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Interpretação e aplicação do direito pelos tribunais administrativos : conjecturas formuladas a partir da experiência do CARF

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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO

PELOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS:

CONJECTURAS FORMULADAS A PARTIR

DA EXPERIÊNCIA DO CARF

Autor: João Marcelo Torres Chinelato

Orientador: Julio Cesar de Aguiar

Brasília - DF 2014

Stricto Sensu em Direito

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO

PELOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS:

CONJECTURAS FORMULADAS A PARTIR

DA EXPERIÊNCIA DO CARF

Brasília - DF

2014

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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO PELOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS:

CONJECTURAS FORMULADAS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO CARF

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da

Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito.

Orientador: Julio Cesar de Aguiar, PhD

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Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB C539i Chinelato, João Marcelo Torres.

Interpretação e aplicação do direito pelos tribunais administrativos: conjecturas formuladas a partir da experiência do CARF. / João Marcelo Torres Chinelato – 2014.

78 f.; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2014. Orientação: Prof. Dr. Julio Cesar de Aguiar

1. Tribunais administrativos. 2. Interpretação jurídica. 3. Legalidade. 4. Proporcionalidade (direito). I. Aguiar, Julio Cesar de, orient. II. Título.

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Referência: CHINELATO, João Marcelo Torres. Interpretação e aplicação do direito pelos tribunais administrativos: conjecturas formuladas a partir da experiência do CARF. 2014. 78

f. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Universidade

Católica de Brasília, Brasília, 2014.

Este trabalho tem por objetivo analisar a interpretação e a aplicação do direito no âmbito dos tribunais da Administração Pública de modo geral, a partir do exame da experiência jurisprudencial do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (CARF) e do modo como a doutrina do contencioso fiscal trata o tema. Mediante essa abordagem indutiva, torna-se possível identificar ideias tais como a de que o princípio da legalidade vincularia os tribunais da Administração no plano hermenêutico, que não haveria lugar para juízos de razoabilidade e proporcionalidade nesse âmbito e que os tribunais administrativos não seriam suficientemente imparciais e independentes. Após registrar que, na concepção de Hans Kelsen, a interpretação jurídica autêntica feita pelo Judiciário e pela Administração Pública tem a mesma natureza, e que isso permite concluir que ambos enfrentariam os mesmos problemas hermenêuticos, passa-se a questionar a forma como a jurisprudência do CARF e a doutrina do contencioso fiscal visualizam a hermenêutica administrativa. Em primeiro lugar, confronta-se a acusação de parcialidade dos tribunais da Administração a partir do exame da estrutura dada pela lei a alguns dos principais conselhos administrativos brasileiros. Depois, questiona-se o uso do princípio da legalidade como pauta para a aplicação do direito, defendendo-se que a razoabilidade e a proporcionalidade é que devem fazer esse papel, sob pena de que a própria legalidade seja subvertida.

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This work aims to analyze the interpretation and application of law in the courts of public administration in general. This objective is achieved considering the experience of decisions of Board of Tax Appeals of the Ministry of Finance (CARF) and the way tax disputes doctrine treats the subject. Through analytical approach is found in the administrative case law and doctrine as the ideas that the principle of legality unites the administrative courts in the hermeneutic plan, that there was no space for judgments of reasonability and proportionality in that area and that the courts of the Public Administration are not as neutrals and independent. At the thought of Hans Kelsen legal interpretation given by the judiciary and public administration has the same nature, what makes them to conclude that both face the same problems of interpretation, begins the examination of the way the jurisprudence of the CARF and analyze tax law doctrine of administrative hermeneutics. First is checked partiality Administrative courts observing the legal composition of the most important Brazilian administrative boards. In the second place is examined whether the principle of legality guides law enforcement, defending that reasonableness and proportionality must of perform this function, failing that lawfulness itself be subverted.

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1 INTRODUÇÃO ... 7

2 INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO PELOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS – A VISÃO DO CARF E DA DOUTRINA ... 10

2.1 PRECEDENTES DO CARF SOBRE A DIMENSÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ... 11

2.2 PRECEDENTES DO CARF SOBRE A RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE ... 16

2.3 DOUTRINA SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO ... 18

2.3.1 Regras hermenêuticas projetadas pelo princípio da legalidade estrita ... 19

2.3.2 Processo judicial x Processo administrativo ... 20

2.3.3 Interpretação sistemática e juízos de ponderação ... 22

2.4 CONCLUSÕES SOBRE A VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA E DA DOUTRINA ... 24

3 IMPARCIALIDADE, INDEPENDÊNCIA E JUSTIÇA NOS JULGAMENTOS ADMINISTRATIVOS ... 25

3.1 A INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA COMO INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA NA PERSPECTIVA DE HANS KELSEN ... 25

3.2 A ESPECIAL POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS NO QUADRO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ... 29

3.2.1 A irrelevância da distinção entre agentes políticos e administrativos ... 29

3.2.2 Imparcialidade e independência ... 30

3.2.3 O direito dos litigantes a uma solução justa ... 34

4 LEGALIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTEXTO DA INTEPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA ... 36

4.1 CRÍTICA AO USO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE COMO METANORMA INTEPRETATIVA ... 36

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4.1.4 A crítica dos filósofos da linguagem à própria noção de sentido literal ... 41

4.1.5 O redimensionamento do princípio da legalidade ... 43

4.2 JUÍZOS DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO ... 46

4.2.1 Razoabilidade e proporcionalidade são princípios? ... 47

4.2.1.1 A doutrina que distingue as normas jurídicas em regras e princípios ... 47

4.2.1.2 Críticas à doutrina que distingue regras e princípios ... 49

4.2.1.3 A doutrina que descaracteriza a razoabilidade e proporcionalidade como princípios ...51

4.2.2 Razoabilidade e proporcionalidade são normas constitucionais? ... 52

4.2.3 O duplo enfoque da razoabilidade e da proporcionalidade ... 53

4.2.3.1 Razoabilidade e proporcionalidade como meios de controle de constitucionalidade 54 4.2.3.2 Razoabilidade e proporcionalidade como regras de interpretação ... 54

4.2.3.2.1 O duplo enfoque na jurisprudência ... 54

4.2.3.2.2 O duplo enfoque na doutrina ... 56

4.2.4 Razoabilidade, proporcionalidade, teleologia e o reconhecimento de normas implícitas ...57

7 4.2.4.1 Pontos de contato entre interpretação finalística (teleológica) e as ideias de razoabilidade e proporcionalidade ... 58

4.2.4.2 Normas implícitas ... 62

5 CONCLUSÃO ... 64

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho trata da interpretação e aplicação do Direito pelos tribunais administrativos. Esses órgãos são estruturados pela Administração para decidir litígios entre particulares ou entre estes e o próprio Estado. Embora os tribunais administrativos atuem de forma análoga à dos órgãos judiciais e interpretem o Direito diariamente, dificilmente a hermenêutica jurídica é abordada por uma ótica que não seja a do juiz.

Em que pese a escassez de estudos sobre o tema, é possível encontrar na jurisprudência administrativa e em trabalhos especializados algumas diretrizes hermenêuticas especialmente dirigidas aos tribunais da Administração. A formulação dessas diretrizes, em boa parte das vezes, liga-se ao modo como se visualizam o princípio da legalidade estrita e os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade. Como se verá, tais questões têm decisiva repercussão no modo como se concebe a interpretação do Direito no plano administrativo.

Assim, pergunta-se neste trabalho, de maneira geral, se a ordem jurídica impõe aos tribunais administrativos um estatuto hermenêutico próprio. E, especificamente, se esse estatuto poderia, em primeiro lugar, transformar o princípio da legalidade em uma super-regra da interpretação administrativa, e, em segundo lugar, proibir a realização de juízos de razoabilidade e proporcionalidade pelos tribunais da Administração.

