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4 LEGALIDADE, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NO CONTEXTO

4.1 CRÍTICA AO USO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE COMO METANORMA

4.1.1 O princípio da legalidade como norma de conduta

O princípio da legalidade não foi elaborado como um princípio hermenêutico. Não foi pensado como uma norma para se descobrir o sentido da lei. O que a clássica formulação desse princípio realmente enfatiza é que sua destinação é a conduta do agente administrativo. Celso

Antônio Bandeira de Mello (1994, p. 48), por exemplo, diz que “o princípio da legalidade é o

da completa submissão da Administração às leis. Este deve tão-somente obedecê-las, cumpri-

las, pô-las em prática”. Na mesma linha, Diógens Gasparini (2005, p. 7-8): “qualquer ação

estatal sem o correspondente calço legal, ou que exceda o âmbito demarcado pela lei, é injurídica e se expõe a anulação.”. E Di Pietro (2002, p. 61), ressaltando que o princípio da

legalidade “ao mesmo tempo que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa”.

Portanto, o princípio da legalidade foi elaborado para dizer que os atos administrativos não podem ser praticados com outro fundamento que não a lei, isto é, trata-se, estruturalmente, de uma norma de conduta.

No que se refere à estrutura das normas, é bastante conhecida a sua classificação em

primárias, que regulam o comportamento, e secundárias11, que oferecem critérios para a

determinação de quais são as normas válidas para cada caso. Segundo Herbert Hart, nos sistemas modernos não deve haver apenas regras que imponham deveres e limites à conduta individual, mas também regras de reconhecimento, que determinam modos de produção ou revogação das normas, regras de alteração das normas e também regras de julgamento, para regularem a aplicação da lei no caso concreto.(HART, 1986, p.103-106). Nesse prisma, o princípio da legalidade é uma norma primária, isto é, que regula o comportamento dos agentes públicos, e não regra de julgamento, para a aplicação da lei no caso concreto. As normas destinadas à fundamentação e aplicação de outras normas também são chamadas de normas metodológicas. (ALEXY, 1997a, p. 178).

De toda forma, o fato é que, no CARF, em diversos precedentes se invoca o princípio da legalidade como se fosse uma diretriz para se encontrar o direito que deve incidir no caso. Trata-se de uma heterodoxa aplicação desse princípio. Uma aplicação hermenêutica. Qual a razão para isso?

Um precedente emblemático, já citado e que esclarece esse ponto, é o seguinte:

Sobre a defendida ofensa ao princípio da proporcionalidade, da razoabilidade, dentre outros, estes são dirigidos ao legislador, e não ao aplicador da lei, o qual, diante da norma existente no mundo jurídico, deverá aplica-la obrigatoriamente por força do art. 116, inciso III, da Lei 8.112/90 [...] (BRASIL, 2012d).

Esse julgado traz a chave para se entender a relação que os órgãos administrativos fazem entre seus limites na interpretação do Direito e o princípio da legalidade: a ideia de que esse princípio existe precisamente para refrear o arbítrio e assegurar, em última instância, a separação dos poderes.

Por essa perspectiva, o CARF, como ente integrante da Administração Pública, também deveria submeter suas decisões, como atos administrativos que são, ao princípio da legalidade, a fim de não usurpar funções legislativas ou judiciais, respeitando a harmonia entre os Poderes.

11 Usando essa distinção: HART, 1986. p. 91; BOBBIO, 1997. p. 45; CARVALHO, 2000. p. 136; BARROSO,

Ocorre que o CARF e a doutrina não precisariam fazer essa construção teórica – que, aliás, está aqui sendo inferida, pois não é clara. Nos tratados sobre interpretação do Direito já se formulou teoria específica, destinada a conter o arbítrio hermenêutico: a chamada doutrina do respeito à vontade do legislador. Para essa doutrina, uma das formas de se preservar essa vontade é adoção da interpretação literal nos julgamentos.

