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Mestra Betinha : “O menino Jesus que me perdoe, já pedi muito perdão a ele, sabe?”

A VOZ E A VEZ DOS MESTRES E MESTRAS

4.1.7. Mestra Betinha : “O menino Jesus que me perdoe, já pedi muito perdão a ele, sabe?”

Imagem 31: Imagens da Mestra Betinha e de sua manifestação apresentadas na exposição “Vale do Gramame: memórias e vivências”. Arte de Daniella Lira, 2013.

A voz mais dissonante entre os mestres é de D. Elizabete Silva Nascimento, conhecida como D. Betinha. Nossa conversa aconteceu na sua casa, na comunidade de Mituaçu. Inicialmente, estava bastante intrigada e se opôs a dar entrevista, argumentando que já estava cansada de dar entrevistas “para a Universidade” e não ganhar nada em troca. Inclusive ressaltou que determinado pesquisador levou fotos suas e nunca devolveu. Além disso, pesava o fato de agora ser evangélica e o pastor não aprovar que cante a lapinha. Embora amasse cantar a lapinha, também deixou de fazê-la por falta de apoio, inclusive financeiro, e por conta do desinteresse das meninas de hoje por essa manifestação. Ao final, acabou concordando em conceder a entrevista de forma rápida, para poder voltar aos seus afazeres. Aos poucos foi se abrindo e interagindo bastante, mas sempre pontuando a vida difícil que vinha levando e a falta de apoio das instituições e de interesse das pessoas pela lapinha atualmente. A sua indignação, descontentamento e conflitos em função de sua nova religião na Igreja Universal do Reino de Deus são bastante perceptíveis em sua fala.

Moro neste Sítio, tenho um filho deficiente, vivo da aposentadoria dele e é muito difícil. Até agora não me aposentei. Nascida e criada aqui... Meu nome é Elizabete Silva Nascimento. Natural, meu nome é esse. Sobrenome da minha mãe e do meu pai. Meu pai morava aqui, meu pai e minha mãe. Sou nascida e criada no sítio de Mituaçu. Batalhei com um problema de saúde, porque eu tinha um problema de artrose sério, problema de coluna. Aí não me aposentei até hoje. E vivo por aqui, até hoje. Vou interar 62 anos e

estou cansada. Cansadíssima desta vida. Tenho duas filhas que moram em João Pessoa e três netos, já.

Estou na Igreja Universal, no Conde. Tem que ir no ônibus do colégio... Eu me sinto bem na Igreja. Ontem mesmo orei muito, graças a Deus. Me sinto tão aliviada, sabia? Hoje em dia a gente tem que pedir muito a Deus, tem que rezar muito, orar, pedir muita força a Jesus porque agora não está fácil. (Mestra Betinha, entrevista concedida em 16/04/2015).

Sua relação com a lapinha hoje está bastante conflituosa. Ao mesmo tempo que se sente bem cantando a lapinha, os pastores de sua Igreja proíbem, pois ela é uma expressão de origem católica, que venera o menino Jesus, seu nascimento e, consequentemtne, a Sagrada Família. Também se sente sem amparo para continuar com essa manifestação, por não ter um retorno financeiro justo, e até mesmo explorada por pesquisadores, que a procuram atrás do conhecimento e não devolvem o material que levam.

Canto lapinha há muito anos. Há muitos anos que eu canto lapinha. Já cantei lapinha no Conde, no Gurugi, no Ipiranga e em Mituaçu nem se fala. Já saí com lapinha pra fora, pra Engenho Velho, pra Penha. Esse meio mundo todinho, viajei com lapinha, mas nunca tive nada assim de interesse de ninguém de fazer uma coisa por mim. É só cantar e acabou. Cantar e os outros recebem alguma coisa e eu, nada, nada. Só uma gorjetinha lá, quando bem... Mas eu vivo aqui, eternamente. Não tenho pai, não tenho mãe, só um filho deficiente. Essa vida é muito cansada. Então antigamente eu fazia mais tranquila, andava porque o tempo era melhor. Mas agora o tempo complicou pra todo mundo. Não dá pra ninguém andar mais sozinho, andar mais de pés, porque é longe. Tudo é complicado. Aí fui me cansando, me cansando e eu acho que a última foi essa, que eu cantei faz um ano agora em fevereiro de 2015. (...)