Como método de abordagem (BARRAL, 2007, p. 62), serão expostas diversas decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e teses tributaristas que tratam do tema. Em seguida, essas teses serão analisadas, criticamente, à luz de teorias jurídicas que tratam de interpretação de um modo geral. Com isso, pretende-se identificar problemas e possíveis soluções que se possam indutivamente generalizar para todo o contencioso administrativo.

De acordo com a nomenclatura metodológica adotada por Barral (2007, p. 62), adotou-se como método de procedimento a pesquisa da jurisprudência do CARF, que possui um sofisticado sistema eletrônico de busca, assim como a pesquisa bibliográfica da doutrina do processo administrativo tributário, que, no quadro dos trabalhos sobre o contencioso administrativo, é mais extensa. Em sequência, os resultados alcançados serão confrontados com construções teóricas que tratam da interpretação e aplicação do Direito.

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razoabilidade e proporcionalidade. Também serão reunidas diversas posições doutrinárias que, além de se alinharem a essa perspectiva, acrescentam que a razão para essas restrições estaria no fato de que os tribunais administrativos não são suficientemente imparciais e independentes.

Na sequência, essas teses serão analisadas criticamente. Como introdução, se revisitará a perspectiva de Hans Kelsen sobre a interpretação jurídica, concluindo-se que a natureza da interpretação praticada pelos tribunais judiciais e administrativos, assim como a complexidade das questões que ambos enfrentam, é a mesma. Se Kelsen estiver correto, seria no mínimo desejável que essas duas esferas decisórias pudessem contar com teorias e técnicas hermenêuticas de igual categoria. Pelo menos, sempre que possível. Se alguma restrição interpretativa for imposta aos tribunais da Administração, então, essa restrição deverá estar apoiada em razões consistentes.

Fixada essa ideia, será analisada primeiramente uma das razões mais frequentemente apresentadas para se justificar restrições à interpretação administrativa: o entendimento segundo o qual não se pode esperar imparcialidade e independência da Administração Pública. Buscar-se-á desfazer uma série de pré-compreensões a esse respeito.

Após, será examinada outra tese, que extrai do princípio da legalidade estrita uma série de balizas hermenêuticas para os tribunais administrativos. Será visto que, no CARF e nalguma doutrina, o princípio da legalidade é recorrentemente usado como recurso argumentativo para sustentar a ideia de que os julgamentos administrativos devem conformar-se estritamente à textualidade da lei. Essa aplicação do princípio da legalidade tem inúmeros pontos de contato com outra construção teórica, mais antiga, batizada como a doutrina do respeito à vontade do legislador. Assim, a aplicação do princípio da legalidade com tal finalidade pode ser encarada como uma retomada dessa doutrina, que preconiza a interpretação literal do Direito. A partir dessa constatação, serão revisitados alguns importantes teóricos da hermenêutica jurídica que atacaram essa corrente, assim como os estudos de juristas e filósofos da linguagem que põem

em dúvida a própria noção de “sentido literal”. Por fim, será apresentada a ideia de que a

imposição de interpretações gramaticais e não-sistemáticas conflita com a doutrina administrativista contemporânea, que tem proposto um novo conceito de legalidade.

Finalizando essa parte, será questionada a ideia de que o princípio da legalidade poderia funcionar como uma espécie de pauta para a interpretação administrativa. Será visto que esse princípio foi desde o início concebido para regular a conduta dos indivíduos e não para funcionar como um critério de aplicação do Direito.

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Em sentido oposto, se defenderá que, se por um lado o princípio da legalidade não pode servir como uma pauta para a interpretação do Direito, por outro, são justamente as ideias de razoabilidade e de proporcionalidade que devem fazer esse papel.

Para sustentar essa assertiva, será visto que a colocação da razoabilidade e da proporcionalidade dentro da categoria dos princípios é profundamente controversa, aderindo-se expressamente neste trabalho à corrente que não as vê como princípios e muito menos como princípios exclusivamente constitucionais. A visualização da razoabilidade e da proporcionalidade fora da categoria dos princípios tornará mais clara a doutrina que dá a esses postulados um duplo enfoque: o primeiro, que os vê como critérios para se aferir a legitimidade constitucional dos atos do Estado; o segundo, que os vê como guias para a interpretação e aplicação de todo o Direito.

Defende-se neste trabalho que os juízos de razoabilidade e proporcionalidade, nesse segundo enfoque, podem ser legitimamente utilizados no contencioso administrativo para orientação da atividade interpretativa. Quando aplicados desse modo, não assumem a forma de juízos de inconstitucionalidade e não afastam a lei, mas dela extraem o seu correto sentido. Por outro lado, o uso da razoabilidade e da proporcionalidade para orientar a interpretação de outras normas é uma operação que tem inúmeros pontos de contato com o que no passado se chamou de interpretação finalística ou teleológica. Também tem ligações com a descoberta de que o sistema jurídico contém normas implícitas. Consequentemente, a proibição dos juízos de razoabilidade e proporcionalidade no âmbito administrativo pode ser encarada como uma geral insurgência contra interpretações finalísticas, sistemáticas e principiológicas. Defende-se neste trabalho que essa posição subverte a legalidade.

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2 INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO PELOS TRIBUNAIS

ADMINISTRATIVOS – A VISÃO DO CARF E DA DOUTRINA

Este trabalho trata da interpretação e aplicação do Direito no contencioso administrativo, formulando sua análise a partir da experiência do CARF. Sendo esse o objeto, fazem-se necessários alguns esclarecimentos sobre a perspectiva que neste trabalho se adota acerca da interpretação do Direito, bem como sobre o que é o CARF.

O primeiro esclarecimento refere-se a um pressuposto, sobre o fenômeno interpretativo, que tem ampla aceitação dentre os teóricos. Segundo essa ótica, o sentido de uma lei somente se conhece no momento de sua aplicação; e o texto da lei não se confunde com a norma jurídica que nele está contida. Nesse sentido, Hans-Georg Gadamer, em sua prestigiada abordagem filosófica da hermenêutica, sustenta que tanto a hermenêutica jurídica quanto a teológica vivem

uma tensão entre o texto – da lei ou do Evangelho – e o sentido que alcança a sua aplicação no

concreto instante da interpretação – o juízo ou a pregação. Essa tensão, na visão de Gadamer,

se resolve pela constatação de que tanto as leis quanto os textos bíblicos não querem ser entendidos historicamente. Por isso, deve-se buscar compreender um texto de acordo com as

pretensões que ele apresenta, isto é, “em cada situação concreta de uma maneira nova e

distinta.” (GADAMER, 2005, p. 407-408). Aplicando essa visão ao mundo jurídico, Eros Grau

(1996, p. 153) defende que a interpretação do Direito consiste em aplicar a lei em cada caso,

pois “o intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado dado.”

Por outro lado, o sentido do texto – a norma – é algo diverso do próprio texto. Por isso, Eros

Grau (2002, p. 72) diz que “o conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas

ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de

normas potenciais.” Humberto Ávila (2003, p. 22) também sustenta que normas não são textos

nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática dos textos normativos. Assim, a texto escrito da lei não coincide com a norma que nele está contida e cujo conteúdo o intérprete revelará somente no momento da aplicação.

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(BRASIL, 2009a). Esse órgão sucedeu o Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, criado pelo Decreto 16.580, de 4 de setembro de 1924. (BRASÍLIA, 1924).

Assim, no sistema brasileiro os tributos podem ser questionados não apenas no processo judicial, mas também na via administrativa, o que começa na Receita Federal do Brasil, em suas unidades de julgamento de primeira instância, que são as Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (BRASIL, 2006), e termina no CARF, órgão de segunda e última instância desse processo, que está sediado em Brasília.

O CARF tem composição paritária, contando com representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes. Seus órgãos fracionários são formados por seções, câmaras e turmas, estas últimas integradas por 6 (seis) conselheiros titulares, sendo 3 representantes da Fazenda Nacional e 3 representantes dos contribuintes. (BRASIL, 2009b).

