• Nenhum resultado encontrado

Museu: lócus de memória e poder, carregado de signos e esquecimentos

REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES LOCAIS

1.1. Museu: lócus de memória e poder, carregado de signos e esquecimentos

A representação de memórias coletivas é tarefa árdua e fortemente marcada por questões ideológicas, pois necessariamente nesse processo estão presentes os conflitos que envolvem disputas políticas, econômicas e simbólicas que permeiam o jogo social de constituição das narrativas identitárias. M. Bakthin adverte que “toda imagem artístico- simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico” (2009, p. 31) e que esse objeto físico converte-se em signo. Esse objeto, sem deixar de fazer parte da sua realidade material, pode passar a refletir e refratar uma outra realidade. Desta forma, não pode ser desconsiderado o poder de que se revestem os museus e os objetos museológicos, estes enquanto signos significantes, na constituição de discursos homogeneizantes, que contribuem para a manutenção e perpetuação de um status social opressor, ou, de outro lado, de discursos reflexivos e críticos, que não concebem o indivíduo como um sujeito passivo, mas um sujeito social que age e transforma a realidade.

Nessa linha de pensamento, Nestor García Canclini (1997), em sua obra Culturas Híbridas, expõe que, nos processos sociais, as relações altamente ritualizadas com um único e excludente patrimônio histórico – nacional ou regional – dificultam o desempenho em situações mutáveis, as aprendizagens autônomas e a produção de inovações. O tradicionalismo substancialista incapacita para viver no mundo contemporâneo, que se caracteriza por sua heterogeneidade, mobilidade e desterritorialização. As últimas ditaduras latino-americanas acompanharam a restauração da ordem social intensificando a celebração dos acontecimentos e símbolos que os representam: a comemoração do passado “legítimo”, daquele que corresponde à “essência nacional”, à moral, à religião e à família. Participar da vida social é agir de acordo com um sistema de práticas ritualizadas que deixam de fora o “estrangeiro”, o que desafia a ordem consagrada e o ceticismo.

O museu, continua García Canclini, é a sede cerimonial do patrimônio, o lugar onde é guardado e celebrado, onde se reproduz o regime semiótico com que os grupos hegemônicos o organizaram: é um palco-depósito que o contém e um palco-vitrine que o exibe. Entrar num museu não é simplesmente adentrar um edifício e olhar suas obras, mas também penetrar em um sistema ritualizado de ação social. Inúmeros museus, instituídos em regimes totalitários, são assim caracterizados, e procuraram ser representativos da nação, constituídos de um discurso homogeneizante da sociedade, ao mesmo tempo excludente e de acordo com uma historiografia oficial que não leva em conta as distintas vozes dos distintos atores sociais. Mas o autor também adverte que os museus, como meios de comunicação de massa, podem desempenhar um papel significativo na democratização da cultura e na mudança do conceito de cultura. As mudanças na concepção do museu impedem continuar falando dessas instituições como simples depósitos do passado.

Podemos explorar o poder simbólico dos museus a partir das explicações da origem do seu termo. Uma das acepções defende que Museu era filho de Orfeu (CURY, 2005). Como o pai, Museu era poeta e tinha o poder de ver e celebrar a poesia que está nas coisas. Dessa acepção, podemos inferir que o museu não coleta coisas, mas a poesia que está nas coisas. E não guarda objetos. Dá vida ao sentido (ou à poesia) que está nos objetos. Não importa a guarda do objeto pelo objeto em si, mas pelo significado que ele carrega. O que vale é o objeto enquanto signo significante, na esteira como adverte M. Bakthin (2009). É nesse caminho que Marília Xavier Cury considera:

O museu de que falo não é o lugar, o templo das musas que gerou a conceituação de museu-depósito de coisas. O Museu de que falo pensa no sentido das coisas no mundo e na vida e (re)elabora constantemente sua missão poética. (CURY, 2005, p. 22 – grifos originais).

E complementa:

A musealização está estritamente ligada à preservação: musealizamos porque damos valor à poesia que está nas coisas e as preservamos porque queremos guardá-las – as coisas que detém a poesia que valorizamos – como referências. (CURY, 2005, p. 31).

