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4. Construindo o cenário

4.3 Período de guerra: privações e mudanças sociais

4.3.1 Mudanças no papel feminino

Entre os efeitos da Primeira Guerra Mundial que viriam a se estender muito além do cessar dos canhões, a transformação do papel feminino na sociedade ocidental se destaca como um dos mais relevantes. A guerra proporcionou uma contaminação entre os papéis sociais dos gêneros que era praticamente inexistente antes desse período. Por muito tempo, a função de homens e mulheres dentro da sociedade foi expressamente delimitada - além de imposta e controlada unicamente pela parcela masculina da população.

Com a chegada da guerra e a mudança na organização da sociedade, a perspectiva feminina ganhou espaço. No entanto, é indispensável destacar que essa mudança não equilibrou o poder de ambos os no corpo social: as mulheres continuaram desconsideradas e silenciadas

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nos cenários político e econômico. Contudo, algumas alterações no papel feminino atuaram de forma significativa para um novo posicionamento das próprias mulheres em frente à todas as questões que envolvem a vida em sociedade.

Para iniciar a abordagem do tema, é indispensável destacar a importância da questão profissional como alicerce dessa transformação. O protagonismo inesperado da força de trabalho feminina durante a Primeira Guerra Mundial é destacado na reportagem “Guerra destruiu figura do "homem herói" e consagrou mulher no trabalho”, publicada no Portal UOL: A princípio, quem só era vista como capaz de trabalhar em tecelagens ou, na melhor das hipóteses, como educadora e enfermeira, passou a ajudar conduzindo trens e ônibus, atendendo ao público nas agências de Correios, servindo de mão de obra nas fábricas de armas e munições e como datilógrafa em repartições públicas.4

Antes do início da Primeira Guerra Mundial, o mercado de trabalho era um espaço predominantemente masculino. É equivocado afirmar que não havia nenhuma mulher atuando no processo produtivo, mas isso não era uma ocorrência corriqueira - e esse papel atípico era geralmente performado em ramos específicos, por mulheres da classe baixa e em posições consideradas inferiores. Figuras femininas não constavam na linha de frente da força de trabalho ou em cargos de liderança.

Para compreender esse posicionamento, mostra-se relevante destacar que o papel de cuidadora do lar e dos filhos foi atribuído às mulheres durante muitos séculos, reprimindo qualquer figura feminina que tentasse mudar esse cenário e buscar a atuação profissional. Essa recusa também refletia nas mulheres que almejavam educação ou qualificação. Na sociedade ocidental anterior à Primeira Guerra Mundial, as mulheres não eram vistas como “talhadas” para a atuação profissional.

Na realidade, a mudança do papel feminino durante a Primeira Guerra Mundial não foi uma ocorrência esperada. Como destacado no capítulo anterior, independentemente do posicionamento político e econômico, autoridades e países envolvidos no conflito acreditavam que a guerra se resolveria em poucos meses. Dessa forma, impactos tão profundos e devastadores eram inimagináveis até mesmo para os maiores pessimistas.

No período inicial da guerra, quando os primeiros homens foram recrutados para o treinamento bélico e o conflito ainda era guiado por estratégias e planejamento, os impactos do conflito no mercado de trabalho foram controlados sem danos devastadores à produção. Nesse

4Guerra destruiu figura do "homem herói" e consagrou mulher no trabalho. UOL. Consultado em 12 de janeiro 2020. Disponível em https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2015/05/08/guerra-destruiu- figura-do-homem-heroi-e-consagrou-mulher-no-trabalho.htm

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ponto, as lacunas deixadas pelo recrutamento masculino para a composição da frente de batalha eram compensadas pelos homens remanescentes na força de trabalho.

Contudo, o início da guerra das trincheiras e o aumento no número de mortes afetou esse cenário de forma significativa. Rapidamente, os espaços vazios no mercado de trabalho se multiplicaram e a demanda de produção passou a não ser preenchida. Em meio às estratégias bélicas, a maior parte dos produtos e recursos eram direcionados para abastecer os soldados nas frentes de batalha. Com isso, apesar da contenção experienciada pela população durante o período de guerra, as necessidades do exército exigiam uma cadeia produtiva efetiva e acelerada. Com a missão de preencher as lacunas na mão de obra e garantir o movimento da economia, as mulheres foram oficialmente convocadas para o mercado de trabalho.

As frentes internas foram obrigadas a responder quando a guerra - que nas previsões iniciais teria curta duração - se arrastou segundo ano adentro. Quando as pesadas baixas criaram uma contínua necessidade de reposição do contingente de soldados e a exaustão dos estoques de munição passou a impor à indústria exigências inauditas, as mulheres assumiram um papel cada vez mais importante como trabalhadoras ou voluntárias não combatentes. (Sondhaus, 2014, p. 420)

Além da ocupação das vagas de trabalho na indústria, as mulheres também precisaram suportar todo o serviço realizado no campo. Entre os fatores fundamentais para a sobrevivência humana, as colheitas eram responsáveis pelo suprimento de todos os setores da sociedade, incluindo a alimentação diária da força de batalha. Dessa forma, a demanda compeliu milhões de mulheres a assumirem a liderança em fazendas ao redor de todo o continente.

