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Implantação do Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo: a memória em ação Uma das autoras bastante estudadas nos encontros da REM/PB é a museóloga

CONHECENDO E TECENDO O CAMPO: O VALE DO GRAMAME, A ESCOLA VIVA OLHO DO TEMPO E O SEU MUSEU COMUNITÁRIO

3.3. O Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo: trajetória e narrativa expositiva

3.3.2. Implantação do Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo: a memória em ação Uma das autoras bastante estudadas nos encontros da REM/PB é a museóloga

baiana Maria Célia Santos (2008). É recorrente, nos artigos e ensaios que escreve, a defesa no sentido de que os museus são resultado das ações dos sujeitos que os estão construindo e reconstruindo, a todo momento. Portanto, os museus, como instituições histórico-socialmente condicionadas, não podem ser considerados um produto pronto. O museu, desta forma, é considerado como um processo, orientado ao reconhecimento e à valorização da diversidade cultural, como também à inclusão social e à construção da cidadania.

Reflexões como essas influenciaram a criação do Museu Comunitário da Escola Viva Olho do Tempo. O fato de Penhinha relatar que, após alguns encontros da REM/PB, surgiu a ideia de juntar “coisas” para fazer um espaço representativo dos avós (guardiões das memórias mais remotas) e das histórias, demonstra o processo de concepção e construção desse museu. O museu não nasce aí, na verdade. As práticas de valorização das referências culturais e construção coletiva dos patrimônios culturais do Vale do Gramame por esses atores sociais já faziam parte de uma prática museal - ou de um processo museal, como defende Maria Célia Santos -, mesmo antes do desejo de materializá-lo em quatro paredes e por meio de um sistema de signos construído pelas “coisas” coletadas.

A ideia da materialização desse espaço está bastante presente na memória de Penhinha:

Um dos momentos que eu não esqueço nunca foi quando a gente concretizou aquela primeira ideia de museu na nossa comunidade, que foi em 2010, na Semana de Museus... Foi um momento de festa quando a gente lançou a primeira ideia do museu... Uma das coisas que deu o surgimento foi que Mestra Doci sempre buscou na gente o registrar. A gente sempre fotografava, mesmo sem saber mexer na câmera. Ela dava uma câmera na mão da gente pra gente mexer e registrar. A gente fotografava tudo. Teve momento que a gente registrava as conversas dos mestres, a gente registrava as rodas e vivências. Então quando a gente começou a participar da REM e dos encontros onde a gente conversava sobre a organização da memória para que as pessoas vivenciassem uma memória que a gente vivenciou, aí foi o

momento que a gente lembrou e mostrou pra Doci. Como a gente vai mostrar tanta coisa? Aí a gente começou a trazer coisas que tinham significado pra gente, pra comunidade. Foi o momento que a gente começou a juntar essas coisas pra expor para as pessoas... A metodologia que a gente usou foi sempre essa metodologia de trazer a valorização da nossa identidade como pessoa e nossa identidade como comunidade. Essas frases fortaleceram o desejo da gente organizar isso dentro da Escola, de se reconhecer como um lugar de memória, um lugar onde muitas pessoas passaram e traziam uma bagagem de história e de memória que foi sendo escrita... Foi muita gente fazendo o movimento. (Penhinha, entrevista concedida em 20/11/2014).

Sua fala é bem representativa porque demonstra a formatação desse museu como um processo e também como produto de uma construção sócio-histórica dos sujeitos sociais que dele participaram. O juntar coisas está aliado a um processo de registro das memórias e vivências, nas rodas e nas atividades desenvolvidas pela escola, e à produção de significados, individuais e coletivos. A metodologia, explicada de forma simplificada, demonstra uma finalidade: a valorização da identidade indivíduo, enquanto sujeito individual e inserido socialmente em seu grupo. Esse “movimento” de criação do museu, levado a cabo por muita gente, leva em consideração que as ações museológicas consideram como ponto de partida a prática social e não somente as coleções (“coisas” coletadas).

Na prática museal do Museu Comunitário da Escola Viva Olho do Tempo, como nas premissas da mítica Mesa-Redonda de Santiago do Chile, percebe-se que a ação de comunicação, por meio da construção de signos com as coisas coletadas e com os registros efetuados, tem como finalidade a representação de uma memória construída coletivamente (ou de uma “memória sendo escrita”, como fala Penhinha), com vistas à transformação e ao desenvolvimento social. A finalidade, também, está presente no incentivo à apropriação e reapropriação do patrimônio cultural, em que a identidade seja vivida na pluralidade e na diversidade.

Com esse discurso não me furto a considerar que existem conflitos nos processos de construção de memórias coletivas que tenham por base práticas dialógicas e democráticas de sua representação. O campo do patrimônio e dos museus é sempre um campo de conflito, em que estão presentes as disputas simbólicas, políticas e antagônicas das representações identitárias. Como, portanto, tais conflitos podem ser minimizados? É papel dos museus buscar o consenso no cenário que envolve o jogo social de representação de memórias e

identidades? Quais são os limites dessa representação? Certamente, essas e outras questões interessam no trabalho de construção de processos representativos da memórias de grupos e sujeitos sociais e de seus patrimônios culturais. Mais do que procurar respondê-las, entretanto, é válida uma reflexão sobre as possibilidades e dilemas que envolvem a construção de memórias coletivas e suas representações.

