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REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES LOCAIS

1.2. M Halbwachs e H Bergson: uma tessitura a partir de Ecléa Bos

Nada é mais oportuno do que a metáfora de Ecléa Bosi para se apreender a definição de lembrança e, por extensão, da memória: “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito” (BOSI, 1994, p. 81). Em seu célebre estudo sobre a memória de velhos, com pano de fundo a cidade de São Paulo, a autora traz à tona um aparato teórico bastante profundo sobre o campo da memória, dentro dos pressupostos da psicologia social, pautado, sobretudo, nas obras Matiére et mémoire (Matéria e memória), do filósofo Henri Bergson, e Les cadres sociaux de la mémoire (Os quadros sociais da memória) e La mémoire collective (A memória coletiva)¸ do sociólogo Maurice Halbwachs.

Bosi explica que Bergson busca opor vigorosamente a ideia de percepção do fenômeno da lembrança e que essa oposição entre o perceber e o lembrar é o eixo do livro do filósofo francês, cujo título já prenuncia a essência dessa distinção: matéria x memória. Em suas reflexões, a percepção de cada imagem formada no indivíduo está mediada pela imagem, sempre presente, de seu corpo: “O sentimento difuso da própria corporeidade é constante e convive, no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito” (BOSI, 1994, p. 44). E isso se dá dentro de um esquema corporal preso ao “momento atual, imediato, e se realimenta desse mesmo presente em que se move o corpo em sua relação com o ambiente” (BOSI, 1994, p. 44).

Por meio da lembrança, os dados imediatos e presentes dos nossos sentidos são misturados a reminiscências de nossa experiência passada. Essas lembranças deslocam nossas percepções reais, permitindo à memória “a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere[indo] no processo ‘atual’ das representações” (BOSI, 1994, p. 46). A autora continua assim sua explicação:

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando- se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas

últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 1994, p. 46)

Ao considerar que o passado se conserva e atua no presente, mas não de forma homogênea, Bergson propõe uma distinção entre a memória-hábito e a lembrança pura. Em sua essência, a memória-hábito se trata da memória dos mecanismos motores, adquire-se pelo esforço da atenção e repetição dos gestos ou palavras: “A memória-hábito faz parte de todo o nosso adestramento cultural” (BOSI, 1994, p.49). Por sua vez, há lembranças que ocorrem independentemente de quaisquer hábitos, que se constituem “autênticas ressurreições do passado” (BOSI, 1994, p. 48). A lembrança pura traz à tona uma imagem-lembrança relacionada a um momento único, irreversível da vida: “A imagem-lembrança tem data certa: refere-se a uma situação definida, individualizada, ao passo que a memória-hábito já se incorporou às práticas do dia a dia” (BOSI, 1994, p. 49).

Em suas reflexões, Bergson, entretanto, não se ateve aos quadros sociais da memória, que é a base do pensamento do durkheminiano Maurice Halbwachs. O enfoque do pensador de tradição sociológica francesa é justamente analisar e considerar os fenômenos sociais condicionantes da construção da memória. Parte do pressuposto de que ela depende da relação do indivíduo com as instituições formadoras do sujeito, como família, escola, Igreja, profissão, e com os demais grupos de sua convivência e referência.

A exemplo de Bergson, Halbwachs entende que a memória tem no momento presente a sua base, mas coloca em xeque a possibilidade da existência de uma lembrança- pura ou de uma autêntica ressurreição do passado por meio da memória. Como explica Myrian Sepúlveda (2003), tanto Bergson quanto Halbwachs rejeitaram a ideia de que a memória fosse uma atividade meramente física, mas o sociólogo defendeu que as imagens não estavam relacionados ao espírito humano ou a uma consciência interna pura do indivíduo, mas a representações coletivas estabelecidas por grupos sociais.

A objetividade atribuída às representações coletivas vai marcar o trabalho do sociólogo. Em Les cadres, as principais afirmações sobre a memória são três: a crença de que memórias só podem ser pensadas em termos de convenções sociais, denominadas quadros sociais da memória; a abordagem a estas convenções a partir do mundo empírico observável, distante, portanto, das intenções dos indivíduos; e, a afirmação de que o passado que

existe é apenas aquele que é reconstruído continuamente no presente. (SANTOS, 2003, p. 47).

A memória é construída no momento presente a partir dos materiais que estão à nossa disposição e por meio da troca, da relação com os outros sujeitos. Nossas lembranças estão pautadas pelas lembranças dos outros e pela experiência acumulada que vivenciamos. Pensando segundo Halbwachs, um livro nunca poderá ser relido da mesma forma. Um filme nunca será revisto igualmente. Um local que visitamos nunca será o mesmo quando lá voltarmos. A percepção se modifica, as nossas lembranças são alimentadas pelas novas experiências que tivemos e pelas lembranças dos outros. Com sua imensa sensibilidade, o poeta Manoel de Barros (2008) consegue transfigurar essa peculiaridade da memória no seu poema em prosa Achadouros:

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa. Aquilo que negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os holandeses, na fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintais para esconder suas moedas de ouro, dentro de grandes baús de couro. Os baús ficavam cheios de moedas dentro daqueles buracos. Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo da lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. Hoje encontrei um baú cheio de punhetas. (BARROS, 2008, p. 67).