4.1.2 A doutrina da vontade do legislador e a interpretação literal

A expressão “vontade do legislador” foi historicamente construída para que o sentido

das leis não fosse corroído pelo corpo tecnocrático que trabalha diariamente com a sua aplicação. Trata-se de um temor confessado nas mais antigas e influentes elaborações doutrinárias sobre hermenêutica. Por exemplo, falando da situação em que “existe uma

disposição legislativa clara e precisa aplicável ao caso que é submetido ao juiz”12, Baudry

Lacantinerie (1888, p. 44, tradução nossa), referência na doutrina francesa do final do século XIX, dizia o seguinte:

O juiz é instituído para julgar conforme a lei e não para julgar a lei. Stulta sapientia quae vult lege sapientior esse, diria Argentré na sua franqueza bretã. A faculdade que o juiz teria, de não aplicar a lei quando considera-la injusta, seria a fonte dos mais graves abusos. De fato, não haveria mais a lei, ela seria substituída pela consciência do juiz. Os particulares não saberiam mais com o que contar; pois cada um tem a sua maneira de entender a justiça, e a experiência demonstrou que, na prática, ela frequentemente inspira as decisões mais contraditórias. (LACANTINERIE, 1888, p. 44-45, tradução nossa) 13.

O medo era o de que a lei fosse subvertida por interpretações particulares, resultantes da subjetividade de intérpretes mais exóticos, não enquadrados na regularidade tão desejada pelos órgãos mais elevados do poder. E como evitar que essas interpretações particulares aconteçam? No início do século passado, Fiore Pasquale, um nome clássico da doutrina italiana, justificou sua busca pelos limites da interpretação da seguinte forma:

[...] os juízes, com o pretexto de respeitar a vontade do legislador, e de deduzi-la do espírito da lei, chegam a violar a lei mesma, alterando-lhe a letra. A vontade do legislador resulta do texto, e, quando se pode chegar a eliminar toda dúvida, não se

12 Tradução livre de: Il existe une disposition législative Claire et precise applicable au cas qui est soumis au juge.

(LACANTINERIE, 1888, p. 44).

13 Tradução livre de: Le juge est institué pour juger selon la loi et non pour juger la loi. Stulta sapientia quae vult

lege sapientior esse, dissit d´Argentré dans as frauchise toule bretonne. La faculté, qui appartiendrait au juge, de ne pas appliquer la loi quand il la trouve injuste, serait la source des plus graves abus. A vrai direi l n´y aurait plus de loi, ele serait remplacée per la conscience du juge. Les particuliers ne sauraient plus sur quoi ils peuvent compter; car chacun a as maière d´entendre l´équité, et l´expérience a démontré qu´elle inspire souvent dans la pratique les décisions les plus contradictoires. (LACANTINERIE, 1888, p. 44-45).

pode admitir que aquilo que ele dispôs não seja a expressão do seu pensamento.(PASQUALE, 1915-1925, p. 568, tradução nossa).14

A mesma ideia está contida nas “Disposições sobre a lei em geral”, que o Código Civil Italiano de 1942, editado pelo Régio Decreto de 16 de março de 1942. A primeira parte do artigo 12 das disposições estabelece a regra de que, na aplicação da lei, não se lhe pode atribuir

outro sentido que não aquele derivado do significado próprio das palavras.15

Esse é o critério hermenêutico da interpretação literal: como o fim de se preservar a vontade do legislador, o intérprete deve ater-se à letra da lei, deve atribuir ao texto normativo o seu significado literal.

Hoje, a defesa da interpretação literal é feita nos precedentes do CARF e na doutrina acima examinada, mas de uma forma muito menos clara, invocando-se como fundamentos princípios administrativos que tiveram outras origens, fazendo-se associações entre categorias jurídicas que tratam de assuntos diferentes. No plano da jurisprudência administrativa, a defesa da literalidade, que não é sempre explícita, ocorre nos julgados em que se nega relevância jurídica a fatos que não estão descritos no texto da lei. Todo esse esforço tem inúmeros pontos de contato com a fórmula da interpretação literal como meio de preservação da vontade do legislador.