Em sua primeira formatação, no ano de 2010, a exposição do Museu Comunitário da Escola Viva Olho do Tempo se deu pela iniciativa da coleta, nas comunidades, de objetos que tivessem “significado” e de registros efetuados pela Escola, que pudessem demonstrar as referências culturais e narrar as “histórias” do Vale do Gramame. Nessa exposição, estavam à mostra objetos do cotidiano local, como artefatos dos saberes e fazeres dos mestres e peças de artesanato; objetos “antigos”, mas de grande valor afetivo e ligados à memoria do Vale; além de farto material resultado dos registros fotográficos das atividades desenvolvidas pela Escola nas comunidades, como a promoção do São João Rural, do Encontro Cultural “O Vale vai à Praça”, rodas de leituras com as crianças e mestres, entre outras. Como peça de destaque, foi construído um fogão de barro, muito comum na região, de modo a demonstrar uma típica cozinha rural, encontrada em muitas casas na localidade.

Imagem 16: Visita à primeira exposição do Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo. No centro, fogão a lenha construído para a exposição. Foto do autor, 2010.

Imagem 17: Objetos coletados na comunidade, expostos na primeira exposição do Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo. Foto do autor, 2010.

A escolha dos objetos a serem expostos é bastante emblemática e prenuncia uma linha narrativa que, emboram existam objetos usados atualmente no cotidiano local, privilegia objetos de uma temporalidade ligada aos antepassados, aos moradores mais antigos da região. São esses objetos que se revestem de valores para a construção de uma determinada identidade do Vale do Gramame. A escolha do fogão de barro é bastante significativa nesse

sentido. Se no Vale do Gramame ainda coexistem as duas formas de cozinhar, por que se deu privilégio ao fogão de barro em vez do fogão a gaz como digno de ser “sacralizado” no museu?

Para podermos fazer um paralelo, em análise sobre a experiência de uma curadoria coletiva para a montagem da exposição para a reabertura do Museu da Abolição, do Recife, em 2010, Antonio Motta (2012) desvenda os conflitos e tensões gerados a partir de diferentes lógicas de entendimento sobre o que vem a ser o continente africano na atualidade por parte dos grupos participantes desse trabalho. Nessa experiência, demonstra como a visão de estudantes africanos que faziam gradução em universidades brasileiras destoava dos afrodescentes brasileiros. Grosso modo, estes reivindicavam uma narrativa expositiva que traduzisse uma africanidade brasileira, representada por objetos que tematizassem o passado por meio da sobrevivência e transformações das religiões de matriz africana no Brasil, dos rituais e divindades, da influência da comida e das línguas, das danças, das festas, etc. Por sua vez, os estudantes africanos eram críticos a esse desenho baseado num recuo temporal. Reivindicavam uma narrativa expositiva que demonstrasse uma faceta cosmopolita e contemporânea de seus países de origem, de uma África em um contexto pós-colonial, integrada aos fluxos da economia mundial e não apenas guardiã de memórias e tradições passadas. Uma das salas da exposição, portanto, foi denominada “O continente africano hoje” e causou estranheza, ao primeiro grupo, a exposição de objetos ligados à modernidade atual, como ipods, imagens de laptops e ipads, entre outros.

No caso do Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo, percebe-se que o seu discurso narrativo evoca bastante o trabalho de memória desenvolvido pela Evot a partir dos mestres griôs. Na construção de suas memórias está presente a necessidade de se musealizar e preservar objetos (como o fogão a lenha), que remetem à ancestralidade e a uma temporalidade que está intimamente ligada ao antepassado, no sentido de que esses objetos são considerados os legiítimos de uma identidade do Vale do Gramame e como fios condutores ao não esquecimento dessa identidade por parte dos indivíduos de hoje.

Outro aspecto a se considerar, como é bastante comum em museus comunitários, essa primeira exposição não primava pelas técnicas expositivas ensinadas pela Museologia, contendo visíveis problemas de comunicação e seleção dos objetos a serem expostos. Entretanto, cabe considerar que na exposição, encabeçada de forma amadora (e aqui me refiro a dois aspectos significativos do termo amador, no sentido de não detentor de conhecimento técnico, mas também de amante, imbuído de amor) por Penhinha e por membros da

comunidade do Vale do Gramame, mais do que técnicas expositivas adequadas, o que vale é o desejo de memória de determinados atores sociais que estão nos limiares das identidades de resistências (CASTELLS, 2008) e sua representação em um discurso expositivo no museu, uma instituição onde comumente não se veem representados. A construção e a afirmação das suas identidades, bem como dos significados dos objetos ali expostos podem ser percebidos nas falas dos atores que participaram do processo de concepção do museu. Mestre Marco de Mituaçu, pai de Penhinha, que será apresentado no capítulo seguinte, explica que o museu surgiu das conversas com as lideranças das comunidades e, a partir daí, foram coletados objetos que tinham significado (poesia) e mereciam ser expostos:

