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3 IMPARCIALIDADE, INDEPENDÊNCIA E JUSTIÇA NOS JULGAMENTOS

3.2 A ESPECIAL POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS NO QUADRO DA

3.2.2 Imparcialidade e independência

Como visto, o principal motivo apresentado pela doutrina para distinguir os juízos judiciais e administrativos é a suposição de que não se pode esperar da Administração Pública o mesmo nível de imparcialidade e independência que têm os juízes.

Como primeiro questionamento a essa visão, é preciso consignar que se tem inserido, na estruturação de diversos dos principais tribunais administrativos do País, uma série de medidas destinadas a garantir imparcialidade.

O CARF (BRASIL, 2009b) e o Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS),

por exemplo, têm composição paritária4, de modo que o contencioso administrativo-tributário

é decidido por representantes do Fisco e dos contribuintes e o contencioso administrativo- previdenciário é decidido por representantes do governo e dos trabalhadores. No caso do CARF, aliás, o conselheiro representante da Fazenda Nacional é retirado de nomes constantes de lista

tríplice elaborada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil5. O representante dos

contribuintes provém de lista tríplice elaborada pelas confederações representativas de categorias econômicas de nível nacional e pelas centrais sindicais.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), por sua vez, é integrado por componentes com idade superior a trinta anos, reputação ilibada e notório saber jurídico ou

econômico6, aprovados previamente pelo Senado Federal7, com mandato fixo, durante o qual o

conselheiro não poderá ser afastado de suas funções, senão em hipóteses excepcionais8. Além

disso, a própria lei estabelece que “as decisões do CADE não comportam revisão no âmbito do

Poder Executivo”9.

Portanto, os tribunais administrativos não são ontologicamente parciais. Um modelo de imparcialidade pode ser construído e em diversos casos é.

De toda forma, mesmo quando esse modelo não é expresso, a ordem jurídica não admite o contrário. A garantia do devido processo legal assegura aos litigantes acima de tudo o direito a um juiz imparcial. A imparcialidade do julgador é indissociável da ideia de processo. (NERY JÚNIOR, 2004, p. 63-69).

4 Estabelece o Regimento Interno do CRPS:

Art. 5o As Câmaras de Julgamento e as Juntas de Recursos, presididas e administradas por representante do governo, são integradas por quatro membros, denominados Conselheiros, nomeados pelo Ministro de Estado da Previdência Social obedecendo-se a seguinte composição de julgamento:

I - um Conselheiro Presidente da respectiva Câmara ou Junta, que presidirá a composição de julgamento; II - um Conselheiro representante do governo;

III um Conselheiro representante dos trabalhadores; e

IV - um Conselheiro representante das empresas. (BRASIL, 2011a)

5 Nesse sentido, a Portaria RFB nº 1.837/10 estabelece processo seletivo interno, que compreende a análise

curricular dos interessados, atribuindo-se peso, por exemplo, ao tempo de efetivo serviço na Administração pública ou no setor privado, formação técnico-acadêmica e cursos de aperfeiçoamento. (BRASIL, 2009b).

6 Art. 4º, caput, da Lei n.º 8.884/94. (BRASIL, 1994). 7 Art. 52, III, f, da CF.(BRASIL, 1988).

8 Art. 6º da Lei n.º 8.884/94. (BRASIL, 1994). 9 Art. 50 da Lei n.º 8.884/94. (BRASIL, 1994).

Se é assim, deve-se exigir imparcialidade dos tribunais administrativos, pois a garantia do processo legal não se restringe aos procedimentos judiciais. Um expressivo número de autores, como Nagib Slaibi Filho (2004), Elizabeth Maria de Moura (2000) e vários outros, sustentam que o direito ao devido processo legal, previsto na Constituição Federal Brasileira, art. 5º, LV, abrange o contencioso administrativo. O STF também acolhe essa doutrina e em

dezenas de precedentes usa textualmente a expressão “devido processo legal administrativo”.10

Em precedente já citado neste trabalho, o CARF usou como fundamento para negar provimento ao recurso do contribuinte o argumento de que, havendo descumprimento da legislação, “o Auditor Fiscal está obrigado, por força do art. 142 do CTN, a impor a respectiva penalidade”. (BRASIL, 2007).

Sem entrar no mérito da decisão, vê-se que o CARF usou como fundamento o fato de que o ato do auditor estava de acordo com o texto da lei. Mas o ato do auditor foi produzido no contexto de uma autuação fiscal, ao passo que o do CARF, no de um processo administrativo.

O CARF é uma instância julgadora do processo administrativo fiscal. E, se é de processo que se cuida, com duas partes litigando em contraditório, configura-se uma instância de discussão diferente, que atrai um regime específico. Esse regime específico, como sustenta a doutrina especializada, é informado pela cláusula do devido processo legal, cujo escopo é a proteção dos direitos individuais e que abrange o direito à igualdade e à imparcialidade, revelando-se como requisito de constitucionalidade para qualquer procedimento que possa resultar na privação a direitos individuais constitucionalmente garantidos. (GRIONOVER, 1973). Assim, a conduta do agente fiscal, que representa o Estado, deve ser impessoal. Mas não se lhe pode exigir que seja imparcial, ao menos não no sentido que se exige dos órgãos administrativos que decidem os litígios instaurados entre o Fisco e o contribuinte. A visão de Paulo de Barros Carvalho, de que a Administração não pode nunca reunir plenamente as condições da imparcialidade (CARVALHO, 2011, p. 10), pode ser verdadeira se restringir-se a qualquer outro procedimento que não o do contencioso administrativo. No campo do contencioso, o devido processo legal exige imparcialidade.