Aí todo mundo só pergunta da lapinha pra mim e aí eu digo: A lapinha acabou, me cansei, não canto mais nadinha não. Agora eu sou evangélica e eu cansei de verdade. Me senti tão sozinha de cantar, cantar, cantar, fazer acontecer, animar. Vamo animar, vamo animar a comunidade, mas só animar a comunidade e eu sem ganhar nada. Eu só me desgastando. Eu saía daqui na boca da noite, nas carreira, sem janta, chegava dez, onze horas da noite, pra poder jantar, e cansada, cansada. E não via nada de futuro de nada. Uma gratificação coisa nenhuma. Quando eu precisava de um dinheiro pra sair, cadê? Eu tô lisa! Eu cantei tanto, tanto, tanto. O povo tiraram o

dinheiro, saiu o dinheiro da bandeira. O povo deram o dinheiro do cravo, o dinheiro botaram nos peitos das pastora. Ninguém me chegava: “Tome, isso aqui é pra ti. Isso aqui é uma gratificação”. Nada disso! Isso cansa a beleza! Por isso eu cansei, aí desisti. Não tenho vontade mais não... Aí então eu cansei, não tenho mais vontade não, de jeito nenhum.

Em dezembro, uma moça [pesquisadora] veio aqui, me levou de carro e eu ensinei umas coisa lá e disse: “Não posso, eu tô na igreja”. E ela: “Eu sei que a igreja é de Deus, mas o menino Jesus também é e não sei o que...”. Mas só por causa da reunião, diferente, aí os pastores não querem, né. Não aceitam. Assim mesmo ainda fui em dezembro, cantei um pouquinho. O queima foi em fevereiro, ela mandou recado, mas o meu coração não pedia que eu fosse, então eu não fui, né. A gente fazer uma coisa forçada, o coração não aceita, é muito desagradável. Não adianta. Então eu não fui mais cantar lapinha. (Mestra Betinha, entrevista concedida em 16/04/2015).

Diferentemente dos outros mestres, nesse início de conversa é extremamente forte a recorrência em alusão ao cansaço com que Mestra Betinha expõe ao falar de sua arte. Seu cansaço pela lapinha se dá por diversos motivos, desde a falta de apoio, falta de reconhecimento e ao desinteresse das moças em querer dançar. Pesa, sobretudo, o fato de não ter ganhado nada, em termos financeiros, com a realização dessa celebração, quando, segundo seu depoimento, outras pessaos se beneficiaram, o que “lhe cansou a beleza”. Outro ponto que marca o conflito em relação à lapinha é o fato de agora “estar na igreja”, ou seja, uma proibição imposta por pastores da Igreja Assembleia de Deus que frequenta.

Apesar de dizer que seu coração pede que não cante mais a lapinha, o conflito interno está ainda implícito em outras falas, quando assume a falta que sente das músicas e ressalta a beleza dessa expressão, que aprendeu desde menina, com sua mãe. Interessante observar também que, mesmo ao afirmar que aprendeu cantar lapinha com sua mãe, pesa o fato do seu próprio interesse em aprender. Isso também é recorrente na fala dos outros mestres, ou seja, não basta uma transmissão de saberes. É necessário um dom ou a predisposição em aprender, como aconteceu com Mestre Zé Pequeno, no ofício de mateiro; com Mestre João, na ciranda; e com Mestre Zominho, no acordeon. Não se pode ensinar a quem não quer e isso é dos motivos do cansaço de Mestra Betinha.

Aí reunião, lapinha, essas coisas de folclore, eu cansei, deixei. Não sinto mais falta. Às vezes eu canto assim, uma musiquinha, mas é muito pouquinho. Me sinto mais tranquila porque não tem aquela responsabilidade,

porque, como mestra, eu tinha que chegar na hora exata, tinha que ensinar, tinha que exigir. E essa vida cansa, a vida inteira. Porque faz muito tempo que eu canto lapinha, desde a minha infância, de dezoito, dezenove, vinte, passei pra trinta, quarenta, cinquenta e to com sessenta e dois e é muita coisa.

Aprendi com minha mãe. Minha mãe cantava e dançou muito lapinha. Eu fui crescendo e ouvindo ela cantando e aprendi. Ninguém nunca me ensinou. Vem de mim mesma. Eu gostava muito e achava muito bonito. Noivei com quinze anos e ele não deixou eu dançar. E eu fiquei triste, mas o casamento acabou. Sempre é assim mesmo. (Mestra Betinha, entrevista concedida em 16/04/2015).

Mestra Betinha explica que, na lapinha, existe o cordão encarnado e o cordão azul, com as pastoras, a cigana, a camponesa e o anjo. Para poder dançar a lapinha, via de regra, a menina precisa ser virgem. Mesmo assim, após desfeito o seu casamento, ela ainda dançou lapinhas. E a todo momento demonstra a relação de afetividade que ainda mantém.