Por outro lado, não se pode dizer que o CARF, nos precedentes que foram examinados, conscientemente optou pela interpretação literal como sendo a melhor para a resolução do caso. Na verdade, o órgão entendeu que não havia alternativa. Vejam-se alguns dos fundamentos apresentados para justificar a aplicação literal do texto em casos concretos: a) “pelo simples fato de ter sido constatado o desapego às normas previdenciárias que instituem as obrigações acessórias, o Auditor Fiscal está obrigado, por força do art. 142 do CTN, a impor a respectiva penalidade”; e b) “sobre a defendida ofensa ao princípio da proporcionalidade, da razoabilidade, dentre outros, estes são dirigidos ao legislador, e não ao aplicador da lei”. O CARF, como se vê nesses casos, sentiu-se preso à lei (à literalidade da lei), sem possibilidade de decidir em sentido contrário.

14 Tradução livre de: [...] i magistrati col pretesto di volere rispettare la volontá del legislatore, e di dedurre questa

dallo spirito della lege arrivino a violare la legge stessa alterando la lettera. La volontá del legislatore risulta dal texto, e quando si puó arrivare e ad eliminare ogni dubbio non si puó ammettere, che quello che esso ha disposto non sia l´espressione del suo pensiero. (PASQUALE, 1915-1925, p. 568)

15 “Nell’applicare la legge non si può ad essa attribuire altro senso che quello fato palese dal significato proprio

4.1.3 A crítica dos juristas à interpretação literal

A ideia segundo a obrigação do aplicador da lei é concretizar os seus termos, aquilo que está escrito em seu texto e nada além, sofreu violentos ataques da Hermenêutica Jurídica. Assentou-se a ideia de que mesmo os textos “claros” podem se revelar complexos no momento da aplicação, pois o que torna a operação interpretativa complicada não é somente o texto, mas, sobretudo os fatos, os novos fatos que surgem a todo instante, assim como a conexão do texto com o restante da ordem jurídica, como demonstra o já examinado caso da cobrança de imposto de donos de propriedades invadidas por sem-terras. Nesse sentido, Maria Helena Diniz afirma a clareza do texto é relativa, pois no momento da aplicação a lei será considerada “nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito”. (DINIZ, 1991, p. 381).

As críticas ao chamado método literal-gramatical de interpretação são antigas. Há quase

cem anos – e apoiado em doutrina ainda mais remota – Carlos Maximiliano fez o duro, completo

e prestigiado ataque abaixo:

O último golpe na preferência pela exegese verbal foi vibrado com a vitória do método sociológico, incompatível com o apego servil à letra dos dispositivos, que é verdadeiro processo de “ossificação do Direito”; […] Como o Direito envolve e a finalidade varia, altera-se o sentido das normas sem se modificar o texto respectivo; portanto a interpretação exclusivamente filológica é incompatível com o progresso. Conduz a um formalismo retrógrado; não tem a menor consideração pela desigualdade das relações da vida, à qual deve o exegeta adaptar o sentido da norma positiva. A linguagem, como elemento de Hermenêutica, assemelha-se muitas vezes a certas rodas enferrujadas das máquinas, que mais embaraçam do que auxiliam o trabalho. Motivos de sobejo têm tido os mestres para cobrir de ridículo a preferência retrógrada: apelidaram à exegese puramente literal – interpretação judaica; e também – analítica, elementar, inferior; em contraposição à lógica – sintética, ideológica, superior. Como instrumento para transmitir ideias, as palavras se lhes antolham – inadequadas, imperfeitas, sem a necessária dutilidade, verdadeiros paquidermes da ordem intelectual (2007, p. 97-100).

Maximiliano (2007, p. 97) cita casos instigantes. Refere-se, por exemplo, ao Código

Penal de 1890, que descrevia como crime de rapto a conduta de “tirar do lar doméstico, para

fim libidinoso, qualquer mulher honesta”. E menciona a controvérsia ocorrida na época, que gravitava exatamente em torno da literalidade. Alguns importantes autores excluíam do alcance da norma o rapto acontecido no colégio, na rua, na agência dos correios, enfim, em qualquer lugar que não fosse literalmente “lar doméstico”. E isso porque tais lugares não configuram “lar doméstico”. Relembra a doutrina da época que acabou prevalecendo, de que, não obstante a

textualidade do artigo, a essência do crime de rapto está na conduta que alguém que se apossa

de outra e a leva para outro lugar16.