Por outro lado, não é apenas a imparcialidade que é obrigatória, mas também a independência. Embora integrem a Administração, no momento do julgamento os tribunais administrativos se destacam do controle hierárquico, pois em diversas ocasiões a própria Administração é julgada por eles. É o que acontece no contencioso administrativo tributário,

10 Essa expressão foi usada, por exemplo, nos seguintes processos: RE 356577, Relator Ministro Marco Aurélio,

DJe 12.3.2013; MS 25483, Relator Ministro Ayres Britto, DJe 14.9.2007; AI 508672 AgR, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 20.5.2005, todos alusivos a decisões administrativas.

como enfatiza Dejalma de Campos (1998, p. 53), ao dizer que esse procedimento “é um sistema de prestação jurisdicional destinado a resolver conflitos emergentes da relação entre o contribuinte e o Fisco”. É por isso que, em relação ao CARF, há entendimento doutrinário no seguinte sentido:

Ao contrário das Delegacias de Julgamento, que devem observar o disposto no art. 116, III, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, bem assim o entendimento da Secretaria da Receita Federal (SRF) expresso em atos tributários e aduaneiros, os Conselhos de Contribuintes não estão subordinados à SRFB. Subordinam-se, porém, assim como as DRJs, à legalidade, não podendo, segundo a jurisprudência, já assentada no âmbito administrativo, decidir sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei. (PAUSEN; ÁVILA; SLIWKA, 2007, p. 76).

É neste ponto que a relação que os colegiados administrativos têm com a lei se distingue da relação que os demais agentes administrativos têm. A atuação dos auditores fiscais, por exemplo, é vinculada pelo controle hierárquico, submetendo-se aos atos infralegais baixados por seus superiores, ao passo que a interpretação do Direito tributário pelo CARF não pode ser controlada por esse meio, sob pena de que se comprometa a imparcialidade. Não que o CARF não tenha a obrigação de apreciar toda a legislação tributária, legal e infralegal. O que não pode haver é o controle da sua interpretação por atos infralegais.

A independência decisória é uma garantia do administrado que não pode ser afastada. Assim, quando um órgão julgador se estrutura, como o CARF, o CADE ou até mesmo uma comissão julgadora de processo administrativo disciplinar, a hierarquia administrativa não pode, sem ter competência recursal, modificar a suas decisões no mérito. É por isso que Wladimir Novaes Martinez sustenta que:

Nomeado para exercer o cargo de julgador, o servidor deixa de subordinar-se funcionalmente ao seu superior, devendo obediência apenas à lei, conforme ele a conceber. Não terá de ficar ao lado da Administração ou do contribuinte, mas da Constituição Federal. (MARTINEZ, 1998, p. 259).

O mesmo entendimento já foi adotado pelo STJ, no Mandado de Segurança 8810, em decisão especificamente dirigida ao CARF, na qual se considerou ilegal o processamento de recurso hierárquico para o Ministro da Fazenda contra decisão do colegiado. O precedente recebeu a seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO DE CONTRIBUINTES - DECISÃO IRRECORRIDA – RECURSO HIERÁRQUICO – CONTROLE MINISTERIAL – ERRO DE HERMENÊUTICA.

I - A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal.

II - O controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei.

[...]

IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida. (BRASIL, 2003).

Vale consignar que esse acórdão foi impugnado pelo Recurso Extraordinário n. 535.077, ao qual o então Ministro Relator, Carlos Britto, negou seguimento por declarar a ausência de questão constitucional a ser dirimida pelo STF. Essa decisão monocrática foi objeto de agravo regimental, que, até a conclusão deste trabalho, não foi ainda apreciado.

Portanto, pode-se concluir que, no tocante à interpretação da lei, os órgãos que decidem litígios administrativos não se submetem à revisão de qualquer outro órgão que não seja legalmente estabelecido como instância recursal. Muito mais que uma garantia institucional dos conselhos, essa é uma garantia dos litigantes, de que seus argumentos serão imparcialmente analisados, e decorre da cláusula constitucional do devido processo legal, estabelecida no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República. (BRASIL, 1988).

Ocorre que, além de assegurar a imparcialidade e a independência, o princípio do devido processo legal “se caracteriza pela excessiva abrangência e quase se confunde com o Estado de Direito.”(MARTINS, 1989, p. 261). Nessa abrangência, inclui-se o enfoque material do devido processo, como sustenta, dentre outros, André Ramos Tavares, para quem essa acepção

material, por exemplo, “diz respeito à necessidade de observar o princípio da

proporcionalidade.” (TAVARES, 2002, p. 483). Na realidade, a definição de devido processo legal material, ou substancial, também é abrangente. Envolve a proporcionalidade, mas também outras ideias, sobretudo a de que os litigantes têm direito a uma decisão que se distancie dos absurdos, dos contrassensos e da injustiça. E que se aproxime da racionalidade.