Mais recentemente, a Lei n. 12.833, de 2013 (BRASIL, 2013a), incluiu um parágrafo único no artigo 48 da Lei nº 11.941, de 2009, para assegurar aos conselheiros do CARF a impossibilidade de responsabilização civil em razão de suas decisões, exceto em comprovadas situações de dolo ou fraude. A introdução dessa norma teve como pano de fundo uma série de questionamentos judiciais feitos a decisões do Conselho, por meio de ações populares em que

se alegava “omissão arrecadatória.” (CANÁRIO, 2013) e, em alguns casos, se pedia o chamamento ao processo dos próprios conselheiros do órgão (KNOPFELMACHER, 2014).

Tais acontecimentos dão um sinal de que os limites do CARF na aplicação do Direito Tributário são objeto de dúvida e geram problemas institucionais concretos, demonstrando que algo precisa ainda ser estudado nesse campo.

Feitos esses esclarecimentos, passa-se a examinar algumas diretrizes importantes, relativas aos limites que o CARF visualiza na atividade interpretativa que se desenvolve no processo administrativo. Tais diretrizes aludem aos chamados princípios da legalidade estrita, da razoabilidade e da proporcionalidade. Os entendimentos do CARF sobre esses temas são suficientemente frequentes e constantes para configurarem aquilo que processualmente se designa como jurisprudência (TARUFFO, 1994). Em sequência, o tema também será analisado no âmbito doutrinário.

2.1 PRECEDENTES DO CARF SOBRE A DIMENSÃO HERMENÊUTICA DO

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

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10715.007718/2008-90, por exemplo, decidiu-se o caso de um contribuinte que pretendia afastar uma multa que lhe fora imposta pelo Fisco do seguinte modo:

Sobre a defendida ofensa ao princípio da proporcionalidade, da razoabilidade, dentre outros, estes são dirigidos ao legislador, e não ao aplicador da lei, o qual, diante da norma existente no mundo jurídico, deverá aplica-la obrigatoriamente por força do art. 116, inciso III, da Lei 8.112/90, preceito o qual se repete no artigo 41, inciso IV, do Anexo II, do atual Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, aprovado pela Portaria MF no 256, de 22/06/2009.(BRASIL, 2012a) Essa decisão reflete um entendimento, predominante no CARF, no sentido de que a ausência de prejuízo para o Fisco, assim como a intenção do contribunte, são irrelevantes para a configuração das infrações tributárias, cuja base é o artigo 136 do Código Tributário Nacional

(CTN): “salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação

tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e

extensão dos efeitos do ato”. (BRASIL, 1966).

Porém, é possível perceber que o CARF não fundamenta a decisão apenas no referido artigo do CTN, mas, também, nas normas que vinculam o agente administrativo responsável

por aplicar a lei, “o qual, diante da norma existente no mundo jurídico, deverá aplica-la

obrigatoriamente”. Cita-se no precedente, com esse propósito, o artigo 116, III, da Lei 8.112/90, o chamado Estatuto dos Servidores Públicos Federais, que elenca dentre os deveres do servidor

público “observar as normas legais e regulamentares.” (BRASIL, 1990). É essa

complementação ao fundamento do julgado – e não o artigo 136 do CTN – que interessa a este

trabalho.

A mesma orientação jurisprudencial – e a mesma dupla fundamentação – se nota na

questão alusiva à relevância da intenção do contribuinte para a configuração de infrações

tributárias. Como exemplifica o acórdão proferido no Processo 15504.018318/2008-17, o

CARF tem entendido que “independe da intenção do agente a responsabilidade por infração à

legislação tributária.” (BRASIL, 2012b). Isso ocorreu, concretamente, em um caso no qual o

contribuinte alegou que seus documentos se perderam porque suas instalações foram inundadas por uma enchente. O Conselho respondeu a essa argumentação, no Processo

37332.003128/2006-87, da seguinte forma: “havendo dolo ou não, o simples fato de ter sido

constatado o desapego às normas previdenciárias que instituem as obrigações acessórias, o

Auditor Fiscal está obrigado, por força do art. 142 do CTN, a impor a respectiva penalidade”.

(BRASIL, 2007).

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sua função, no caso, seria a de aferir se aquilo que a lei espera de um agente fiscalizador, no plano da correção funcional, foi por ele executado. É curioso notar que, no âmbito penal, o juiz que controla a autoridade policial na condução dos inquéritos não o faz na mesma perspectiva. Ou seja, a autoridade policial pode ter agido em conformidade com o que a lei lhe exige, mas isso não basta, no plano argumentativo, para que o juiz considere válido o inquérito, podendo invalidá-lo por algum desajuste outro com a ordem jurídica. Esse aspecto será retomado mais adiante.

Voltando à análise, deve-se esclarecer que neste trabalho não se pretende valorar o mérito dos julgamentos analisados. O que se pretende é mostrar a visão hermenêutica que está na base de fundamentos decisórios que: a) equiparam o modo pelo qual as instâncias julgadoras do processo administrativo aplicam à lei ao modo pelo qual outros agentes, como os auditores

fiscais, o fazem; b) entendem que a ocorrência da conduta tipificada na lei, que torna “imperiosa

a sua aplicação”, corresponde à ocorrência da conduta “escrita” na lei, o que sugere a ideia de

que uma interpretação estrita e literal seria algo obrigatório no âmbito do processo administrativo.

A relevância desse problema aparece em uma discussão ocorrida no CARF, no Processo 10980.002215/2001-11, sobre a legitimidade da cobrança de imposto sobre a propriedade rural

(ITR) de proprietário cujo imóvel fora invadido por “sem-terras.” (BRASIL, 2006b).

Prevaleceu o entendimento de que a cobrança do ITR seria ilegítima, mas o julgamento foi bastante polêmico e deu-se por maioria de votos, ficando vencidos três conselheiros. A polêmica decorreu do fato de que o regramento do imposto menciona como pressuposto para sua incidência apenas o fato de alguém titularizar uma propriedade rural, nada dispondo sobre eventuais invasões. Ficaram vencidos três dos conselheiros que participaram do julgamento, inclusive a conselheira relatora, que baseou seu voto no princípio da legalidade, nos seguintes termos:

Não se pode olvidar, outrossim, que a Administração Tributária se submete ao princípio da estrita legalidade e, em existindo lei ou legislação complementar que disponha sobre determinado tributo e contribuições, não há como afastá-la, pois a atividade de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (art. 142, parágrafo único, CTN).

A função deste Colegiado é verificar se a exigência tributária foi efetuada nos termos da lei.

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Para rebater essa percepção, o conselheiro que abriu divergência fez as seguintes ponderações:

Precedentes do Supremo Tribunal Federal informam que a invasão de terras particulares por "sem terra" constitui força maior que justifica o descumprimento das obrigações fiscais do ITR.

Ainda mais, digo eu, cobrar ITR do proprietário legal, tendo admitido que ele não reúne as condições que lhe facultariam exercer atividades produtivas e mesmo ter o domínio da terra é incorrer em enriquecimento sem causa. (BRASIL, 2006b). Note-se que pela leitura literal dos dispositivos da lei não restaria opção ao Fisco senão cobrar o tributo. Tanto isso é verdade que os argumentos da tese vencedora não foram extraídos do texto da lei. Ao contrário, foram fundamentos, por assim dizer, extralegais: o entendimento jurisprudencial sobre o assunto e o generalíssimo princípio jurídico que repudia o enriquecimento sem causa.

O que parece ter ocorrido nesse caso é que o Conselho, para superar suas restrições interpretativas, acabou invocando decisões judiciais que fazem exatamente uma leitura não

literal do direito tributário. Quer dizer, a rigor, o Conselho incorporou à sua ratio decidendi a

fundamentação usada pelo Judiciário, e o resultado foi a flexibilização das normas legais aplicáveis à hipótese. Assim, esse precedente configura uma exceção dentro de um quadro jurisprudencial que defende a interpretação literal das normas tributárias.

