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4 LEGALIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTEXTO

4.2 JUÍZOS DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTENCIOSO

4.2.3 O duplo enfoque da razoabilidade e da proporcionalidade

Apresentada a controvérsia que envolve o tema, passa-se expor a doutrina segundo a qual a razoabilidade e a proporcionalidade são ideias que têm uma dupla aplicação: servem como parâmetros para o controle de constitucionalidade das leis e também como diretrizes para a correta intepretação de todo o Direito.

Pode-se dizer que hoje o senso comum entende que a razoabilidade e a

proporcionalidade seriam princípios extraídos da Constituição19. Helenilson Cunha, por

exemplo, afirma o seguinte:

O conteúdo jurídico-material do princípio da proporcionalidade decorre inelutavelmente do reconhecimento da supremacia hierárquico-normativa da Constituição. A proporcionalidade, como princípio jurídico implícito do Estado de Direito, é uma garantia fundamental para a concretização ótima dos valores consagrados na Constituição. A proporcionalidade é princípio que concretiza o postulado segundo o qual o Direito não se esgota na lei (ato estatal que deve representar a síntese da vontade geral). (PONTES, 2000, p. 51).

De fato, o enquadramento constitucional dessa matéria é algo que encontra respaldo na história. Sua elaboração e sofisticação ocorreu em meio a intensos debates judiciais, promovidos no âmbito das Cortes Constitucionais mais relevantes deste tempo. Essa constatação se alcança pela pesquisa aos mais célebres e estudados precedentes judiciais

19 A doutrina costuma inserir a razoabilidade na historiografia do constitucionalismo. Luís Roberto Barroso, ao lado de vários outros, posiciona a sua origem na cláusula law of the land, inscrita na Magna Charta, de 1215 (BARROSO, 2001, p. 154-155).

encontrados na história da Suprema Corte Americana e do Tribunal Constitucional Federal

alemão no pós-guerra20.

Mas todas essas colocações referem-se à primeira aplicação desses dois princípios, isto é, àquela pela qual a Constituição determina que os atos do Estado sejam intrinsecamente razoáveis e proporcionais.

Ocorre que o enfoque da razoabilidade e da proporcionalidade que pretende formular regras para a atividade interpretativa não tem fundamento exclusivamente constitucional.

4.2.3.1 Razoabilidade e proporcionalidade como meios de controle de constitucionalidade

São incontáveis os exemplos de utilização da razoabilidade e da proporcionalidade como critérios para o controle da legitimidade constitucional das leis. O STF, por exemplo, na Ação Direta de Constitucionalidade n. 30, já decidiu que:

A extensão da inelegibilidade por oito anos após o cumprimento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionalidade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado. (BRASIL, 2012h). Nos tribunais ordinários essa é também uma praxe decisória comum, como fez o Tribunal de Justiça do Distrito Federal no Proc. n. 1254637020068070001: “a exigência de altura mínima para ingresso nos quadros da polícia militar do Distrito Federal, na área da saúde, se mostra contrária ao princípio da razoabilidade.” (BRASIL, 2011c).

Apesar disso, o uso da razoabilidade e da proporcionalidade não se limita a esse tipo de juízo. Existe outro enfoque pelo qual se percebem esses postulados, cuja utilização se torna possível a todos os órgãos julgadores do processo administrativo.

4.2.3.2 Razoabilidade e proporcionalidade como regras de interpretação

Esse segundo enfoque é menos estudado no âmbito da doutrina – pelo menos nem

sempre claramente – e praticamente não se menciona no âmbito da jurisprudência. No entanto,

é uma abordagem que é feita por expressivos autores e que é tocado, ainda que intuitivamente, em diversas das decisões dos tribunais.

20 Nesse sentido vale conferir: a) GUERRA FILHO, 2000, p. 75 e 76; b) PONTES, 2000, p. 44 e 45; c) CRETTON, 2001, p. 57.

4.2.3.2.1 O duplo enfoque na jurisprudência

As decisões judiciais sobre sanções tributárias, por exemplo, muito frequentemente se fundamentam no princípio da razoabilidade. Em boa parte das vezes isso é feito para se anular um ato estatal. Noutras, porém, o princípio é usado para se corrigir uma interpretação que se considera equivocada.

Como exemplo da primeira situação, tem-se o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região na Apelação Cível n. 200238000381884, em um caso decorrente da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), deferida aos taxistas. O contribuinte-taxista cumpriu todos os requisitos para receber o benefício, mas deixou de observar duas prescrições feitas em instrução normativa da Receita Federal: emplacar o carro em 30 dias e comunicar ao Fisco a eventual transferência da propriedade. Ao apreciar o caso, o tribunal decidiu da seguinte forma:

TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO DO IPI. TAXISTA. LEI 8.989/95. NÃO ATENDIMENTO DO PRAZO DE 30 DIAS PARA O EMPLACAMENTO DO BEM ADQUIRIDO COM ISENÇÃO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. MANUTENÇÃO DA ISENÇÃO CONCEDIDA. 1. O objetivo da isenção tributária é beneficiar atividades ou pessoas por algum motivo específico. No caso dos taxistas, objetiva-se exonerá-los do recolhimento do IPI na compra de veículos, em razão de que o automóvel é o seu instrumento de trabalho, o seu "ganha-pão". 2. Preenchidos todos os requisitos exigidos pela legislação vigente para a concessão da isenção do IPI, o simples fato de não se emplacar o veículo adquirido no prazo de 30 (trinta dias), ou ter transferido o veículo antigo sem comunicar a Receita Federal, não podem ter o condão de determinar a perda da isenção já concedida pelo Poder Público. 3. É necessário se invocar o principio da razoabilidade no presente caso, o qual é norteador de todas as práticas administrativas, a fim de se evitar danos demasiadamente graves ao contribuinte que obteve a isenção de IPI na aquisição de seu veículo, pois é necessário se preservar a proporcionalidade entre a falta cometida e a sanção que a administração pretendia lhe impor. 4. Apelação e remessa oficial a que se nega provimento. (BRASIL, 2012i).

Note-se que se considerou intrinsecamente exagerada a punição e que nem mesmo as prescrições de instrução normativa foram consideradas capazes de justificá-la. A rigor, essas prescrições infralegais foram afastadas.

Como exemplo de uso da razoabilidade para se fixar uma interpretação, pode-se citar o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região na Apelação Cível n. 00142043720114058100, em que se analisou sanção por inobservância da norma que, nas operações internacionais, obriga o contribuinte a apresentar a via original da fatura comercial, assinada pelo exportador. A discussão deu-se no caso concreto por um motivo só: a fatura

original estava assinada por meio de chancela e não de “próprio punho”, como queria o Fisco,

matéria na época: “Art. 553 – A declaração de importação será instruída com [...] II – a via original da fatura comercial, assinada pelo exportador”. No Judiciário, decidiu-se o seguinte:

Percebe-se claramente que o legislador, em nenhum momento, fez constar na referida norma a obrigatoriedade de ser a assinatura na fatura comercial feita de próprio punho, mas que sim, seja apenas assinada pelo exportador.

Tal fato, a meu ver, afasta qualquer penalidade aplicada contra a empresa, sobretudo em razão do princípio da razoabilidade.

Registre-se que a impetrante recolheu todos os tributos referentes à importação em si das mercadorias. (BRASIL, 2012j).

Como se vê, ao contrário do que ocorreu no primeiro exemplo, quando se afastaram normas sob o fundamento de que levá-las em conta atentaria contra a razoabilidade, no segundo exemplo a norma foi examinada e interpretada, extraindo-se dela mesma a aplicação mais razoável.

Poder-se-ia fazer uma objeção contra a utilidade de se distinguir essas aplicações da razoabilidade: os dois casos têm resultados idênticos, isto é, o afastamento de uma sanção tributária. Além disso, não há interpretação somente no segundo exemplo, mas também no primeiro, o do IPI, em que as normas infralegais são colocadas em confronto com preceitos legais e constitucionais, em um típico exercício de interpretação sistemática.

A resposta a essa objeção começa por se admitir que de fato, em ambos os exemplos, há atividade interpretativa. No entanto, há uma diferença: enquanto no exemplo do IPI duas normas (infralegais) foram implicitamente afastadas, no exemplo da importação nenhuma regra foi afastada. A decisão baseou-se no próprio texto. Mas em ambos os casos falou-se em

“razoabilidade”. No primeiro caso, fez-se um contraste entre normas infraconstitucionais e a

Constituição. No segundo, o texto legal não foi comparado com nenhum texto externo, mas examinado em seus próprios termos.

4.2.3.2.2 O duplo enfoque na doutrina

Para Celso Ribeiro Bastos (2010, p. 185), a proporcionalidade é "[...] um guia à atividade interpretativa." Eros Grau diz que são "[...] postulados normativos da interpretação/aplicação do Direito - um nome dado aos velhos desprezados cânones da interpretação[...]" (2003, p. 181). Também vem de Nagib Slaibi Filho a afirmação de que “a

teoria da razoabilidade pressupõe premissas (pré-emitidas) ou pressupostos (“pré-supostos”)

identificando-se com os preconceitos (ou valores preconcebidos) que norteiam a aplicação do Direito.” (2004, p. 127). E falando dos dois enfoques:

[...] o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição do excesso,

direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico. (MENDES; GONET BRANCO; COELHO, 2010, p. 181).

Na mesma linha, Eros Grau (2004, p. 27-30), em artigo intitulado Eqüidade,

razoabilidade e proporcionalidade, anota:

[...] a proporcionalidade não passa de um novo nome dado à eqüidade. Sua rejeição pelo direito moderno, porque incompatível com a calculabilidade e a segurança jurídica, era plenamente adequada à teoria da subsunção.

Sendo isso correto – ou seja, que a proporcionalidade não passa de um novo nome dado à eqüidade – essa verificação tornará mais fluente a compreensão de dois aspectos que passo a enunciar, objetivamente. A proporcionalidade não é um princípio, mas uma pauta, um critério de interpretação.

Como se vê, para essa doutrina, assim com o Estado deve produzir atos razoáveis, o intérprete também deve produzir interpretações razoáveis.

4.2.4 Razoabilidade, proporcionalidade, teleologia e o reconhecimento de normas