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4 LEGALIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTEXTO

4.2 JUÍZOS DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTENCIOSO

4.2.1 Razoabilidade e proporcionalidade são princípios?

A colocação da razoabilidade e da proporcionalidade na categoria dos princípios é frequente. Ocorre na doutrina, na jurisprudência e na própria legislação, como, por exemplo, a

Lei n. 9.784/99, que textualmente afirma em seu artigo 2º que “a Administração Pública

obedecerá, dentre outros, aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade […]”. (BRASIL,

1999).

No entanto, em âmbito doutrinário essa classificação sofre contestações expressivas, como se verá abaixo.

4.2.1.1 A doutrina que distingue as normas jurídicas em regras e princípios

A ideia de que os princípios não teriam normatividade hoje se encontra praticamente abandonada. O movimento doutrinário que fez essa constatação tem início bem marcado e reconhecido no ano 1941, em texto escrito por Vezio Crisafulli (1941), que inaugurou a construção teórica hoje sedimentada no sentido de que as normas jurídicas são o gênero do qual princípios e regras são espécies.

Sobre o tema, os textos de maior prestígio são atribuídos a Ronald Dworkin (2007), que diferencia essas normas em razão do critério com o qual devem ser aplicadas. O primeiro critério, presente nas regras, é o da aplicabilidade do tipo tudo-ou-nada (all-or-nothing-

fashion). O segundo, presente nos princípios, é a dimensão de peso (dimension of weight). (p.

39-40). Exemplificando, a norma que determina que as autarquias serão criadas por lei específica é uma regra. E isso porque, na análise de um caso concreto em que se pretenda criar uma autarquia, não se poderá afastar a exigência de lei específica, ou seja, a regra deve ser aplicada quando se verificar o enquadramento dos fatos no suporte fático hipotético: se é de autarquia que se cuida, deve haver lei específica. Já a norma que estabelece, por exemplo, o direito à liberdade de imprensa é um princípio. E isso porque tal norma poderá eventualmente ser desconsiderada, a depender do peso que tenha no caso concreto. Seria o caso em que a liberdade de expressão cede espaço ao direito à privacidade.

Assim, para Dworkin, quando os princípios colidem com outros princípios, o julgador deve levar em conta a força relativa de cada um no caso concreto (juízo de ponderação), ao passo que o conflito entre regras deve ser solucionado por critérios de antinomia, pois não se pode afirmar que no sistema jurídico uma regra é mais importante ou tem maior peso no caso concreto do que outra. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida. (DWORKIN, 2007, p. 43).

Para Dworkin, o modelo adequado para a aplicação das regras é a subsunção, isto é, o enquadramento dos fatos na descrição hipotética da norma. As “exceções à regra” devem ser necessariamente arroladas na própria regra. Diz Dworkin (2002, p. 25):

[...] a regra pode ter exceções, mas se as tiver, será impreciso e incompleto simplesmente enunciar a regra, sem enumerar as exceções. Pelo menos em teoria, todas as exceções podem ser arroladas e quanto mais o forem, mais completo será o enunciado da regra.

Gustavo Zagrebelski (1995, p. 125) apresentou visão semelhante, sustentando que, se ocorrem os fatos previstos em uma regra, deve-se aceitar a resposta que esta proporciona, sem escapatória ou mediação possível, coisa que não ocorreria com os princípios, pelo fato destes ostentarem uma dimensão diferente: a dimensão do peso e da importância.

Robert Alexy (1997b) também se alinha a esses autores, sustentando que os princípios são mandados de otimização, ordenando que algo seja realizado na maior medida possível, conforme as possibilidades jurídicas e fáticas, ou seja, podendo ser satisfeitos em maior ou menor grau. As regras, por sua vez, somente podem ser cumpridas ou descumpridas, de modo que, se a regra é válida, ela deve ser cumprida exatamente no que estabelece, nem mais, nem menos (p. 208). Alexy desenvolve a proposta de Dworkin, consignando que a distinção entre princípios e regras se verifica na diferença: a) quanto ao modo de se resolver a colisão, já que os princípios colidentes apenas tem sua realização normativa limitada reciprocamente, ao passo que, nas regras, a colisão se soluciona pela declaração de invalidade de uma delas ou com o estabelecimento de uma exceção que exclua a antinomia; b) quanto à obrigação que estabelecem, na medida em que as regras válidas instituem obrigações absolutas, pois não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima-facie, pois podem ser derrogadas por outros princípios colidentes.