Outro precedente relevante aconteceu no que se refere ao afastamento de sanções pelo

descumprimento de obrigações acessórias com base na boa-fé do contribuinte. Em geral, como

já visto, o CARF decide pela irrelevância da intenção do agente. No entanto, o mesmo órgão, no Processo 10074.720662/2011-51, esboçou a possibilidade de se construir, dentro do sistema, um entendimento diferente. (BRASIL, 2013b). Nesse caso, ao contrário dos precedentes que retiravam do artigo 136 do CTN uma hipótese de responsabilidade objetiva, aplicando-o aos casos concretos com fundamento também no princípio da legalidade estrita, o relator admitiu a

possibilidade de levar em conta no caso “as circunstâncias materiais ou pessoais do caso

concreto”:

A meu ver, o art. 136 não veicula verdadeira responsabilidade objetiva do contribuinte

faltoso, isto é, responsabilidade independente de culpa; antes, consagra a

responsabilidade independente de dolo. Essa é, para mim, a flexibilização hermenêutica admissível ao art. 136.

Luciano Amaro comunga o entendimento:

“O art. 136 não afirma a responsabilidade tributária sem culpa [...]. Em suma, parece-nos que não se pode afirmar ser objetiva a responsabilidade tributária (em matéria de infrações administrativas) e, por isso, ser inadmissível todo tipo de defesa do acusado com base na ausência de culpa. O que, em regra, não cabe é a alegação de ausência de

dolo para eximirse de sanção” (grifos originais) (direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 445/446).

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que não tenha havido culpa sua; o equívoco no preenchimento das DI decorreu, certamente e no mínimo, de imperícia ou negligência sua.

Por isso, mesmo encampando uma exegese mais suavizada do art. 136, ainda assim não se poderá afastar aqui a sanção cominada à recorrente pela só constatação de sua boa-fé. (BRASIL, 2013b).

Como se vê, nesse caso o CARF acabou mantendo a sanção tributária, mas não por rejeitar de antemão, com base no princípio da legalidade estrita, os argumentos do contribuinte no sentido de que agira de boa-fé. O que o relator declarou em seu voto foi a possibilidade, em

tese, de que em casos tais se levem em conta “as circunstâncias materiais ou pessoais do caso

concreto”.

No mesmo julgamento, examinou-se a possibilidade de se afastar a sanção tributária pelo fato de inexistir prejuízo para o Fisco. Sobre esse ponto, como já mencionado acima, o CARF tem vários precedentes, como exemplifica o Processo 36624.010507/2006-85, segundo

os quais “o fato de trazer ou não prejuízo ao Fisco é irrelevante, pois a obrigação sendo

instrumental, qualquer descumprimento – por presunção legal – acarreta dificuldade na ação

fiscal.” (BRASIL, 2012c).

Diversamente, porém, embora nesse caso também se tenha que reconhecido que o CTN

“consagra a autonomia das obrigações tributárias principal e acessória”, admitiu-se, pelo menos em tese, que a leitura do dispositivo deve ser sistemática e antes de tudo teleológica. Note-se o trecho em que isso se evidencia:

O CTN consagra a autonomia das obrigações tributárias principal e acessória. [...]

Não estou aqui a negar o caráter instrumental da obrigação acessória. Como ensina a

melhor doutrina, esta “nenhuma finalidade pode ter, além daquela de viabilizar o

controle do adimplemento da obrigação principal” (Brito Machado, Hugo de.

Comentários ao CTN. vol. II. São Paulo: Atlas, 2004. p. 302).

A pertinência da obrigação acessória com a obrigação principal deve, contudo, ser sempre aferida em tese, não caso a caso. O que a doutrina não admite é uma obrigação acessória que, potencialmente, em nada se relacione a uma obrigação principal qualquer, que em nenhuma hipótese concreta possa ser útil à atividade da administração tributária na busca do tributo.

Realmente, “não teria sentido obrigar o comerciante [...] a manter escrituração de todas as compras, e de todas as vendas em livros especificamente a este fim destinados [...] se não existissem tributos incidentes sobre a produção e a circulação de

mercadorias, e sobre a renda de tais pessoas” (Brito Machado, Hugo de. Comentários

ao CTN. vol. II. São Paulo: Atlas, 2004. p. 302).

Então, a pergunta que cabe aqui é: exigir do importador que preste declaração informando se há vínculo societário com exportador é potencialmente útil à aferição das obrigações tributárias principais aduaneiras? (BRASIL, 2013b).

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“uma obrigação acessória que, potencialmente, em nada se relacione a uma obrigação principal qualquer, que em nenhuma hipótese concreta possa ser útil à atividade da administração

tributária na busca do tributo”. (BRASIL, 2013b). Nada disso está escrito no CTN.

O que se pretende demonstrar como tudo o que foi exposto é que diversos precedentes do CARF extraem do princípio da legalidade um comando hermenêutico. Como se verá adiante, essa percepção é bastante heterodoxa.

Em sua aplicação comum, o princípio da legalidade é usado, por exemplo, como fundamento para que não se criem hipóteses de isenção ou de não incidência de tributos. No entanto, em muitos precedentes do CARF esse princípio é redimensionado como sendo o dever

dos órgãos administrativos aplicarem o texto da lei, cuja incidência seria acionada pela

ocorrência dos fatos nele descritos, não se devendo levar em conta fatos não escritos no texto –

como a “invasão de sem terras”, para fins de cobrança do ITR, ou o fato da conduta infracional

não prejudicar nada que seja “útil à atividade do Fisco na busca do tributo”.

Mais um argumento em favor de que essa versão hermenêutica do princípio da legalidade tem orientado a jurisprudência do CARF se encontra no que esse órgão costuma decidir acerca dos chamados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como se verá a seguir.

2.2 PRECEDENTES DO CARF SOBRE A RAZOABILIDADE E

PROPORCIONALIDADE

O CARF tem um expressivo número de precedentes em que rejeita a análise de argumentos dos litigantes que estejam baseados nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O fundamento apresentado pelo órgão é a proibição, feita pelo art. 26-A do Decreto nº 70.235/72, na redação dada pela Lei nº 11.941/2009, de que no processo administrativo fiscal se faça juízo de inconstitucionalidade da legislação tributária:

Art. 26-A. No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade. (BRASIL, 2009a).

(19)

Por exemplo, ao deparar-se com a alegação de um contribuinte, no sentido de que as

multas que lhe foram aplicadas violariam “os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e não-confisco”, o CARF, no Processo 10074.720662/2011-51, decidiu o seguinte:

É ocioso investigar, aqui, se a multa fixada nos arts. 84 da MP nº 2.15835 e 69 da Lei nº 10.833/03 viola os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e não-confisco, considerando que o art. 62 do RICARF veda a este colegiado o afastamento de norma ao fundamento de inconstitucionalidade. (BRASIL, 2013c).

Em diversos outros julgamentos, como, por exemplo, no Proc. n. 16682.720330/2012-75, afirma-se que a análise de argumentos baseados na razoabilidade e proporcionalidade não

seria possível porque “apenas o Poder Judiciário recebeu competência constitucional para

declarar a inconstitucionalidade de lei.” (BRASIL, 2013d). Esse entendimento é

constantemente reiterado, formando uma autêntica jurisprudência.

Em vários casos, essa orientação é complementada com a já vista percepção que diversos precedentes do CARF apresentam acerca do princípio da legalidade estrita. Isso ocorreu no Processo 15889.000374/2009-09, caso no qual o recorrente invocava a

razoabilidade. Decidiu-se que “há na administração pública um outro princípio pétreo que é o

da legalidade, cuja determinação ao agente público é moldar seus atos praticados à lei, conforme

ocorreu.” (BRASIL, 2013e).

