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Mestra Judite : “Aí um dia comecei a escrever e fiz a minha primeira poesia que foi O Sonho ”.

A VOZ E A VEZ DOS MESTRES E MESTRAS

4.1.5. Mestra Judite : “Aí um dia comecei a escrever e fiz a minha primeira poesia que foi O Sonho ”.

Imagem 29: Imagens de Mestra Judite, poeta popular, e de seu saber fazer apresentadas na exposição “Vale do Gramame: memórias e vivências”. Arte de Daniella Lira, 2013.

Fui recebido por mestra Judite Palhano na casa de uma de suas filhas, na comunidade de Engenho Velho. Com 64 anos, é filha da região, tendo nascido no sítio Botão. Estava presente também D. Francisca, sua mãe, de 86 anos, bastante simpática e sorridente, mas que não acompanhou nossa conversa, pois preferiu ficar descansando em sua rede, assistindo a uma novela. Na conversa com mestra Judite, chamou atenção sua erudição, apesar de ter concluído apenas o antigo ginasial. É casada com Seu Hermes, personagem bastante atuante na comunidade na luta pela preservação do rio e de melhorias das condições de vida locais. Seu Hermes já participou várias vezes do conselho da Associação de Moradores de Engenho Velho e já assumiu a sua direção. Na fala de Mestra Judite, ela assume um discurso tipicamente feminino, de muito apego à família e ao incentivo aos estudos dos filhos. Todos são formados em nível graduação e uma das filhas, inclusive, hoje é professora da Universidade Federal da Paraíba, no departamento de Economia. A exemplo de mestre Zé Pequeno, mora rodeada pelos filhos, em terrenos próximos a sua casa, o que aparenta ser bastante comum no Vale do Gramame.

Eu nasci em 1950 no sítio chamado Botão, na região de Gravatá [fica nas proximidades de Gramame]. Com um ano de idade, meu pai era agricultor, junto com meus avós, e a gente veio pra cá, pra Engenho Velho. Só era a mata, não tinha casa, só era uma mata. Meu pai, um dia, juntou um mutirão e construiu um casebre pra nos abrigar, eu, minha mãe e minha irmã com 19 dias de nascida. Com quatro anos [ela] meu pai morreu e minha mãe ficou

viúva aos 29 anos. Pra sustentar a gente, foi trabalhar alugado47, trabalhar na

roça, ... plantava ruma de batata, colhia feijão verde e todo tipo de serviço ela fazia, da roça. Minha mãe trabalhava assim, pra receber uma diária, com se diz hoje. Mas o serviço dela era pesado, era de roça. Fazia a cevação de mandioca, em casa de farinha, o pessoal convidava pra fazer a raspagem da mandioca. Daqui da região ela era a única cevadeira que tinha. Na época não tinha nada motorizado. Era tudo manual, tudo artesanal a fabricação de farinha. Ela era a cevadeira aqui do lugar, aqui da região. Até em Mussuré, ali do outro lado da BR, ela ia cevar mandioca. O nome dela é Francisca Rodrigues. Tá com 86 anos. (...)

Eu me mudei praqui. Faz 64 anos que eu vivo aqui, nesse mesmo sítio. Aí meu pai começou, plantou os coqueiros. Só os coqueiros... passou um ano depois de ter chegado aqui, ele faleceu. Depois, as mangueiras que foi nascendo, que foi aparecendo, minha mãe foi deixando. Aí ficou um sítio de mangueira, de cajueiro. As mangueiras antigas desapareceram tudo depois... E os cajueiros também. Os cajueiros não têm vida longa não, que dá muito inseto. Depois que eu me casei, meu marido tomou conta e ficou morando comigo e com minha mãe. Tive cinco filhos. Aí ele foi cuidando, foi plantando mais coqueiros. E estamos aqui até hoje.

Meus filhos são três mulheres e dois homens. Só tem um que mora na cidade48, que é militar. Os outros moram aqui. Aqui estou na casa de uma. E

ali mora um neto meu, da ex-mulher desse meu filho que mora na cidade, com a mãe dele. Na outra casa mora minha filha mais velha. Aqui mora a do meio e ali mais embaixo mora a caçula. E tem um solteiro ainda. Estou casada há 39 anos. Os meninos não nasceram aqui porque foram pra maternidade [risos]. Quando pergunta quem quer ir pra cidade, ninguém que ir pra cidade.

A minha irmã, Deus já levou. Já faleceu. Aí só tem eu e ela [a sua mãe]. Ela nunca se casou, pois ela não queria dar padrasto pra gente. (Mestra Judite, entrevista concedida em 19/03/2015).

47 Trabalhar alugado significa fazer diárias. Não é um trabalho assalariado. O recebimento pelos serviços é por dia trabalhado.

48 Refere-se à cidade se refere a João Pessoa. Embora o Vale do Gramame faça parte do município de João Pessoa, seus modos de vida são tipicamente rurais. Então quando se referem à cidade, tratam do núcleo urbano do município.

O incentivo aos estudos que deu aos seus filhos vem de sua própria vontade de estudar. Com todas as dificuldades que teve, completou o ginasial (o que equivale, atualmente, ao 9º do Ensino Fundamental). E sua relação com o estudo está atrelada à vontade de escrever.

Eu sempre gostei de escrever. Eu sempre quis muito estudar, só que eu não tinha condições na época. Hoje os jovens, as crianças têm tudo e não querem estudar. Na minha época eu queria estudar e não tinha. Como é que eu ia estudar, sem condições? Aqui só tinha até a quarta série, em Gramame, e eu queria fazer pelo menos o ginásio, que na época o ginásio era muita coisa. Com 10 anos, quando eu fiz a quarta série, eu fui pra Nova Cruz [RN], pra casa de uns tios meus, irmão do meu pai. Ele irmão do meu pai e ela irmã da minha mãe... Aí fiz o quinto ano, que era o quinto ano de admissão para o ginásio. Lá fiz até o terceiro ano ginasial. Aí meu tio pediu transferência pra Itabaiana [PB], e lá eu terminei, fiz a quarta série ginasial.

