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4 LEGALIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTEXTO

4.1 CRÍTICA AO USO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE COMO METANORMA

4.1.5 O redimensionamento do princípio da legalidade

A ligação que se tenta fazer entre o princípio da legalidade e a contenção de interpretações potencialmente arbitrárias no processo administrativo conduz a interpretações objetivas (literais), como sustenta Paulo de Barros Carvalho, e limitadas ao subsistema que o órgão tem o dever de aplicar (não-sistemáticas), como preconiza Eduardo Cavalca.

Ocorre que a mais recente doutrina administrativista tem proposto o contrário. Em inúmeros trabalhos, tem-se sustentado que o princípio da legalidade seja compreendido de forma mais ampla, tendo em vista que os agentes públicos na verdade não são vinculados apenas pela lei em sentido estrito, mas por toda a ordem jurídica.

Germana de Oliveira Moraes (1999, p. 25), por exemplo, sustenta que a Administração deve obediência na realidade ao “ordenamento jurídico como um todo sistêmico, ou seja, a juridicidade”. Essa mesma posição já foi defendida doutrinariamente por Carmen Lúcia Antunes Rocha, para quem “o Estado Democrático de Direito material, com o conteúdo do princípio inicialmente apelidado de legalidade administrativa e, agora, mais propriamente rotulado de juridicidade administrativa, adquiriu elementos novos”.(ROCHA, 2003, p. 79).

A própria jurisprudência administrativa já produziu precedentes em que se acolhe essa visão. Note-se, por exemplo a seguinte decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), proferida no Processo 08000.022579/1997-05:

A lei 8.884/94 claramente pertence ao sistema de normas positivas brasileiras e subordina-se aos mandamentos e princípios de ordem constitucional.

[...]

O trivial corolário desta constatação é que compete ao CADE não apenas aplicar a lei 8.884/94, como também, e necessariamente, fazê-lo de maneira harmônica com o sistema jurídico ao qual pertence e em respeito à ordem e aos princípios constitucionais. [...] A conclusão chega a ser trivial em face dos inevitáveis conflitos

de normas e interpretação que podem decorrer da aplicação da lei. Assim tem reconhecido a própria jurisprudência do CADE. (BRASIL, 2002).

Alguns autores chegam a dizer expressamente quais seriam as consequências práticas do acolhimento dessa doutrina. Gustavo Binenbojm (2006, p. 139), por exemplo, diz que a atividade administrativa pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou

para além da lei, ou, ainda, “legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com

fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais”.

Juarez Freitas, por seu turno, afirma que a nova legalidade incluiria também a razoabilidade:

Assim, a subordinação da Administração Pública não é apenas à lei. Deve haver o respeito à legalidade sim, mas encartada no plexo de características e ponderações que a qualifiquem como razoável. Não significa dizer que se possa alternativamente obedecer à lei ou ao Direito. Não. A legalidade devidamente adjetivada razoável requer a observância cumulativa dos princípios em sintonia com a teleologia constitucional. A submissão razoável apresenta-se menos como submissão do que como respeito. Não é servidão, mas acatamento pleno e concomitante à lei e, sobretudo, ao Direito. Assim, desfruta o princípio da legalidade de autonomia relativa, assertiva que vale para os princípios em geral. (FREITAS, 1999, p. 60).

A visão de Juarez Freitas acrescenta algo. Não seriam apenas as demais normas do ordenamento jurídico que devem ser levadas em conta no momento da interpretação administrativa, mas também as normas que nesse ordenamento estão implícitas.

Neste ponto, não se pode deixar de fazer uma observação. Embora não haja muitos questionamentos às propostas desses autores, sua aplicação demanda um esclarecimento: a legalidade em sentido amplo poderá ser usada pela Administração, no momento em que praticar seus atos, ou deve ser entendida como um recurso argumentativo exclusivamente destinado ao controle judicial?

As linhas gerais dessa doutrina costumam ser tranquilamente aplicadas na atividade de controle exercida pelo Poder Judiciário. Afinal, antes mesmo dessa construção teórica, o Judiciário já avaliava os atos administrativos sob o ângulo da constitucionalidade e da razoabilidade, sendo comuns os precedentes judiciais que orientam a Administração a “seguir os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja

alcançar.” (BRASIL, 2006c).

Ocorre que o mesmo Judiciário tem julgados em outro sentido, em que se afirmam

coisas do tipo: “a atuação da Administração Pública é cingida ao princípio da legalidade estrita,

devendo obediência aos preceitos legais, sendo-lhe defeso proceder interpretação extensiva ou restritiva, onde a lei assim não o determinar”. (BRASIL, 2010c). Também o CARF, como visto,

tem reiterados pronunciamentos no sentido de que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade “são dirigidos ao legislador, e não ao aplicador da lei.” (BRASIL, 2012e).

Outra jurisprudência que chama a atenção é aquela que tem dúvidas em qualificar o ato administrativo como fruto de uma interpretação razoável da lei ou como improbidade. Note-se nesse sentido o caso abaixo, em que o STJ, no Recurso Especial 997564 reverteu uma condenação imposta a um agente público:

[...] observa-se que, na hipótese, a aplicação da Lei de Improbidade encontra-se dissociada dos necessários elementos de concreção, na medida em que sobejam dos autos pareceres do Tribunal de Contas Municipal, bem como diversos pronunciamentos técnicos provenientes de vários órgãos especializados da administração, todos convergentes quanto à possibilidade de assinatura dos termos de aditamento e baseados em interpretação razoável de dispositivos legais. (BRASIL, 2010d).

Esse quadro demonstra que as ilegalidades comportam pelo menos dois tipos de consequências: a anulação do ato e a responsabilização pessoal do agente. E, muitas vezes, a razoabilidade que confere legitimidade ao ato, na visão do Judiciário, é o que lhe confere ilegalidade na visão do Ministério Público e dos tribunais de contas.

É por essa razão que Germana de Oliveira Moraes enfatiza que essa atribuição, aos princípios constitucionais, de “hegemonia normativa e axiológica [...] demanda, por um lado, uma redefinição da discricionariedade e por outro lado, conduz a uma redelimitação dos confins de controle jurisdicional da Administração Pública”. (MORAES, 1999, p. 24).

Como se vê, a doutrina que redimensiona o conceito de legalidade não tem enfrentado maiores objeções. No entanto, não esclarece se sua proposta também alcança a Administração Pública, no momento em que produz o ato administrativo, ou se serve apenas como parâmetro para o controle judicial.

Se essas propostas doutrinárias forem compreendidas como uma visão encomendada exclusivamente para o Poder Judiciário, então, coexistirão no sistema duas visões realmente inconciliáveis sobre o que é legalidade. O poder judicial de revisão cobrará afinamento entre os atos administrativos e a Constituição, inclusive entre aqueles e a razoabilidade, mas a Administração não poderá compor seus atos com a principiologia, a razoabilidade e as finalidades que perpassam toda ordem jurídica. Do ponto de vista prático, deve-se lembrar que os tribunais administrativos existem, também, para reduzir a sobrecarga do Judiciário. E, se as divergências forem frequentes, os litigantes fatalmente ingressarão nas duas vias, administrativa e judicial, quando não ignorarem por completo a primeira.

De todo modo, o que essa nova doutrina demonstra é que a observância da legalidade deve ser compreendida como a observância da ordem jurídica em sua totalidade. E, como afirmou Juarez Freitas (1999, p.60) no texto já citado, também como a observância da razoabilidade pela Administração. Pode-se acrescentar aí, porque inerente à ideia de razoabilidade, que a totalidade da ordem jurídica também inclui as normas que nela estão implícitas.