Já houve também decisão em que a proibição do Decreto nº 70.235/72 (BRASIL, 1972) foi cotejada com a Súmula Vinculante n. 10 do STF (BRASIL, 2008a). Segundo essa súmula,

“reputa-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que - embora sem o explicitar - afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos

alegadamente extraídos da Constituição”. Com base nesse verbete, o CARF decidiu, no Processo 10166.007215/2005-35, que:

[...] a manifestação do Pretório Excelso delimita o que se entende por controle da constitucionalidade de lei ou ato normativo, fixando, por via indireta, os limites de atuação deste Colegiado, impedido de exercer tal controle em razão do art. 26-A do Decreto n° 70.235, de 1972, inserido pela Medida Provisória n° 449, de 3 de dezembro de 2008.

Nesse contexto, demonstrada a incidência da norma ao fato, não se poderia afastar a sua aplicação face ao critério da lex superior constitucional, máxime quando tal norma

se situa no plano dos princípios, sabidamente normas de eficácia contida. (BRASIL, 2008b).

(20)

julgados do CARF que, ao contrário das decisões anteriores, se fundamentam nos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade.

Por exemplo, no Processo 16561.720076/2011-09, fez-se juízo de proporcionalidade sobre uma determinada instrução normativa da Secretaria da Receita Federal. Segue a ementa do julgado:

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ Ano-calendário: 2006 PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA. IN SRF 243/02. MÉTODO PRL. LEGALIDADE. A proporcionalização determinada pelos incisos do § 11 do art. 12 da IN SRF 243/02 se constitui em uma interpretação que atende aos critérios da: a) razoabilidade, pois é mais conforme com o espírito de uma norma (art. 18, II, da Lei 9.430/96) que visa o controle de preços de transferência na importação, garantindo um tratamento isonômico de contribuintes que se encontrem na mesma situação; b) adequação, pois não cabia ao legislador pormenorizar, em texto de lei, o método de cálculo do preço parâmetro, bastando que desses contornos legais, os quais são observados pela IN 243/02; e c) necessidade, pois retificou a equivocada interpretação dada pela IN SRF 32/01, tornando efetivo o método PRL. TRIBUTAÇÃO REFLEXA. CSLL. Tratando-se da mesma situação fática e do mesmo conjunto probatório, a decisão prolatada no lançamento do IRPJ é aplicável, mutatis mutandis, ao lançamento da CSLL. (BRASIL, 2013f).

No Processo 10680.721276/2010-57, o CARF invocou a razoabilidade para determinar o alcance de norma alusiva à imunidade tributária:

[...] Diante da ausência de expressa determinação legal e da necessidade de o intérprete garantir o atingimento das finalidades da norma imunizadora e de sua respectiva regulação, a razoabilidade impõe que os instrumentos de acordo (entre as partes ou coletivo) que versem sobre pagamentos de Participação nos Lucros ou Resultados a empregados devem estar assinados e arquivados na entidade sindical até o último dia do semestre anterior ao encerramento do período a que se refiram os lucros ou resultados. (BRASIL, 2013g).

O que mudou nesses casos para que o CARF tenha se sentido livre para fazer juízos de razoabilidade e proporcionalidade? Não se apontou nenhum critério distintivo. Essa contradição é um sintoma de que existe alguma intuição sobre o fato de que as expressões razoabilidade e proporcionalidade estejam sendo usadas para nomear operações decisórias de conteúdo diferente.

2.3 DOUTRINA SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO

(21)

diretrizes interpretativas esparsas, que direta ou indiretamente têm relação com o princípio da legalidade estrita.

2.3.1 Regras hermenêuticas projetadas pelo princípio da legalidade estrita

Em instigante monografia sobre o assunto, classificada em 2º lugar no I Prêmio CARF de Monografias em Direito Tributário (2011), Eduardo Cavalca Andrade faz uma distinção entre juízo de legalidade, realizado pela Administração Pública quando aplica a lei no processo administrativo, e jurisdição, exercida pelos tribunais no processo judicial. Dentre as diferenças, destaca-se a seguinte:

[...] a construção da norma pela jurisdição, em homenagem à teoria neo-institucionalista, considera todo o ordenamento jurídico como um sistema sem ignorar ou deixar de resolver eventuais antinomias ou conflitos valorativos; o exame da legalidade, própria do processo administrativo, constrói sua norma considerando, tão-somente, a legislação que lhe dá suporte constitucional, pertencente a seu ramo, ligada ao Direito Público [...]. (ANDRADE, 2011, p. 119).

Com isso, o autor sustenta que o órgão administrativo, quando aplica o Direito, na verdade tem a obrigação de aplicar exclusivamente o específico subsistema jurídico para o qual

foi estruturado: “toda vez que a norma resultante do PAF, a pretexto de emitir juízo de

legalidade, valer-se de legislação que não orbita em seu sistema, esta decisão estará viciada e

poderá ser objeto de revisão pela própria Administração.” (ANDRADE, 2011, p. 124).

A razão pela qual a Administração deveria abdicar de uma interpretação sistemática da

ordem jurídica encontra-se no seguinte trecho da monografia: “[...] a Administração Pública,

ao aplicar a lei, não atua em seu favor ou do administrado, mas o faz em nome do interesse

público, e é premida pela observância da estrita legalidade.” (ANDRADE, 2011, p. 125).Quer

dizer, no momento da aplicação, o modo de “reconstrução da norma” – termo usado na

monografia – seria diferente, para a Administração, por conta do princípio da legalidade estrita,

que, embora não vincule a decisão judicial, vincularia a atividade administrativa.

Uma posição semelhante é defendida por Paulo de Barros Carvalho (2011), em trabalho especificamente dirigido ao CARF. Para esse autor, o princípio da legalidade teria os mesmos fins que o princípio da segurança jurídica, pois ofereceria aos cidadãos a certeza de que não serão compelidos senão por atos legislativos. A relação que existiria entre o princípio da legalidade e o da segurança jurídica é esclarecido pelo autor em seu texto nos seguintes termos:

“O princípio da legalidade compele o intérprete, como é o caso dos julgadores, a procurar frases

prescritivas, única e exclusivamente, entre as introduzidas no ordenamento positivo por via de

(22)

Paulo de Barros Carvalho prossegue sustentando que a solução dos litígios

administrativo-tributários deve se pautar pelo que ele chama de “princípio da legalidade

objetiva”, cujo conteúdo seria o seguinte:

O procedimento administrativo tributário deve seguir seus trâmites no âmbito daquilo que se conhece por realização do conteúdo objetivo das normas jurídicas, para preservar o império da legalidade e da justiça. Como é cometido à Administração

“aplicar a lei de ofício”, haverão de procurar, seus agentes, a forma mais concreta, adequada e verdadeira de realizar os comandos jurídicos. Esse princípio, que ilumina toda a marcha do procedimento, atina, de maneira plena, com a ratio essendi da figura,

posto que já examinamos, com alguma insistência até, que o procedimento existe para garantir ao Poder Público o aperfeiçoamento da intelecção da mensagem legislada, expedindo atos inteiramente consonantes com o sistema jurídico vigente. (CARVALHO, 2011, p. 12).

Nos parágrafos seguintes, o autor, apoiado sobretudo em Agustín Gordillo – prestigiado

administrativista argentino, cuja influente doutrina será examinada mais adiante –, busca

explicitar em que exatamente consistiria esse princípio da legalidade objetiva no contexto do procedimento administrativo tributário com os seguintes exemplos: a autoridade pode proceder de ofício; prevalece o princípio da verdade material, em oposição ao da verdade formal; menos rigor nos pressupostos de admissibilidade de recursos administrativos, para que se facilite o controle dos superiores hierárquicos sobre a legalidade; a desistência do recorrente não veda à Administração prosseguir na busca da legitimidade do ato. (CARVALHO, 2011, p. 13).