Canotilho, fundamentalmente, adere à proposta de Dworkin, Zagrebelski e Alexy, enfatizando que “os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se”. E que “os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras

colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).”(CANOTILHO, 2008, p. 1146-1147).

Embora possuam divergências pontuais, esses autores, em termos gerais, representam um pensamento que têm predominado, especialmente nos discursos das instâncias decisórias do Estado, como o Judiciário e os órgãos administrativos. No entanto, as bases dessa doutrina não são imunes a críticas instigantes, cujas linhas fundamentais, no que interessa a este trabalho, serão apresentadas abaixo.

4.2.1.2 Críticas à doutrina que distingue regras e princípios

A separação entre regras e princípios não é pacificamente aceita, pelo menos não em termos tão precisos. Embora seja geralmente admitida a utilidade dessa distinção, também existe uma expressiva corrente que a mitiga e relativiza vários de seus termos. É possível inferir dessas críticas um sentido comum, que rejeita a ideia de que a compreensão das regras seja mais simples que a dos princípios, quando, na verdade, também as regras podem exigir uma complexa atividade interpretativa.

Dentre esses questionamentos, destaca-se aquele que se dirige contra o critério do “tudo- ou-nada” para a aplicação das regras. Genaro Carrió, baseado na exposição de Hart, sustenta que em várias situações as especificidades do caso concreto podem relativizar o peso, não apenas dos princípios, mas também das regras:

Não é certo que as regras são sempre aplicáveis à maneira “tudo-ou-nada”. Tampouco é certo que as regras permitam, ao menos em teoria, enumerar de antemão todas as suas exceções. Para tanto, ter-se-ia que imaginar de antemão todas as circunstâncias possíveis de aplicação, o que, obviamente, é impossível. Por outro lado, os conflitos entre regras nem sempre se resolvem negando a validade de uma delas; muitas vezes é imprescindível fundamentar a decisão – que pode inclusive assumir a forma de um compromisso – em algo muito semelhante ao “peso” relativo de uma e outra pauta em que o contexto particular do caso que dá lugar ao conflito18. (CARRIÓ, p. 226,

tradução nossa).

Humberto Ávila (2001) também trata do tema. Sustenta que esse tudo-ou-nada só ocorre no momento da aplicação, quando “todas as questões relacionadas à validade, ao sentido e à

subsunção final dos fatos já estiverem superadas.” (p. 14). Quer dizer, para chegar-se ao estágio

18 No es cierto que las reglas son siempre aplicables a la manera “todo-o-nada”. Tampoco es cierto que las reglas

permiten, ao menos en teoria, enumerar de antemano todas sus excepciones. Para ello habría que imaginar de antemano todas las circunstancias possibles de aplicación, lo que, obviamente, es impossible. Por otra parte, los conflictos entre reglas no siempre se resuelven negando la validez de una de ellas; muchas veces es menester fundar la decisión – que pude incluso assumir la forma de un compromiso – en algo muy semejante al “peso” relativo de una y otra pauta en el contexto particular del caso que da lugar al conflicto. (CARRIÓ, p. 226).

de saber se a regra se aplica ou não ao caso concreto, deve haver, mesmo no caso das regras, um prévio e eventualmente complexo exercício hermenêutico.

Outro aspecto, realçado por Humberto Ávila, é o de que, embora seja válida a distinção entre regras e princípios, é imprescindível que em ambas o aplicador atente para a “finalidade”

ínsita a essas normas. Sobre os princípios, Ávila diz que “são normas imediatamente

finalísticas” e que devem ser aplicadas mediante “uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua

promoção.” (ÁVILA, 2004, p. 70). No tocante às regras, afirma que são normas em que se deve

observar a correspondência entre sua descrição abstrata e os fatos concretos, sendo a aplicação desses tipos de normas “sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes.” (ÁVILA, 2004, p. 70).

A propósito da “dimensão do peso”, que Dworkin diz regular a aplicação dos princípios em cada caso concreto, Ávila sustenta que esse peso não é extraído dos princípios abstratamente considerados. O peso deve ser dado às finalidades desses princípios, à luz do caso concreto:

Além disso, se procede a afirmação segundo a qual tanto as regras quanto os princípios não regulam a sua própria aplicação, como acertadamente sustenta ALEXY, então — complementa-se — não são os princípios que possuem uma “dimensão de peso”, mas às razões e aos fins aos quais eles fazem referência é que deve ser atribuída uma dimensão de importância. A maioria dos princípios não dizem nada sobre o peso das razões, mas é a decisão que lhes atribui um peso em função das circunstâncias do caso concreto. A citada “dimensão de peso” (“dimension of weight”) não é, então, atributo abstrato dos princípios, mas qualidade das razões e dos fins a que eles fazem referência, cuja importância concreta é atribuída pelo aplicador. Vale dizer: a dimensão de peso não é um atributo empírico dos princípios, justificador de uma diferença lógica relativamente às regras, mas resultado de juízo valorativo do aplicador. (ÁVILA, 2001, p. 14-15).