A poesia ou o significado que extrapola a concretude do objeto museológico demonstra a vitalidade em seu poder de comunicar, dar sentido e, consequentemente, construir discursos. O objeto museológico tem algo além de sua forma, seu material, sua cor, seu tamanho, enfim sua estrutura. O objeto é constituído de significado, de símbolos, de

sentimentos, enfim de poesia. É a “danação do objeto”, de que fala Francisco Régis Lopes Ramos (2008), ao explicar que nas exposições museológicas, os objetos perdem as suas funções originais, as vidas que tinham fora do museu, e que lá passam a ter outros valores, regidos pelos mais variados interesses. Ao entrar no espaço expositivo, complementa, o objeto perde seu valor de uso: uma cadeira não serve mais para sentar, assim como a arma de fogo abandona a sua função utilitária. Lá eles ganham outro significado, que pode ser construído e reconstruído, a partir de quem monta a exposição e de quem a visita, ou seja, de quem faz a sua leitura.

Não podemos, entretanto, cair na ingenuidade de que a poesia que está nos objetos e, por conseguinte, nos museus, nos serve apenas para o deleite do espírito. Os museus, ao mesmo tempo em que nos servem como espaços suscitadores de sonhos, como sugere Walter Benjamim (2006), também podem ser espaços que propiciam a tirania, opressão e exaltação de regimes que escravizam o homem e contribuem para a manutenção de um status quo de dominação de parcela de classes hegemônicas da sociedade.

Mikhail Bakthin (2009) defende que nenhum texto é monofônico e a polifonia cria os diálogos que confrontam ou reforçam os sentidos que circulam em determinado momento histórico. O mesmo serve para os discursos museológicos, cujas narrativas construídas em suas exposições são plurissignificativas, cabendo ao visitante fazer sua leitura de forma atenta e crítica, buscando abstrair a ideologia12 que está subjacente ao discurso exposto.

Para além da poesia, há outra explicação para o surgimento do termo museu que o remete a um lugar ao mesmo tempo de memória e de poder. O termo museu vem da palavra mouseiom, que era o templo das musas, na Grécia antiga (CHAGAS, 2009). As nove musas, protetoras das artes e da História, eram filhas de Zeus, deus supremo e todo poderoso, e de

12 Não busco aqui fazer uma reflexão teórica sobre o que é ideologia e as inúmeras acepções que tomou em diferentes contextos e pensadores. Ótimo trabalho nesse sentido foi produzido por Leandro Konder, em sua obra

A questão da ideologia (2002). Entretanto, como síntese do que aqui trato como ideologia, faço referência à

concepção proposta por Marilena Chaui: “A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros de uma sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um conjunto de ideias ou representações com teor explicativo (ela pretende dizer o que é a realidade) e prático ou de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuí-las à divisão da sociedade em classes, determinada pelas divisões na esfera da produção econômica. Pelo contrário, a função da ideologia é ocultar a divisão social das classes e a exploração econômica, a dominação política e a exclusão cultural, oferecendo aos membros da sociedade o sentimento de uma mesma identidade social, fundada em referenciais unificadores, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Justiça, a Igualdade, a Nação.” (CHAUI, 2013, pp. 117-118).

Mnemosine, deusa da memória ou das reminiscências. Portanto, mouseiom era o templo ou herdeiro do poder e da memória.

Essa relação do museu não só como um espaço de memória, mas sobretudo como um espaço de poder e como reflexo e resultado dos distintos atores sociais que o constroem e reconstroem, é bastante explorada pelo poeta e museólogo Mario Chagas (2009). Em sua obra, “A imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro”, o autor faz uma abordagem do campo da museologia com o campo das ciências sociais a partir desses três intelectuais, que se dedicaram a pensar a sociedade brasileira e também a criar museus. Explica que o recorte utilizado sugere a existência de diferentes matrizes da imaginação museal, nascidas, crescidas e desenvolvidas num terreno adubado pelas relações entre poder e memória, que estão espelhadas nas práticas e teorias da museologia contemporânea.

Ao compreender os museus como “microcosmos sociais”, Chagas reconhece os múltiplos significados que os objetos museais podem ter e, por conseguinte, como podem ser utilizados para construir diferentes discursos representativos das memórias e identidades dos grupos sociais.

Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. No entanto, dois ou mais sentidos podem ocupar um mesmo corpo patrimonial, uma vez que eles estão na dependência do lugar social que ao corpo é destinado. Esse lugar social, contudo, é dado pelas relações dos indivíduos e dos grupos sociais com o referido corpo, do que decorrem o seu alto grau de volatilidade e seu baixíssimo grau de fixidez. A capacidade de os corpos patrimoniais encarnarem múltiplos sentidos contribui para a ampliação de tensões e conflitos. (CHAGAS, 2009, pp. 43-44)

É nessa perspectiva que ele procura “olhar não apenas para o litoral dos museus, ou seja, para a sua bela face de contato com o público, mas também para o seu sertão, para as correntes de forças e ideias que se movimentam em seus intestinos” (CHAGAS, 2009, p. 24). Stuart Hall (2003), ao abordar a relevância de Antonio Gramsci para o estudo da raça e etnicidade, aponta que o pensamento do intelectual italiano engloba as novas formas de conceituar os sujeitos da ideologia, recusando um sujeito ideológico unificado e predeterminado. Complementa que “a natureza multifacetada da consciência não é um fenômeno individual, mas coletivo, uma consequência do relacionamento entre ‘o eu’ e os discursos ideológicos que compõem o terreno cultural da sociedade” (HALL, 2003, p. 324). A

pluralidade dos “eus” e das identidades é questão crucial na construção dos discursos museológicos e como ela está espelhada nas narrativas expositivas.

Em análise sobre a questão da ideologia em Adorno e Horkheimer, Leandro Konder (2002) mostra que, para esses autores, a ideologia dominante e sua capacidade de impingir às pessoas uma “ilusão de harmonia” adquiriram um poder muito superior no século XX graças à criação da indústria cultural. A indústria cultural, cujas consequências são bastante exploradas por esses dois pensadores, assegurou a sobrevivência do capitalismo e contribuiu para a sua reprodução e renovação. A produção cultural em escala ampliada investiu na formação de um vasto público consumidor de comportamento passivo e desprovido de espírito crítico. Como Konder cita, nas palavras de Adorno e Horkheimer: “O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio” (Apud KONDER, 2002, p. 82).

Essas questões tratadas pelos pensadores clássicos, embora estejam no contexto da indústria cultural, podem ser trazidas para a análise da ideologia subjacente nos discursos museológicos. Não são feitos apenas da junção ou aglomeração de objetos distintos entre si ou de regras expográficas padronizadas e previamente determinadas e neutras. Como um texto, os circuitos expositivos dos museus constituem uma unidade de sentido significativa, que busca comunicar-se com o seu público, exigindo dele, dependendo do caso, uma atuação passiva ou reflexiva e crítica.

Olhar os museus a partir do sertão é compreendê-los de forma crítica, é analisar como os sujeitos sociais estão ali representados e verificar de que forma os discursos museológicos foram construídos e como estão sendo apropriados pelos usuários do museu. É buscar compreender como o objeto museológico, enquanto signo significante, é carregado de ideologias e que as narrativas neles refletidas são resultados de processos sociais que envolvem disputas entre o que é digno de ser lembrado e o que está fadado ao esquecimento. Construir uma memória coletiva de determinados grupos sociais também é construir um discurso e implica considerar que ela é resultado de práticas sociais e da relação entre os indivíduos, em que estão inerentes os conflitos e disputas de poder.

O estudo da memória como um fenômeno social ganha corpo e se instaura como um campo de pensamento nas ciências sociais no início do século XX, a partir das investigações e reflexões do sociólogo francês Maurice Halbwachs, sobretudo em suas obras Os contextos sociais da memória, de 1925, e A memória coletiva, publicada postumamente, em 1950, a partir de papeis deixados pelo autor. Discípulo da Escola Sociológica Francesa,

autor de uma obra sistemática sobre o caráter social da memória e um rigoroso durkheiminiano, Halbwachs (2006) mostra que a memória só pode ser construída no seio do tecido social e que ninguém pode se lembrar realmente a não ser em sociedade. Em contraponto com a memória individual, esta é considerada como um ponto de vista sobre a memória coletiva, que muda segundo o lugar ocupado pelos sujeitos sociais e as relações que mantêm.