O que parece ser realmente original nas teses defendidas por esses autores não são tanto as diretrizes que informariam o chamado princípio da legalidade objetiva, pois várias delas também orientam a atividade judicial. O que há de novo é a extração de um parâmetro hermenêutico do princípio da legalidade. Para Paulo de Barros Carvalho, o princípio da legalidade imporia ao intérprete a busca por frases exclusivamente prescritivas na lei

(CARVALHO, 2011, p. 8). Para Eduardo Cavalca Andrade, “a Administração Pública, ao

aplicar a lei [...] é premida pela observância da estrita legalidade”.(ANDRADE, 2011, p. 125).

Concluem também esses autores que, porque existe um princípio da legalidade condicionando a intepretação do Direito no âmbito da Administração Pública, o processo administrativo não poderia ser comparado ao processo judicial.

2.3.2 Processo judicial x Processo administrativo

(23)

sentido restrito, é aquela que por razões históricas e políticas se referiria à solução de uma determinada controvérsia por uma autoridade imparcial e independente, com força de verdade legal. Sustenta Gordillo que esta acepção mais restrita deve limitar-se, precisamente porque exige uma autoridade decisória imparcial e independente, à figura do processo judicial. Estariam excluídos do seu âmbito os procedimentos legislativos e administrativos

(GORDILLO, 2003, p. 9). Não haveria que se falar, assim, em “jurisdição administrativa”.

(GORDILLO, 2003, p. 6).

Gordillo esclarece que o perigo de se ampliar a noção de processo seria o de que eventualmente se poderia entender que o direito de acesso à Justiça se tornaria desnecessário nos casos em que os direitos de um indivíduo fossem definitivamente resolvidos pela Administração, quando esta haja ouvido o interessado. Diz o autor que a defesa em juízo não

requer apenas que se ouça o litigante, mas “também que haja um julgador imparcial e

independente, qualidades estas que em nenhuma hipótese pode reunir a administração”1. (GORDILLO, 2003, p. 4, tradução nossa).

Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 10), como já visto, é um autor nacional que adere expressamente à doutrina de Gordillo, defendendo que a palavra processo, com todas as implicações a ela normalmente associadas, deve restringir-se a designar a discussão que se desdobra perante o Poder Judiciário. À discussão que se instrui no âmbito administrativo, diz, dever-se-ia chamar de procedimento, porque o processo, estritamente considerado, não se limita a ouvir as razões do litigante, mas lhe assegura um julgamento independente e imparcial, coisa que não se compatibilizaria com a atividade administrativa. (CARVALHO, 2011).

Aprofundando essa ideia, Gordillo, em capítulo intitulado “comparación del control

administrativo y judicial” (GORDILLO, 2003, p. 1), apresenta sua visão acerca as distinções que se deve fazer entre os dois sistemas. A revisão judicial, como já visto, é entendida pelo autor como aquela formada por tribunais imparciais e independentes, separados formalmente da Administração. (GORDILLO, 2003, p. XV-2). Gordillo admite que os agentes administrativos podem chegar a ter muita imparcialidade e algum grau de independência, mas nada que se compare à posição dos órgãos judiciais. A razão para isso seria o fato de que os juízes: têm estabilidade ou ao menos um razoável tempo de permanência no cargo; não podem ter a atuação suprimida, por exemplo, por meio de avocações de processo, remoções de ofício

etc.; têm prerrogativas específicas e maior status social. (GORDILLO, 2003, p. XV-6).

1 también que haya un juzgador imparcial e independiente, cualidades éstas que en ningún caso pude reunir la

(24)

Por outro lado, a Administração teria em sua atividade de controle mais amplitude que os tribunais judiciais, pois, ao contrário destes, poderia não apenas anular os atos administrativos, como também modifica-los, substituí-los, revogá-los, enfim, penetrar-lhe no mérito. (GORDILLO, 2003, p. XV-8). Além disso, a Administração não se limitaria à solução do caso, pois em uma boa parte de situações pode não apenas reprimir as condutas irregulares, como também identificar e corrigir as causas dessas irregularidades, operando no plano material. (GORDILLO, 2003, p. XV-10). Por exemplo, a Administração pode não apenas multar o excesso de velocidade, como também aumentar a sinalização de uma estrada considerada perigosa.

No mais, Gordillo fala sobre outros aspectos semelhantes a esses, isto é, relacionados a elementos informais que afetariam de forma diferente os controles judicial e administrativo, como por exemplo, os efeitos da opinião pública, a pressão da imprensa e o custo dos procedimentos. (GORDILLO, 2003, p. XV- 10-16).

Gordillo finaliza dizendo que, exposto assim o quadro, se pode chegar ao ponto crucial da questão: o déficit cultural, a falta de consciência cidadã e de estabilidade democrática fazem com que os meios institucionais de controle nem sempre respondam cabalmente ao fim para o

qual foram criados:“a discussão sobre se efetuar a tutela dos direitos por tribunais judiciais ou

órgãos administrativos ou por ambos, não é senão a ponta do iceberg da falta de controles que

funcionem eficazmente em todos os níveis da vida pública”2. (GORDILLO, 2003, p. XV-20,

tradução nossa).

A longa exposição de Gordillo pode ser resumida em uma ideia: a de que os tribunais administrativos não podem ser plenamente imparciais e independentes. Essa é uma ideia explícita. A ideia implícita é a de que esses órgãos não podem, assim como as partes que perante eles litigam também não podem, reivindicar possibilidades hermenêuticas equiparadas às dos órgãos judiciais.

2.3.3 Interpretação sistemática e juízos de ponderação

Na já citada monografia “Os limites do controle da legalidade no âmbito do PAF”,

defende-se que os chamados juízos de ponderação, técnica que procura organizar a aplicação dos princípios, seriam vedados no âmbito do processo administrativo fiscal. E isso, dentre outras razões, porque o princípio da legalidade estrita exigiria que os colegiados fiscais ficassem

2“La discusión sobre si efectuar la tutela de los derechos por tribunales judiciales o órganos administrativos, o por ambos a la vez, no es sino la punta del iceberg de la falta de controles que funcionen eficazmente a todo

(25)

adstritos ao subsistema tributário, não lhes sendo lícito afastar as normas desse sistema com base em normas de outros sistemas, como o direito civil, penal etc, concluindo o autor que seria

“vedada a importação de normas de outros subsistemas, haja vista a proibição deste tipo de

ponderação pela Administração”. (ANDRADE, 2011, p. 125-127).

Quanto aos juízos de ponderação, que o autor cita, sabe-se que em sentido doutrinário representam uma fórmula adotada, dentre outros, por Robert Alexy (2002, p. 180) para a

“aplicação dos princípios”, quando, “à vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis”. É o exemplo do direito à intimidade invocado contra o direito do Fisco exercer a fiscalização tributária.

É certo que Eduardo Cavalca (2011) está usando a palavra ponderação unicamente para dizer que o tribunal administrativo deve se ater à aplicação do subsistema jurídico para o qual foi criado. Esse é o único e indiscutível objetivo desse autor. Mas também é certo que a palavra

ponderação tem um sentido consagrado na doutrina constitucionalista e o seu uso não ocorre à

toa.

As questões aqui examinadas são complexas, sobretudo, porque nelas há uma série de

outras questões implícitas. Por exemplo, não se pode deixar de enfatizar a aversão – às vezes

explicitamente declarada, às vezes não – que a doutrina tem à realização de “juízos de

ponderação” no âmbito administrativo. Além da ponderação propriamente dita, essa doutrina

pretende afastar outras coisas da esfera decisória da Administração Pública.

O termo juízo de ponderação é frequentemente empregado como um sinônimo para as

ideias de razoabilidade e proporcionalidade. Steinmetz (2001, p. 143), por exemplo, questiona:

“ponderação de bens e princípio da proporcionalidade são coisas idênticas ou distintas?” Raquel Stumm (1995, p. 82), por sua vez, expressamente associa o mandado de ponderação ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ressaltando que, usando um ou outro termo, o que a doutrina preconiza é o balanceamento de possibilidades jurídicas.

