter sido o único membro da equipe a fazer formação em Cuidados Paliativos no exterior, centralizando um conhecimento teórico-prático, o qual foi sendo compartilhado com os demais membros do grupo ao longo do tempo, tornando-a uma referência e liderança em todos os sentidos.

Isto pode ser constatado nas falas dos participantes, selecionados abaixo: Eu acho que a Dra.X exerce e sempre exerceu e continua exercendo, mesmo que ela tenha dado assim, nestes últimos anos, a outras pessoas passaram a ser os chefes formais, mas liderança dela acho incontestável. C

Então, eu coloco dessa forma o seguinte, a X certamente vai estar sempre a frente dessa hierarquia. Por quê? Porque primeiro ela é a pioneira, ela é a fundadora, ela é a criadora do serviço. R

Ainda sobre esta mesma categoria observa-se que existe unanimidade na equipe em afirmar que ocorre a monopolização da liderança em uma única pessoa, e que é ela que institui uma norma, uma conduta de funcionamento para continuidade da equipe ao longo tempo. Com essa forma de liderar evita impasses, já que abre possibilidades para o aparecimento das diferenças, da divisão de tarefas, da complementaridade das habilidades individuais na equipe.

Quando ela está o clima da reunião é outro assim. ... ela dá um tom assim, uma seriedade, ela dá o ritmo. Me parece que quando ela não está a impressão que eu tenho é que fica meio frouxo, parece que as pessoas não levam tão a sério, demora para acontecer... passa, discute com mais brincadeira. C

De modo geral, o que equipe espera da liderança é “o reforço de sua identidade coletiva e o estabelecimento ou reforço do projeto comum da equipe”. (LEITE; FERREIRA, 1998, p. 29).

A liderança oficialmente reconhecida pelos membros da equipe parece exercer em relação ao grupo a personificação de um pai ou seu substituto numa relação de autoridade, de controle, porém através de mecanismos identificatórios do tipo horizontal, e não vertical como ocorre num grupo familiar patriarcal.

Ela (a equipe) assim parece que tem um respeito por ela (a Dra. X), a gente até brinca a Madre Superiora, eu vejo assim que não é da rigidez, mas eu vejo assim daquela pessoa assim ela passa uma liderança, um respeito. Porque é bom passar (as visitas aos leitos) com ela, porque a gente aprende, ... C

Desta forma, mesmo que seja percebido pela equipe uma monopolização da liderança na fundadora da mesma, que exerce uma função estruturante personificando um dispositivo de controle, pode também ser percebido que esta liderança exerce outras funções como: de acolhimento, de generosidade, de solidariedade, que garante a ela uma autoridade legítima. Ao mostrar sua autoridade concomitantemente ao seu prestígio intelectual, a sua capacidade de consenso e habilidade de negociação, esta liderança é respeitada e de certa forma idealizada, mostrando elementos de uma índole democrática, o que só fez crescer e solidificar seu poder perante a equipe. Foucault ao descrever o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros, nos lembra que para se exercer o poder é imprescindível a presença de sujeitos livres, “individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidades onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer” (1995, p. 244). E é nessa forma de se relacionar que os membros da ECP interagem com sua líder, tendo a compreensão do papel de cada membro, sua importância e responsabilidade no desempenho das funções para que os objetivos sejam alcançados.

Dra.X, pra mim é uma pessoa extremamente humana, é uma mulher que levanta da sua cadeira apalpa o paciente, ela cumprimenta as pessoas, ela tem um conhecimento soberbo, tem os seus defeitos, e por ter os seus defeitos é um ser humano como qualquer outro, por isso eu nunca me senti ameaçado de dividir.T

Eu nunca me senti inferior a nenhum membro da equipe, eu sempre achei que o meu trabalho sempre foi muito bem feito e que sempre contribuiu muito para a qualidade de vida e conforto desses pacientes, mas eu acho que uma troca. P