Luis Recaséns-Siches enfatiza que o legislador será muito mais atendido em seus anseios quando a ordem jurídica é analisada em sua totalidade e em seus fins:

[...] Ao fazê-lo deste modo, o juiz, longe de apartar-se do seu dever de obediência ao ordenamento jurídico positivo, lhe dá seu mais perfeito cumprimento. Isto é assim pela seguinte razão: o legislador, mediante as normas gerais que emite, se propõe alcançar o maior grau possível de realização da justiça e dos valores que dela decorrem em uma determinada sociedade concreta.

Essa é, ao menos em princípio, a intenção de todo sistema de Direito positivo, independentemente de qual seja o grau maior ou menor em que tenha conseguido realizar com êxito esta intenção. [...] O juiz, quando interpreta as leis do legislador, de maneira que a sua aplicação aos casos singulares esteja em máxima conformidade com a justiça, é muito mais fiel à vontade do legislador e mais fiel ao fim que este propôs do que quando as interpreta de uma maneira literal, ou reconstruindo imaginativamente a vontade autêntica do legislador, se esses métodos aplicados ao caso produzem uma solução menos justa.”17 (RECASÉNS SICHES, 1986, p. 660-

661, tradução nossa).

Com esse propósito, Maximiliano (2007, p. 40-41) defende que a “interpretação da lei segundo a sua finalidade” tem uma posição de primazia no contexto da Hermenêutica, atraindo para a sua definição uma série de outras propostas que têm na verdade um eixo comum:

Assim como o sistema primitivo de interpretação teve denominações várias, sem se lhe alterar sensivelmente a essência (processo tradicional, psicológico, dogmático, escolástico), assim também a orientação contemporânea ostenta ora este, ora aquele dístico, indicador apenas do predomínio de um motivo propulsor da exegese no sentido de adaptar a norma imutável à vida real. Chamam teleológico ao processo que dirige a interpretação conforme o fim colimado pelo dispositivo, ou pelo Direito em geral. (MAXIMILIANO, 2007, p. 40-41).

Em conclusão, o uso do princípio da legalidade administrativa como princípio hermenêutico, além de desviá-lo do âmbito para o qual foi pensado (norma de conduta), resulta na prevalência da interpretação literal do Direito.

16 João Vieira de Araújo – O Código Penal Interpretado – Parte Especial, vol. I, n. 111, p. 246-247; Galdino

Siqueira – Direito Penal Brasileiro – Parte Especial n. 299 (em desacordo quanto ao rapto em plena rua); Acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 26 de março de 1898; Ac. Da Terceira Câmara da Corte de Apelação do Distrito Federal, de 10 de abril de 1915; Gazeta Jurídica, vol. 17, p. 170; Revista de Direito, vol. 40, p. 212-216; Edgard Costa – Repertório de Jurisprudência Criminal, n. 304. (MAXIMILIANO, 2007, p. 38)

17 [...] Al hacerlo de este modo, el juez, lejos de apartarse de su deber de obediencia al orden jurídico positivo, da

a este deber su más perfecto cumplimiento. Esto es así, por la siguiente razón: el legislador, mediante las normas generales que emite, se propone lograr el mayor grado posible de realización de la justicia y de los valores por ésta implicados, en una determinada sociedad concreta.

Tal es, al menos en principio, la intención de todo sistema de Derecho positivo, independientemente de cuál sea el grado mayor o menor en que haya logrado realizar con éxito esa intención. [...] El juez, cuando interpreta las leyes del legislador precisamente de tal manera que la aplicación de ellas a los casos singulares resulte lo más acorde posible con la justicia, es mucho más fiel a la voluntad del legislador y más fiel al fin que éste propuso que cuando las interpreta de una manera literal, o reconstruyendo imaginativamente la voluntad auténtica del legislador, si esos métodos aplicados al caso planteado producen una solución menos justa. (RECASÉNS SICHES, 1986, p. 660-661).