E chegando ao ponto fundamental da questão, Fábio Oliveira (2003), ao falar sobre as

críticas que normalmente são dirigidas ao princípio da razoabilidade, diz que essas críticas “na

realidade não são voltadas isoladamente para o princípio da razoabilidade, mas igualmente para

a técnica da ponderação de bens e, no final, para a dogmática principialista como um todo.” (p.

254).

(26)

2.4 CONCLUSÕES SOBRE A VISÃO DA JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA E DA DOUTRINA

Como visto, os precedentes acima transcritos e os poucos trabalhos doutrinários que tratam da matéria compartilham várias visões sobre a interpretação do Direito no contencioso administrativo.

Prevalece nesse campo a premissa mais geral de que a Administração Pública teria mais limites que o Judiciário no plano da interpretação. E isso, acima de tudo, porque os tribunais administrativos jamais alcançariam a mesma posição de independência e imparcialidade que os órgãos judiciais. Por essa razão, há vozes expressivas restringindo o uso dos conceitos de

jurisdição e processo para designar a atividade do Poder Judiciário, ao passo que a atividade

dos tribunais administrativos ocorreria no contexto de meros procedimentos.

Esse ponto de vista será criticado mais adiante. Em primeiro lugar, se demonstrará que, à luz da teoria de Hans Kelsen sobre a natureza da interpretação jurídica, a atividade interpretativa e os desafios hermenêuticos vivenciados pelos tribunais judiciais e administrativos são essencialmente os mesmos. Também será questionada a ideia de que os órgãos da Administração não podem ser considerados imparciais e independentes.

Outro entendimento que se extrai dos precedentes e da doutrina é o de que o princípio da legalidade, que vincula a Administração Pública, também vincularia os tribunais administrativos no plano hermenêutico. Quanto aos termos em que isso deveria afetar concretamente a interpretação administrativa, não há muita clareza. Uma das vedações

expressamente admitidas – embora isso comporte polêmica – é a de que não se poderiam fazer

juízos sobre a constitucionalidade das leis no processo administrativo. Outra vedação, tida por diversos precedentes do CARF como uma decorrência lógica dessa primeira, seria a de que os

chamados “princípios” da razoabilidade e da proporcionalidade seriam normas constitucionais

e por isso não poderiam fundamentar as decisões proferidas no contencioso administrativo. Essa ótica também tem a aderência de alguma doutrina, não em termos tão explícitos, aparecendo mais sob a forma de uma genérica crítica a interpretações sistemáticas, constitucionalizadas e principiológicas.

(27)

3 IMPARCIALIDADE, INDEPENDÊNCIA E JUSTIÇA NOS JULGAMENTOS ADMINISTRATIVOS

Como se viu acima, a doutrina distingue os tribunais administrativos dos órgãos judiciais, sobretudo, porque a Administração Pública não poderia alcançar o mesmo grau de imparcialidade e independência que o Poder Judiciário.

As objeções a esse entendimento serão iniciadas a partir da ótica de Hans Kelsen sobre a interpretação do Direito. No modelo de Kelsen, a interpretação realizada pelos tribunais administrativos e judiciais tem a mesma natureza e se realiza da mesma forma no momento da aplicação do Direito. Se Kelsen estiver certo, segue-se a perturbadora constatação de que a imposição de restrições interpretativas aos tribunais da Administração lhes aumentará significativamente a propensão a eventuais contrassensos e absurdos. Afinal, precisarão resolver problemas hermenêuticos análogos aos do Judiciário sem dispor dos mesmos recursos interpretativos.

Após isso, será criticada a dúvida que se lança contra a imparcialidade e independência dos tribunais da Administração. Um dos motivos para essa dúvida possivelmente se baseia no fato de que esses órgãos são compostos por agentes administrativos, ao passo que os juízes, pelo menos para alguns autores, são agentes políticos; e também no fato de que a independência dos tribunais administrativos estaria comprometida porque de seus membros submetem-se a superiores hierárquicos.

Firmada assim a premissa de que a interpretação administrativa tem natureza análoga à da interpretação judicial, bem como a de que é não somente possível como também impositivo que os tribunais da Administração sejam imparciais e independentes, será feita a crítica final, dirigida à tese doutrinária de que a palavra processo somente caberia no contexto do Poder Judiciário.

3.1 A INTERPRETAÇÃO ADMINISTRATIVA COMO INTERPRETAÇÃO

AUTÊNTICA NA PERSPECTIVA DE HANS KELSEN

Em sua conhecida teoria da interpretação, Kelsen distingue a interpretação do Direito, feita pelo órgão do Estado que o aplica, da interpretação do Direito que não é feita por um órgão jurídico, mas, por exemplo, por uma pessoa privada, quando precisa compreender o sentido das normas para agir de modo a evitar uma sanção, ou pela ciência jurídica, quando descreve um

Direito positivo.Os primeiros, estabelecidos pelo Estado para aplicar o Direito a situações

(28)

pelos indivíduos comuns e pela ciência jurídica, são por ele chamados de intérpretes não-autênticos.

Diversos dos comentaristas de Kelsen abordam esse tema como se a expressão

“intérprete autêntico” fosse um sinônimo de órgão judicial. Eros Grau, por exemplo, diz que o

órgão “que está autorizado a ir além da interpretação tão-somente como produção das normas

jurídicas, pela dela extrair normas de decisão, é aquele que Kelsen chama de ‘intérprete

autêntico’: o juiz”. (GRAU, 2009, p. 28).

Realmente, Kelsen em diversas passagens de seu texto exemplifica a figura do intérprete autêntico com a dos órgãos judiciais. Mas isso é sempre feito a título de exemplo. De fato, a figura do juiz é a que mais facilmente se reconhece nas características do intérprete autêntico. No entanto, Kelsen (2006) nunca restringiu esse conceito à categoria dos juízes. Ao contrário, quando vai dar exemplo das situações que configuram interpretação autêntica, menciona tanto a sentença judicial como a resolução administrativa que aplica a lei a um caso concreto; fala também da interpretação da Constituição, que se faz no momento em que se legisla, criando leis e decretos; da interpretação de tratados internacionais, quando estes devem ser aplicados pelos governos ou por tribunais administrativos; da interpretação de normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios jurídicos. Em síntese, fala da interpretação de todas as normas jurídicas no momento em que devem ser aplicadas por um órgão estatal. (387).

Portanto, os tribunais administrativos também assumem a forma dos intérpretes autênticos pensados por Kelsen.

O que esse tipo de intérprete tem de especial é que ele aplica o direito a um caso concreto

e nessa operação, que é composta por um ato de vontade, produz o Direito– o que Eros Grau

chama de “norma de decisão”. Fabio Ulhôa Coelho (2001, p. 62) acrescenta que “há um momento cognoscitivo na interpretação autêntica, mas ela é essencialmente ato de manifestação

de vontade”. No mesmo sentido, sustenta Losano (1992, p. 116-117, tradução nossa) que, na compreensão das normas jurídicas, a ciência jurídica exerce uma função puramente

cognoscitiva, ao passo que “a interpretação do órgão que aplica o direito é criativa, enquanto

que a da ciência jurídica não o é”3. Diz Kelsen:

Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de

(29)

conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica aplicanda. (KELSEN, 2006, p. 394).

Esse ato de vontade, na teoria kelseana, resulta de um inevitável espaço que se abre, no momento em que se tem que decidir um caso concreto, e que obriga o intérprete a valer-se de outras categorias, não reconhecidas pelo Direito positivo, como normas de Moral e de Justiça, assim como juízos de valor, que costumeiramente se designam como bem comum, interesse público, etc. (KELSEN, 2006, p. 393). O intérprete é obrigado a valer-se dessas categorias metajurídicas por vários motivos: pela ambiguidade das palavras da norma, por razões de antinomia ou por eventuais desacordos entre o texto e a sua finalidade, situação reconhecida, já

no tempo de Kelsen, “de modo inteiramente geral pela jurisprudência tradicional.” (KELSEN,

2006, p. 390).