Diante do exemplo acima pode-se concluir que na ECP diferentemente de outros grupos sociais as relações de poder não se encontram bloqueadas, pelo contrário, observa-se que são móveis e permitem a seus membros o desenvolvimento de estratégias que os modificam enquanto profissionais e sujeitos no mundo, o que pode ser mais uma vez evidenciado com a fala abaixo:

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Então que eu vejo assim, é isso que me prende, a gente não está mais exercitando só a profissão da gente, a gente começa a mesclar, quando você vê você é um pouco de tudo dentro desse processo. L

Olha, pra mim é muito importante, porque a ECP é um ensinamento, um ensinamento da vida. N

Eu sinto liberdade também para questionar, pra dizer ái não concordo, o que o que tu achas, assim aquela coisa de fato de te reportar de falar de igual para igual. Essa coisa que também é amizade, eu acho que também favorece. C

Deve-se ressaltar a partir do trecho acima que se a liberdade for vivida como experiência essencial dos seres humanos, a única a partir da qual poderemos manter aberta a possibilidade de sermos mais livres, e não cada vez mais governados pode-se então adotar a visão foucaultiana de poder, uma vez que para o autor, só se é possível empregar o termo poder dentro da expressão relações de poder, e não isoladamente. Isso porque em qualquer relação humana, e aqui se tem relações em uma equipe de trabalho, que se mostram reversíveis e envolvem sujeitos livres, é possível a presença de resistência também.

Em diferentes trechos ainda relacionados com a questão da liderança, alguns membros da equipe afirmam que qualquer outro membro da equipe poderia exercê- la, mas que efetivamente isso não ocorre por uma escolha interna dos profissionais. A partir da própria vivência de outras pessoas eu percebi que todas têm potencial muito grande para liderança, porque a liderança também está vinculada ao momento que o grupo vive, por isso a necessidade de se rodar os líderes. Pra mim isso sempre ficou claro dentro do grupo de trabalho que haviam pessoas que eram extremamente líderes pela sua capacidade e pelo seu conhecimento. T

Acho que nós é que na verdade não assumimos isso, sempre digo não é que eles impõe isso, os médicos ou eles que se colocam mais na reunião e a gente. Acho que também a gente (profissionais não médicos) tinha que exercer um papel mais forte dentro da equipe, a gente fica ali escutando a conversa e quando é chamado se coloca. Mas acho que essa posição somos nós mesmos que nos acomodamos com isso, não brigamos por isso. C

A própria fundadora da ECP e outro profissional médico afirmam que o desenvolvimento de um trabalho em equipe só é possível na presença de um líder, mas que deve ser entendido como uma liderança que congrega, que integra, não sendo coersitiva na sua base, ou seja, uma liderança democrática que acena para os seus membros a promessa de uma igualdade e liberdade profissional.

É, tem uma questão de liderança, mas é uma liderança de compartilhar, de ouvir, de buscar um aprimoramento continuo, porque as vezes a gente também precisa, daquela chamada, pra retomar algumas atitudes, alguns conceitos. Então assim, existe uma hierarquia, uma liderança, mas que tem sempre que ter uma humildade junto pra poder escutar e observar e sentir o que as outras pessoas também tão fazendo pra esse grupo. Z

Aquelas reuniões lá que a gente faz no Hospital você vê que é uma coisa que ninguém fica dando ordens e os outros ouvindo, todo mundo tem direito de se manifestar. Todos tem liberdade de sugerir a qualquer momento ou melhor, nem sugerir, de colocar a qualquer momento a sua visão do mesmo problema. Isso vai ser considerado, se for considerado algo útil. Não vai ser ignorado, a pessoa que sugere sabe disso também e tem essa liberdade. R Os exemplos acima selecionados apontam para o que Arendt (2002, p.129) chamou de uma ordem autoritária, que se contrapõe a ordem igualitária, por ser aquela sempre hierárquica. Para a autora, a relação autoritária entre o que manda e o que obedece, não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm lugar estável pré-determinado.