A memória da infância do poeta é carregada pelas experiências íntimas que teve ao longo da vida. As memórias de sua infância, relatadas neste e em outros poemas, são reconstruídas continuamente no presente. E é justamente pelo motivo da intimidade que, na percepção que detém do quintal de sua infância, no momento presente, faz com que ele seja tão grande que chega a ser maior que a cidade. Compõem também suas memórias os relatos

da negra Pombada, que contava histórias fantasiosas, com o um quê de verossimilhança, sobre fatos históricos relacionados à dominação holandesa no Nordeste brasileiro. Sua memória é um diamante bruto lapidado pelo espírito, que faz do poeta um caçador de achadouros de infâncias e as pedras do seu quintal maiores que as outras pedras do mundo.

Como diz Bosi, “a menor alteração do ambiente atinge a qualidade íntima da memória. Por essa via, Halbwachs amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a memória coletiva” (BOSI, 1994, p. 55). Por sua vez, a utopia de Bergson, a da memória pura, é mais um limitador da representação da memória, mesmo considerando a linguagem, que, para Halbwachs, é o instrumento primordialmente socializador da memória. As convenções verbais, segundo ele, “constituem o quadro ao mesmo tempo mais elementar e mais estável da memória coletiva” (BOSI, 1994, p. 56). Trazendo essa discussão para o campo dos museus, as narrativas expográficas configuram-se uma espécie de linguagem ou, melhor dizendo, utilizam-se do instrumento da linguagem, por meio de textos verbais e iconográficos, para construir discursos que buscam representar memórias coletivas ou, dito de outra forma, construir metamemórias, na perspectiva de Candau (2012).

Ao citar Frederic Charles Bartlett, importante pensador da psicologia social, Bosi esclarece que esse autor “postula que a ‘matéria-prima’ da recordação não aflora em estado puro na linguagem do falante que lembra; ela é tratada, às vezes estilizada, pelo ponto de vista cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado” (BOSI, 1994, p. 64). Mais uma vez, reforça-se, desta forma, a importância dos quadros sociais nos processos de construção das memórias, mas também coloca à tona como se dá a modelagem ideológica do seu processo de construção e representação. Isso é o que Bartlett vai chamar de “convencionalização”. Como esclarece Myrian Sepúlveda dos Santos, Bartlett afastou-se das teorias sobre memória defendidas pelos psicólogos de sua época e foi à antropologia social que se atrelou para o desenvolvimento de seus estudos sobre a memória e as determinações de convenções sobre o processo cognitivo. Defendeu a tese de que a memória envolve um processo ao mesmo tempo adaptativo e voltado para a busca de sentido. Para Bartlett, as convenções sociais pautam as atitudes individuais e as pessoas têm condutas diferentes dependendo de como se relacionam com as crenças e valores, ou seja, as condutas são sociamente determinadas e só acontecem e fazem sentido para um determinado grupo. Nessa perspectiva, a memória coletiva está presente em condutas desenvolvidas pelos indivíduos em determinado contexto. Elementos de uma cultura, portanto, podem ser apropriados de uma

forma diferente ou sofrer mudanças no processo de incorporação quando se movem de um grupo para outro13 (SANTOS, 2003, pp. 54-59).

As reflexões que Bosi traz a partir dos pensadores da memória coletiva, em determinados pontos antagônicas entre si, mas principalmente complementares, são bastante pertinentes na análise da formação e conformação dos museus, sejam os que se prezam a representar memórias nacionais ou os que buscam representar memórias locais. O que caracteriza a atividade mnêmica da lembrança, em suma, é a sua essência social, a partir das reminiscências dos sujeitos construídas socialmente no presente. Nas palavras de Bosi:

Um dos aspectos mais instigantes do tema é o da construção social da memória. Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros “universos de discurso”, “universos de significado”, que dão ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos. O ponto de vista do grupo constrói e procura fixar a sua imagem para a história. Este é, como se pode supor, o momento áureo da ideologia com todos os seus estereótipos e mitos. (BOSI, 1994, p. 67). A representação da memória segue o mesmo caminho e as narrativas de memórias coletivas vão estar carregadas de discursos e significados criados, reinterpretados e inventados pelo grupo, sem deixar de considerar, é claro, os jogos de poder que alimentam as disputas e os conflitos das relações sociais dentro desse grupo e a força de dominação dos maiores detentores de capital simbólico (BORDIEU, 2005) nesse jogo. O pensamento de Halbwachs, que se reflete nos trabalhos de Bosi, não se detém nesse jogo de disputas e conflitos em torno da construção das memórias entre os atores sociais. Em Memória e socieade: lembrança de velhos, de Bosi, observa-se uma certa unidade nos diferentes relatos memorialistas dos entrevistados. Por sua vez, o antropólogo Joël Candau avança em analisar os conflitos que permeiam os quadros sociais da construção de memórias, para ele, supostamente coletivas. O tema da representação da memória e de sua relação com a construção de identidades é base do seu pensamento.

13 Como exemplo para ilustrar suas considerações, Bartlett usa o caso da visita de um grupo de chefes swazi, de Swaziland, à Inglaterra com a finalidade de chegar a um acordo com autoridades britânicas sobre disputas de terras. Ao retornar para casa e perguntados sobre quais lembranças haviam trazidos da Inglaterra, o grupo citou a imagem de um policial inglês com a mão levantada controlando o trânsito. O gesto banal no trânsito, para os ingleses, significava, para os swazi, uma saudação a companheiros e visitantes (SANTOS, 2003, pp. 58-59).

1.3. Memórias supostamente coletivas e identidades construídas: o pensamento de

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