Já dancei quatro lapinhas depois do casamento acabado. Depois que é mulher não dança mais lapinha. A lapinha é uma coisa muito séria. Tem que ser virgem, tem que ser uma menina respeitada pra poder dançar. Hoje em dia as moças não querem mais isso, ter aquela obrigação. Quando vive em casa tudo bem, mas quando é aquelas moças que vive no meio do mundo, que não ligam pros pais, não querem mais, dizem que tão pagando mico e não sei o que. Ficam botando defeito, né. Aí é desagradável, trabalhar com esse povo é muito desagradável. Aí eu desisti, não sinto mais vontade não. Cansei mesmo. É falta de amor, falta de carinho, porque a lapinha é uma coisa bonita, animada, uma brincadeira folclórica das mais bonitas, muito interessante, os enfeites dela fica muito bonito. Todo mundo aplaude, quer botar dinheiro, todo mundo grita. Mas hoje em dia o mundo tá muito mudado, sabia?... (Mestra Betinha, entrevista concedida em 16/04/2015). Em outro momento, quando vai se soltando, é cada vez mais explícita a relação de afetividade que mantém com a lapinha, bastante diferente do início da conversa. Na fala seguinte, não demonstra o cansaço, mas todo o prazer que sente quando canta. O ressentimento vai dando espaço aos laços de afetividade que mantém com essa celebração, reclamando, inclusive, quando tem que cantar a lapinha incompleta. Isso demonstra como a construção identitária é fluida e relacional. À medida que fui ganhando confiança, como interlocutor, Mestra Betinha mostra um outro olhar, bastante destoante, sobre a manifestação

que desenvolve. Mais à frente, quando trato da visão dos mestres sobre a Evot, mestra Betinha novamente é a voz destoante, afirmando que a Escola não trouxe qualquer benefício para o Vale do Gramame e se demonstrando bastante relutante com o trabalho por ela desenvolvido. É possível fazer a leitura de que, no momento inicial da conversa, ela tenha relacionado minha vinda a algum trabalho da Evot.

Na lapinha eu tenho maior prazer de cantar. No dia da queima, foi um desabafo pra mim, porque passou aqueles setes meses [de ensaio], aquela complicação, aquele vai e volta, acaba. A lapinha não se acabou porque a gente levou pra frente, eu e minha irmã. Porque saiu seis pastoras, uma atrás da outra. Saía uma toda semana, passava não sei quantos dias, faltava outra. Não pode, assim descontrolado, tudo desmantelado... A gente segurando, segurando, pedindo ao menino Jesus que segurasse. ...

Na hora que eu canto a lapinha é desabafo muito bom. É muito gostoso... Eu canto do começo ao fim. Cantar uma coisa pela metade não adianta. Tem o começo, subir as pastoras, depois de cinco músicas que a gente canta, a gente recolhe as pastoras numa marcha, sobe novamente o anjo, o guia e todas as pastoras. Canta três ou quatro ou cinco pares. Desce novamente pra fazer a parte da mestra ou da cigana e recolhe novamente a lapinha. Tem que ser desse jeito. Ou uma lapinha ou nada, né. Cantar pela metade nunca. (Mestra Betinha, entrevista concedida em 16/04/2015).

Dona Betinha faz questão de me mostrar as poucas fotos que ainda tem das lapinhas que comandou, relatando cada uma delas e apontando as meninas da comunidade, hoje já mulheres casadas e mães de família. Uma das fotos chama a atenção. Nela, Mestra Betinha aparece num ritual de Candomblé. Ela se limita a dizer que estava numa festa de Candomblé comendo tapioca, evidenciando como as manifestações de raízes africanas são silenciadas e ainda praticadas na clandestinidade na região, mesmo numa comunidade quilombola.

No momento em que mostrava as fotos, solta-se bastante. Então aproveita e canta uma música, o que faz com o maior agrado, com sua voz aguda e bastante afinada.

Todo mundo acha que eu sou lapinha. Eu sou uma lapinha em vida [risos]. Agora acabou a lapinha. Eu me sinto bem indo pra Igreja, venho pra casa, não vou pra festa. Pra que festa? Eu estou é velha e cansada, sem futuro, sei lá. Mas vou cantar um hino de lapinha, né. Deixa eu pensar um bem bonitinho [e entoa a Lapinha]:

As pastoras vêm dos montes Vem com muita alegria

Para ver se é nascido

Jesus, filho de Maria (repete estrofe) Oh, pastorinhas

Lá do sertão

Não deixa a roda cair no chão (repete a estrofe)

[Risos] Esta é do menino Jesus e de Maria. É porque é Jesus, José e Maria. É muito bonito! Bem cantado e bem tocado chama a atenção. Mas tá acabando, sei lá. O povo não se reúne direito, aquela coisa. Um xinga prali, outro xinga pra cá. Aí eu fico cansada... Acho que não volto mais atrás. O menino Jesus que me perdoe, já pedi muito perdão a ele, sabe? Eu não fiz por má vontade. É canseira mesmo. Me desanimou por causa da falta de interesse das meninas. A gente canta, canta, canta. Chama a atenção pra não fazer feio no dia, porque um negócio com interesse, tudo fica bonito. Qualquer coisa que a gente faz com aquela boa vontade de se expressar, representar, é muito bonito... Eu queria fazer na minha casa, a lapinha, mas não deu. (Mestra Betinha, entrevista concedida em 16/04/2015).

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