Para Humberto Ávila, portanto, os princípios são “normas que estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão qual o comportamento devido”, ao passo que “as regras podem ser definidas como normas que estabelecem indiretamente fins, para cuja concretização estabelecem com maior exatidão qual o comportamento devido”. (ÁVILA, 2001, p. 20-21).

Assim, os princípios indicam os fins a serem alcançados, sem descreverem detalhadamente os meios, enquanto que as regras detalhadamente indicam qual a conduta a ser seguida, a fim de se alcançarem os fins que nessas mesmas regras está implícito. É por isso que se diz que somente quando aplicado a um caso concreto é que se compreende um princípio. Afinal, a interpretação dos princípios não determina prima facie a conduta a ser seguida. O princípio indica tão-somente o fim e exige condutas adequadas à sua consecução. (ÁVILA, 2001, p. 15-16).

Demonstradas esses reparos feitos por parte da doutrina, passa-se a expor a corrente que não visualiza a razoabilidade e a proporcionalidade como princípios, precisamente porque não regulam a conduta dos indivíduos, mas a própria interpretação do Direito.

4.2.1.3 A doutrina que descaracteriza a razoabilidade e proporcionalidade como princípios

Guastini anota que, quando se consultam os autores que tratam do tema, o termo princípio pode referir-se a vários fenômenos, e não somente a um só (1998, p. 276). Como critério delimitador, Humberto Ávila (2001, p. 22-23) defende que na qualificação de uma norma como princípio não basta atentar para a denominação dada pelo legislador, devendo-se

analisar a sua estrutura. Para ele, estruturalmente considerados, os princípios são “normas

imediatamente finalísticas e mediatamente de conduta”.

Essa perspectiva leva Humberto Ávila a sustentar que o dever de proporcionalidade não é um princípio porque tanto regras como princípios regulam a conduta dos indivíduos e esse não é o caso da proporcionalidade. Eros Grau se alinha a esse pensamento e faz questão de consignar que também para Alexy a proporcionalidade não é um princípio:

A proporcionalidade não consubstancia princípio, dado que – como salienta Alexy [1986: 100, nota 84] – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito não são ponderadas em relação a algo diferente; não se passa que algumas vezes tenham precedência, outras não; o que se pergunta é se essas exigências são satisfeitas ou não e se sua não-satisfação traz como consequência a ilegalidade; daí por que essas três exigências, nas quais se desdobra a proporcionalidade em sentido amplo, são classificadas como regras. (GRAU, 2009, p. 189).

Eros Grau sustenta, então, usando a terminologia de Humberto Ávila, que proporcionalidade e razoabilidade são na verdade postulados normativos da interpretação e aplicação do Direito. Por isso, “deveriam prestar-se unicamente a informar a formulação da norma de decisão, no momento da aplicação do direito.” (GRAU, 2009, p. 191-192).

Humberto Ávila diz que o dever de proporcionalidade é um “postulado normativo de

aplicação”. É um “postulado” no sentido kantiano, significando uma condição de possibilidade

do conhecimento de determinado objeto. Por exemplo, “o conhecimento da norma pressupõe o

do sistema e o entendimento do sistema só é possível com a compreensão das suas normas.”

(ÁVILA, 2001, p. 18). Esse postulado é um postulado “aplicativo” porque “impõe uma

condição formal ou estrutural de conhecimento concreto (aplicação) de outras normas”. E é um

postulado “normativo” porque a proporcionalidade não é uma condição sem a qual a aplicação

do Direito seria impossível, mas uma condição normativa, isto é, instituída pelo próprio Direito para a sua devida aplicação. (ÁVILA, 2001, p. 22-25).

Por isso, o dever de proporcionalidade – e para Eros Grau também o de razoabilidade – não é um princípio, pois não estabelece comandos para a conduta humana. Não atribui pesos ou fins, mas apenas uma estrutura formal de aplicação das normas jurídicas (o meio escolhido deve ser adequado, necessário e não-excessivo). Na ótica desses autores, para que funcionem, a razoabilidade e a proporcionalidade dependem sempre da complementação de outras normas.