Seguindo o pensamento de E. Durkheim, Halbwachs não dá ênfase aos jogos de disputa e conflitos em torno da construção dessa memória coletiva. Ela, na verdade, representa os consensos, mesmo que mínimos, ou uma combinação dos conjuntos coletivos que delineiam o bom funcionamento do tecido das relações sociais:

Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 2006, p. 39).

Apesar de a questão dos conflitos sociais não ser ponto central nas investigações halbwachianas, elas serviram de base para uma linha de pensamento da memória como fenômeno social em que vários autores avançaram nas reflexões acerca das disputas e tensões que envolvem a construção coletiva das memórias, como Pierre Nora, Michel Pollak, Paul Ricoeur, Jöel Candau, entre outros.

Além disso, há que se considerar os limites da representação das memórias coletivas. Jô Gondar (2005) chega a apresentar uma proposição de que a memória não pode se reduzir à representação. Em sua argumentação, leva em consideração que as representações são resultado de jogos de força bastante complexos, que envolvem combinações e enfrentamentos que se alteram constantemente. Ao se reduzir a memória ao campo das representações, são desprezadas as condições processuais de sua produção. Desta forma, concebe a memória social como um processo e que a representação é a cristalização de uma memória legitimada em determinada coletividade. Complementa a autora que “a memória, contudo, é bem mais que um conjunto de representações; ela se exerce também em uma esfera irrepresentável: modos de sentir, modos de querer, pequenos gestos, práticas de si, ações políticas inovadoras” (GONDAR; DODDEBEI, 2005, p. 24). Todas as representações, desta

forma, são inventadas, e deve-se ter em mente a invenção e a produção do novo na concepção da memória.

João Pacheco de Oliveira (2011), ao fazer uma reflexão sobre a representação em museus etnográficos, a partir da análise da coleção “Guido”, sob à guarda do Museu Nacional, alerta sobre os limites das representações dos museus:

Através de suas salas e galerias um museu presentifica coletividades que não estão lá, lhes atribui sentidos, valores e intenções. Retirados das aldeias, dos usos rituais e cotidianos, os objetos tendem a transformar-se artificialmente em exemplificações de entidades abstratas (o povo x, a cultura y, a sociedade z), desvinculadas da práxis histórica e engessadas dentro de um processo em que a criatividade e a variação não podem ser refletidas. As iniciativas museológicas correm sempre o risco de vir a constituir-se em intervenções técnicas de natureza classificatória, que tem como domínio próprio uma mimesis de coletividades ausentes, ao mesmo tempo em que consagra uma relação de exclusão de natureza essencialmente política. (OLIVEIRA, 2011, p. 56-57).

Para que isso não se reproduza nos museus etnográficos, Pacheco defende que os profissionais dessas instituições devem fazer uso dos recursos que detêm para que as populações observadas possam exercitar suas memórias e conhecimentos, permitindo, assim, que também sejam publicizadas as “outras histórias” que constroem.

O que deve ser lembrado e necessariamente o que precisa ser esquecido sempre irão permear os processos de constituição das memórias e identidades coletivas e de suas representações, sobretudo na instituição museu, lócus por excelência dos suportes de memórias. Os conflitos, disputas e a formatação ideológico-política da construção das narrativas dessas representações são aspectos essenciais a serem levados em consideração no jogo social de conformação de memórias coletivas.

Nesse jogo, a luta da memória contra o esquecimento é premente nas discussões travadas entre os cientistas sociais, desde M. Halbwachs, que se ocuparam em refletir sobre os quadros sociais da memória. No campo dos museus, essa questão torna-se crucial tendo em vista que as representações coletivas podem ser responsáveis tanto por processos de inclusão como de exclusão social. Myrian Sepúlveda dos Santos (2003), ao fazer referência ao romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, traz à tona que a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. Essa tríade, que relaciona

memória, esquecimento e poder, será o fio condutor das reflexões trazidas a partir dos autores Ecléa Bosi, Jöel Candau e Paul Ricoeur, cujas perspectivas consideram a memória como um elemento social e o jogo dos conflitos sociais em torno do processo de seleção, construção e constituição de memórias coletivas. E no jogo de disputas e conflitos que envolvem as relações sociais de constituição das memórias coletivas, cabe compreender a concepção de capital simbólico que permeia o pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu.

Outline

Documentos relacionados