A importância da teoria kelseniana para este trabalho é a de esclarecer as características da interpretação autêntica, que os órgãos administrativos também fazem na atividade contenciosa. As colocações de Kelsen não têm caráter normativo. Buscam descrever a natureza da operação realizada por aqueles que têm a incumbência de aplicar o Direito a casos concretos. Para descrever essa atividade, Kelsen usa sua conhecida metáfora, por meio da qual descreve a aplicação do Direito como o preenchimento de uma moldura. Dentro dessa moldura, o intérprete autêntico pode licitamente se movimentar no momento da aplicação da norma, como ocorre na relação entre a Constituição e a lei, ou entre a lei e a sentença. Assim, a norma de escalão superior (moldura) regula o ato através do qual é produzida a norma de escala inferior

(aplicação). (KELSEN, 2006, p. 388).

No entanto essa determinação de conteúdo, que a moldura faz em relação ao ato de

aplicação, nunca é completa: “A norma do escalão superior não pode vincular em todas as

direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma

margem, ora maior ora menor, de livre apreciação”. (KELSEN, 2006, p. 388).

Esse espaço de indeterminação que há na norma superior, dentro da qual o intérprete autêntico pode se movimentar, segundo Kelsen, pode ser intencional ou não-intencional. É intencional quando está na intenção do próprio órgão que estabeleceu a norma a aplicar (normas gerais, por exemplo). E é não-intencional quando decorre simplesmente da pluralidade de significações de uma palavra ou de uma série de palavras que estão na norma. Isto ocorre tanto quando o sentido verbal da norma não é unívoco como quando duas normas pretendam valer

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a expressão verbal da norma e a vontade da autoridade legisladora, que se há de exprimir através

daquela expressão verbal, existe uma discrepância”. E finaliza Kelsen (2006, p. 389): “De todo modo, tem de aceitar-se como possível investiga-la [a vontade de quem editou a norma] a partir

de outras fontes que não a expressão verbal da própria norma”.

Com a metáfora da moldura, Kelsen desmistifica a ilusória pretensão de que se possa encontrar no Direito positivo algum método qualquer de interpretação que assegure a escolha de uma única solução correta para a aplicação do Direito. Por isso, se qualquer dos possíveis significados se enquadra na moldura, todos eles têm rigorosamente o mesmo valor, segundo Coelho (2001, p.62):

Não há absolutamente qualquer método [...] segundo o qual, das várias significações

verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como “correta” – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica.

[...]

A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros

do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de que se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). (KELSEN, 2006, p. 391-393).

Na realidade, o próprio sentido que a decisão irá tomar no caso concreto vai depender, além da norma que está no texto, também dos fatos. Isso é enfatizado, por exemplo, por Eros

Grau (2009, p. 35): “A norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos

colhidos no texto normativo (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso

ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser)”.

O que Kelsen demonstra é que não há como imaginar-se a aplicação das leis a casos concretos sem que se façam escolhas. Quando os órgãos administrativos optam pela interpretação gramatical do texto legal, trata-se de uma escolha, mas nem de longe a única escolha correta. Interpretar gramaticalmente é possível, mas não obrigatório.

Apresentada assim a teoria kelseniana, aplicam-se suas constatações a este trabalho: a própria natureza da interpretação autêntica demonstra o desacerto do pensamento que vê o princípio da legalidade estrita como um princípio hermenêutico para a Administração Pública.

A ideia de que o agente público só pode fazer “aquilo que a lei manda” permanece verdadeira.

(31)

Além de demonstrar a identidade ontológica entre a interpretação judicial e administrativa, a teoria de Kelsen desmonta a ilusão de que seja possível exigir de qualquer órgão jurídico, como os tribunais administrativos, que produzam soluções estritamente

vinculadas por uma suposta “legalidade objetiva”, cuja ideologia é a de que seja possível extrair de cada artigo da lei um sentido unívoco.

Aqueles que defendem o uso da estrita legalidade como um parâmetro hermenêutico especialmente dirigido à Administração Pública, o fazem com o confessado fim de que as decisões administrativas sejam mais previsíveis e afinadas com o ideal da segurança jurídica. (CARVALHO, 2011, p. 8). Essa preocupação parte da ideia, já vista, de que os órgãos da Administração nunca poderiam ostentar a mesma imparcialidade e independência que os órgãos judiciais. Ocorre que os tribunais administrativos não podem ser equiparados aos demais órgãos da Administração no que se refere à aplicação do Direito. E não somente podem, como devem, ser imparciais e independentes.

3.2 A ESPECIAL POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS NO QUADRO DA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Se por um lado a natureza da interpretação jurídica aproxima os tribunais administrativos dos judiciais, por outro, os membros desses órgãos da Administração se distanciam dos demais servidores públicos em alguns importantes aspectos. Em primeiro lugar, a conhecida distinção entre agentes políticos e administrativos é muito menos relevante, para fins hermenêuticos, do que o contexto em que a aplicação do Direito acontece: dentro ou fora de um processo. A instauração do processo reposiciona o tribunal administrativo e condiciona o seu julgamento quando confere àqueles que litigam uma garantia formal, alusiva à imparcialidade e independência dos juízes, e uma garantia material, relativa ao próprio conteúdo da decisão.

3.2.1 A irrelevância da distinção entre agentes políticos e administrativos

Uma das mais enfatizadas distinções entre os agentes públicos é a que fala em agentes administrativos e políticos. Ocorre que, para fins de delimitação da liberdade hermenêutica, essa distinção tem menor relevância. O que conta para esse fim é o fato do agente público estar aplicando a lei no contexto de um processo.

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titulares dos cargos que integram o arcabouço constitucional do Estado e que expressam a vontade do poder, como o Presidente da República, os governadores, prefeitos, seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários), os membros do Poder Legislativo (MELLO, 1998, p.

151-152)e, para alguns autores, também os juízes, promotores, defensores, ministros, e conselheiros

dos tribunais de contas. (MEIRELLES, 2008, p. 73).

Desse modelo o que se infere é que, se por um lado os agentes políticos detêm prerrogativas muito mais elevadas que as dos agentes administrativos, como foros privilegiados, imunidades e diversas outras, por outro lado, não é a natureza do cargo que lhes confere um estatuto hermenêutico diferente. Tanto isso é verdade que, quando praticam atos meramente administrativos, como a concessão de férias ou licenças a subalternos, os agentes políticos se equiparam aos demais servidores públicos.

Como é consenso na doutrina administrativa, os membros e órgãos dos Poderes da República exercem funções típicas e atípicas. Por exemplo, diz-se que o Poder Judiciário atipicamente edita atos administrativos quando organiza seu quadro funcional, por exemplo. No momento da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), muito se discutiu sobre os poderes desse órgão, que, aliás, formalmente integra o Poder Judiciário, é presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e composto por diversos magistrados. A conclusão foi a de que, se o CNJ é um órgão administrativo, seus poderes fiscalizatórios se restringiriam aos atos também administrativos dos tribunais e juízes, não podendo haver controle dos atos de conteúdo jurisdicional, cuja competência é exclusivamente deferida às instâncias recursais. (BERMUDES, 2005, p. 19-20).

Assim, o que assegura aos membros das instâncias julgadoras do processo administrativo uma relação diferente com a interpretação do Direito é precisamente o fato de serem encarregados de aplicar as normas jurídicas no contexto de um processo. Porque proferida no contexto de um processo, a decisão tomada no contencioso administrativo deve

ser protegida contra atos unilaterais – proferidos fora do contraditório – que pretendam

modificar-lhe a interpretação.

3.2.2 Imparcialidade e independência

Referências

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