Aí eu já tava com 18 ou 20 anos. Aí agora, como é que eu vou estudar? Fui pra João Pessoa e lá no interior não tinha. Vou pra Engenho Velho. E nessa época não tinha ônibus, não tinha nada. Continuava quase a mesma coisa. Aqui veio melhorar depois que foi desapropriado, porque era uma propriedade particular. (...). Depois dessa desapropriação, foi que se fundou uma Associação de Moradores, até que meu marido foi o presidente muitos anos. Aí depois disso, foi que surgiu a energia (...), passar ônibus. (...) Eu estudei até o quarto do ginásio. Não consegui [continuar], mas graças a Deus passei pros meus filhos. Tenho cinco filhos e todos eles tão na... Tem uma economista, tem um engenheiro civil, tem uma assistente social, tem uma outra cursando, aqui mora aqui, Assistência Social. E tem um fazendo automação industrial, esse que é militar. Eu queria muito cursar uma faculdade, mas não tinha recurso, não tinha condição de jeito nenhum na minha época não tinha não. (Mestra Judite, entrevista concedida em 19/03/2015).

Embora ressalte o seu gosto pela escrita desde a infância, o incentivo para escrever poesias veio por intermédio da Evot e, mais especificamente, por mestra Doci. Foi ela quem sugeriu à Mestra Judite escrever poesias sobre as “coisas” do Vale do Gramame e para os eventos promovidos pela escola. Um conjunto de suas poesias já foi reunido numa publicação, editada pela Evot no ano de 2006, intitulada Proseando. A coletânea consta de poemas sobre as histórias, vivências, lutas e o dia a dia do Vale do Gramame.

Eu sempre gostei muito de escrever, sempre gostei. Gostava muito de Português, era minha matéria preferida, só tirava 10. Gostava muito de fazer redação. Mas depois que eu parei de estudar, fui trabalhar pra me manter. Minha mãe também já estava ficando velha. Depois me casei, tive filhos. De dois em dois anos, era um. Aí parei mesmo de trabalhar, aí foi tempo que as meninas já estavam tudo moças e começaram a frequentar a Evot. Foi por intermédio da ONG que eu voltei a escrever. A poesia eu não fazia não, mas eu gostava muito de escrever. Foi por incentivo de Doci, que ficava, começava a contar aquelas histórias. Aí um dia comecei a escrever e fiz a minha primeira poesia que foi “O Sonho”. De tanto ela falar em sonho, né, porque ela incentivava as mulheres, porque as mulheres tinham os seus sonhos, podiam sonhar. Aí foi que saiu a primeira. Aí quando tinha uma reunião, uma festividade, quando tinha uma comemoração, aí ela começava: “E a poesia, né, Judite?”. E quando eu chegava em casa, já começava a fazer o rabisco e devagarinho tava pronta. Sempre, em todas as festinhas de lá da ONG, sempre quando tinha uma reunião, sempre quando tinha um assunto, um tema, aí sempre saía uma poesia. Daí foi que saiu o livro. Foi quando eu já tinha juntado um monte de poesias, aí saiu aquele livro. Foi por intermédio da Evot. Eu ainda escrevo, tenho um ali pra [10ª] Caminhada de São José, no sábado. Eu tenho um monte aí guardada. (Mestra Judite, entrevista concedida em 19/03/2015).

E traz a mais nova poesia, escrita em uma bela caligrafia, composta para celebrar os 10 anos da Caminhada de São José. Logo em seguida a recita:

Caminhada de São José (10 anos) - Retrospectiva A todos aqui presentes

Peço toda atenção Pra falar da caminhada Que nunca ficou na mão Embora muitos atropelos Marcassem sua evolução

São dez anos caminhando Ao lado de São José

Acompanham outros Santos Neste roteiro de fé

Louvando e agradecendo A Deus e a Jesus de Nazaré

São Severino descia Numa carroça enfeitada São Vicente acolhia Já no meio da estrada Indo encontrar com Maria E completar a jornada

Mituaçu era o final Desta boa caminhada Mas em respeito aos idosos O percurso foi concentrado Aqui na Ponte dos Arcos Deste rio maltratado

Depois com o passar dos anos Houve a necessidade

De alcançar todo o Vale E sua comunidade Hoje o cortejo é maior Pra nossa felicidade

São José e Santo Antônio São Severino, São Sebastião

São Vicente e Santo Expedito E Nossa Senhora da Conceição Juntos com Aparecida

Nesta grande celebração Apesar das dificuldades Temos que comemorar Mesmo se o Santo cair Ou o cavalo empacar E se falta o carroceiro? É só as carroças emendar

Parabéns a todos nós Que viemos prestigiar Estamos juntos e misturados Neste belo caminhar

Juntando as nossas forças Pra este Vale preservar!

Essa poesia de mestra Judite, além de celebrar a Caminhada de São José, traz à tona uma questão fundamental que permeia a conformação da identidade dos moradores do Vale do Gramame, ou seja, a preservação da bacia do Rio Gramame. Como veremos mais adiante, é ponto comum entre os mestres o imaginário em torno dos rios e suas histórias, bem como a existência de um rio vivo de outrora em contraposição a um rio doente e quase morto de agora.

4.1.6. Mestres Cirandeiros: “O representante da cultura do Vale do Gramame aqui sou

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