Esse protagonismo feminino é abordado na reportagem “Mulheres no coração do esforço de guerra durante o primeiro conflito mundial”, produzida originalmente pela agência francesa AFP e traduzida pelo jornal brasileiro Estado de Minas. De acordo com os dados apresentados na matéria, “44% das granjas bávaras eram administradas por mulheres em 1916. Na França, 800 mil mulheres cuidavam de propriedades agrícolas.”5

Outro mercado fundamental durante a Primeira Guerra Mundial abordado na reportagem é a indústria armamentista. Para suprir as frentes de batalha, milhões de mulheres foram introduzidas às técnicas de produção de munição e armas de fogo. Na França, essas trabalhadoras ganharam a denominação munitionnettes, grupo que se tornou símbolo da entrada da força feminina na indústria.

5Mulheres no coração do esforço de guerra durante o primeiro conflito mundial. Jornal Estado de Minas.

Consultado em 12 de janeiro 2020. Disponível em

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2014/06/28/interna_internacional,542499/mulheres-no- coracao-do-esforco-de-guerra-durante-o-primeiro-conflito-mundial.shtml

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A publicação do Estado de Minas também cita a frase histórica pronunciada em 1915 por David Lloyd George, futuro premier britânico: “sem as mulheres, a vitória vai demorar”6.

George foi uma das primeiras autoridades a reconhecer a relevância do papel feminino para toda a sociedade durante o período de conflito. Após o fim da guerra, em um pronunciamento realizado em 22 de agosto de 1918, o político apontou o reconhecimento e a gratidão do governo britânico pelo o trabalho de milhões de mulheres durante os anos de conflito.

If it had not been for the splendid manner in which the women came forward to work in hospitals, in munition factories, on the land, in administrative offices of all kinds, and in war work behind the lines, often in daily danger of their lives, Great Britain and, as I believe, all the Allies would have been unable to withstand the enemy attacks during the past few months. For this service to our common cause humanity owes them unbounded gratitude.7

Além da atuação profissional nos contextos urbano e rural, as figuras femininas também sustentaram a responsabilidade sobre o núcleo familiar e a esfera social, comandando o funcionamento de toda a sociedade. Segundo Grayzel e Proctor (2017), muito além do serviço laboral tradicional, as mulheres assumiram uma enorme variedade de papéis importantes para as suas nações durante o período de guerra: “elas substituíram os homens ausentes em trabalhos comunitários, organizações religiosas e instituições de caridade locais; elas criaram novas organizações para atender às necessidades do tempo de guerra de crianças, mães, refugiados e, acima de tudo, soldados.” (Grayzel & Proctor, 2017, p. 7). Dessa forma, o papel de liderança das mulheres foi uma situação imposta pelas circunstâncias, mas determinante para o aumento da liberdade e autonomia femininas.

O envolvimento das mulheres também alcançou o âmbito militar. Inicialmente, a atuação feminina junto ao exército foi direcionada para o tratamento dos soldados feridos em batalha. Em hospitais, instituições e enfermarias improvisadas nos próprios acampamentos militares, milhares de mulheres atuaram como enfermeiras e ajudaram a salvar vidas durante os anos de conflito.

Posteriormente, a mão de obra feminina foi expandida para outras funções: telefonistas, cozinheiras, rádio operadoras, secretárias, entre outras atribuições em auxiliares ao exército. No artigo Women during the First World War, Morselli e Lehmann (2016) destacam a atuação

6 Britain's Great War - How War Changed the Face of the Nation. BBC. Consultado em 20 de janeiro 2020. Disponível em https://www.bbc.co.uk/programmes/p01s12hn/p01s12x8

7 From the archive, 22 August 1918: David Lloyd George on women and the war. The Guardian. Consultado em 23 de janeiro 2020. Disponível em https://www.theguardian.com/theguardian/2013/aug/22/women-first-world- war-lloyd-george

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de 13 mil mulheres na Marinha norte-americana e 100 mil no exército britânico. Na Rússia, milhares de mulheres receberam formação militar e lutaram diretamente na linha de frente do conflito.

A partir desses dados, as autoras apontam como a participação militar foi uma ocorrência importante para a colocação feminina em espaços que eram considerados "impróprios" para as mulheres em tempos anteriores. Em meio às duras exigências da guerra, características como “dependência e vulnerabilidade” - frequentes na visão romântica da figura feminina - deixaram de caracterizar grande parte das mulheres ocidentais.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, com o número gigantesco de mortes nas frentes de batalha, muitas mulheres sustentaram o papel de chefes de família. Apesar do retorno de uma parcela dos homens recrutados aos postos de trabalho, a atuação feminina continuava necessária para suprir milhões de trabalhadores perdidos em combate. Mesmo entre as mulheres que retornaram ao lar e à mesma estrutura familiar anterior ao conflito, os efeitos psicológicos e emocionais da guerra não foram repentinamente apagados. Em frente às responsabilidades e adversidades enfrentadas, a mulher que entrou na década de 1920 já não era a mesma de uma década antes.

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