• Nenhum resultado encontrado

3. A construção da figura feminina na moda

3.1 Desenredando a moda

3.1.2 Imitação e afirmação

Além da motivação econômica, a emergência da moda também envolve dois conceitos muito discutidos dentro do estudo da moda até os dias de hoje: a imitação e a afirmação. Falar sobre o sistema da moda e deixar de lado esses dois pontos é impraticável. De acordo com Frederic Godart na obra Sociologia da Moda (2010), “a entrada da moda no pensamento econômico e sociológico moderno sobreveio por meio da ideia de uma necessidade “natural” de imitação do ser humano” (Godart, 2010, p. 24).

Desde os primórdios do sistema da moda, ao fim da Idade Média, a burguesia europeia já imitava a nobreza. Ao longo dos séculos, a moda se expandiu pelo mundo, outras classes econômicas conquistaram o poder de compra e o grande público passou a copiar os gostos estéticos de figuras relevantes dentro da sociedade.

Um dos primeiros e mais relevantes autores a desenvolver a relação entre a moda e a imitação foi o sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), ainda no século XIX. Já naquele período, o teórico destacava a imitação como um fator essencial da moda, a partir do qual as classes mais baixas se espelhavam nas classes mais elevadas. Contudo, Simmel não utiliza o termo imitação de forma pejorativa, mas como um comportamento social de identificação com determinadas estéticas e grupos sociais.

Nesse contexto, Simmel também apontou a presença de um comportamento ambíguo: na moda, o homem busca ao mesmo tempo a imitação e a diferenciação. Os dois conceitos parecem inicialmente opostos, mas Simmel demonstra como eles se complementam de forma surpreendente dentro do contexto da moda. No artigo “Georg Simmel sobre a moda - uma aula” (2008), o sociólogo Leopoldo Waizbort estuda os pensamentos de Simmel e aponta a complexidade da relação defendida pelo sociólogo alemão:

A moda está totalmente inscrita nesse nexo que tem por base o dualismo da existência humana. Na medida em que ela é imitação, ela responde à necessidade de inserção no grupo, incluindo o singular no âmbito coletivo. A imitação fornece um dispositivo que dilui o singular no todo; oferece uma modalidade de identidade coletiva. Mas, por outro lado, enquanto invenção e criação, a moda também opera a tendência à diferenciação, de elevação do singular face ao universal. A moda, portanto, tanto liga como separa, aproxima como afasta, torna distinto e indistinto. (Waizbort, 2008, p. 9)

41

A análise do autor sobre a complexa relação entre a moda e a existência humana abre caminho para outras discussões envolvendo o contexto sociocultural da moda. Entre esses assuntos, é possível destacar o segundo conceito apontado no início deste capítulo: a afirmação. No âmbito da discussão sobre a relação entre moda e afirmação, as reflexões de Frederic Godart (2010) se mostram muito relevantes. Em um primeiro momento, o autor aborda o uso de outro termo relacionado ao conceito da afirmação e frequente no mundo da moda: a ostentação. Ao definir esse termo, o autor afirma que "a ostentação é a afirmação agonística, fundamentada na luta por posição econômica, status social ou inclusão cultural por meio de elementos visíveis e suscetíveis de serem interpretados por todos.” (Godart, 2010, p. 23).

Ao apresentar essa definição, Godart questiona a utilização da palavra ostentação ao se falar em moda. De acordo com o sociólogo francês, o teor agnóstico do termo confere à palavra ostentação uma característica conflituosa que esteve presente nos princípios da moda - dentro da disputa entre a burguesia e a nobreza - mas não perdurou na moda moderna. "Ostentar" aponta para uma ideia de superioridade, de se mostrar melhor - quando na verdade a moda costuma ser utilizada apenas como uma forma de comunicação e afirmação dentro de um determinado grupo social.

Parece, portanto, mais apropriado substituir o termo “ostentação” pela palavra “afirmação”, que traduz a mesma ideia de comunicação de sinais identitários por meio do vestuário de outros objetos ou práticas, sem necessariamente referir-se a uma postura agonística. Os indivíduos assinalam suas diversas inclusões sociais por meio de sinais identitários, dos quais as vestimentas constituem um elemento central, mas o único, visto que as práticas culinárias, turísticas ou mesmo linguísticas também são sinais identitários. (Godart, 2010, p. 24)

Integrar grupos sociais é um ato que faz parte da natureza humana. As pessoas se aproximam naturalmente de acordo com interesses comuns, semelhança de pensamentos ou objetivos congruentes. É usual ver grupos de praticantes de esportes, admiradores de estilos musicais, defensores de causas sociais ou seguidores dos mesmos ideais políticos.

No convívio desses grupos, símbolos são utilizados como forma de comunicação, identificação e aproximação. Como Godart (2010) aponta, esses sinais podem aparecer nos mais diversos contextos sociais. Até mesmo as questões linguísticas podem ser sinais identitários a partir do uso de expressões e particularidades utilizadas apenas pelos membros do grupo em questão.

Nesse cenário, retornando à questão da moda, a estética da indumentária se apresenta como uma das ferramentas mais relevantes para a inserção de um indivíduo dentro de um grupo

42

social. As roupas são símbolos silenciosos e ao mesmo tempo extremamente poderosos no envio e recepção de mensagens entre os membros da sociedade. Citando o estilista brasileiro Ronaldo Fraga: "o ato da escolha da roupa é um ato político"1. Com isso, a relação com a moda e a afirmação se mostra um fator essencial para a estruturação e a dinâmica da sociedade moderna. De forma intencional ou inconsciente, o ato de se vestir é também o ato de se posicionar dentro da sociedade.