O Museu surgiu também dessas nossas conversas com as lideranças das comunidades... Aí se pensou em fazer o museu. Aí a gente foi nas comunidades. As lideranças das comunidades foram conversando com as pessoas mais velhas. As pessoas mais velhas tinham uma peça. Tem a história do Seu Zé Pequeno que tinha uma chaleira que foi do casamento dele, que ele tinha o maior ciúme do mundo, mas mesmo assim [ele disse] eu vou pegar e vou dar. A mulher dele parece que nem sabia. Quando a mulher dele pegar, vai dar com essa chaleira na minha cabeça (risos). Aí a gente foi levando pilão, que ainda existia na comunidade. (...)

O fogão de lenha foi feito por Seu João. A gente é acostumado a fazer feijoada pra todo mundo. E fazer no gás é um gasto muito grande. A gente bota o tacho no fogão de lenha. Lenha aqui é o que não falta. [Intervenção de Penhinha: Outra coisa que é importante dizer é que todo mundo, se a gente for ali em Dona Jandira, ela tem o fogão de lenha dela.] A maioria das pessoas ainda preserva, sabe. Quando o gás está se acabando, começa a fazer a comida na lenha. (Mestre Marco de Mituaçu, entrevista concedida em 29/01/2015).

No processo de criação do museu, Penhinha, por sua vez, faz questão de ressaltar a mudança na percepção do olhar para esses determinados objetos do cotidiano. O que é comum, trivial, começa a ser visto com outros olhos. A partir disso, começam a ser valorizados os significados e as referências de determinadas coisas ou costumes.

Outra coisa que a gente estava falando é que a gente não dava importância a isso. Era uma coisa do cotidiano que tanto fazia pra gente, estar acontecendo. A gente vivenciava, mas não valorizava, entendeu? E quando a gente começou a perceber o valor, a gente começou a perceber: Nossa! Quanta

coisa a gente perdeu de estar falando, de estar guardando, de estar incentivando as pessoas a conhecer e a mostrar às pessoas! Por exemplo, é importante pra Vítor [neto de mestre Marco de Mituaçu], mais novo herdeiro, né painho, saber essa história do dendê [Mestre Marco falou que era comum a colheita de dendê na região], que nem eu sabia, que painho contou agora. Estou sabendo agora, ele nunca contou isso. São essas coisas que vão criando esse sentimento de que a gente perdeu uma memória. Era uma coisa que deixava a gente feliz e que hoje não existe mais. A gente não conhece, mas a gente sente falta. A gente para pra conversar e começa a falar e falar e descobre coisas que seria tão importante que os outros soubessem. Então essa questão da memória, de criar um espaço pra gente lembrar essas coisas que a gente vivenciou e que a gente está vivendo ainda... Essa história do museu, de ampliar os espaços de memória na comunidade. Porque a questão da memória não é parada. Não existe uma memória parada. Existe uma memória que continua, né ? A gente ia nos quintais, por exemplo, na época em que painho falou de quando saía e pegava na mão da gente, isso ele não faz mais com Vitor, mas isso faz falta. Ele pegava a gente pequenininha e saía de porta em porta dos mais velhos dando a bênção, na sexta-feira da Paixão. Isso são coisas que a gente vai esquecendo por não lembrar, por não contar. (Penhinha, entrevista concedida em 29/01/2015). E na simples percepção de Penhinha de que a memória não é parada, que ela continua, há toda uma relação com as reflexões de Candau (2012) quando este frisa que a memória é a identidade em ação e que aquela nos modela ao mesmo tempo em que é por nós modelada. A memória não é inerte, ela continua, se modifica, se reinventa. E ela também é modelada pela memória dos outros, na perspectiva da construção e reconstrução dos quadros sociais da memória de que fala Halbwachs (2006). Penhinha percebe isso quando se apropria das memórias de seu painho e sente a perda de uma memória ou uma prática que não mais existe, ou que deixou de ser contada e caiu no esquecimento.

Para representar suas memórias (ou constituir uma metamemória, como preceitua Candau), os indivíduos, por meio das interações sociais, optam por escolhas dentro de um determinado repertório flexível e aberto de representações, crenças e ideias. No caso do museu, essa representação se dá por meio uma performance expositiva, constituída de signos significantes que produzem um discurso, nunca neutro e sempre ideológico, no sentido de que a ele está subjacente um conjunto de ideias e valores com um propósito específico. Sigamos, assim, apresentando o processo da reformulação da exposição do Museu Comunitário Vivo

Olho do Tempo, que, nesse segundo momento, tem, como princípio, o olhar dos mestres e mestras locais.

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