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Início do processo: os ares da Museologia Social e o papel da Rede de Educadores em Museus da Paraíba – REM/PB

CONHECENDO E TECENDO O CAMPO: O VALE DO GRAMAME, A ESCOLA VIVA OLHO DO TEMPO E O SEU MUSEU COMUNITÁRIO

3.3. O Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo: trajetória e narrativa expositiva

3.3.1. Início do processo: os ares da Museologia Social e o papel da Rede de Educadores em Museus da Paraíba – REM/PB

Em 2009, aconteceu no Museu de Arte Assis Chateaubriand, em Campina Grande, a oficina “Ação Educativa em Museus”, ministrada pela museóloga carioca Bárbara Hardium. Essa oficina fazia parte do Programa de Capacitação e Formação em Museologia promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus - Ibram, conforme descrito no capítulo anterior, por meio do qual eram oferecidas oficinas de capacitação, em todo o país, em diversas áreas de atuação no campo dos museus. O estudo sobre a influência e o impacto dessas oficinas é um fato que precisa ser aprofundado, em pesquisa específica, tendo em vista que, quando da sua realização de forma regular entre os anos de 2003 e 2010, disseminavam informações e ideias em lugares onde o poder público, na sua esfera federal, raramente atingia. É comum, no decorrer dessas oficinas e após a sua conclusão, que sejam geradas articulações locais e iniciativas relacionadas a práticas e políticas museológicas, que tenham um resultado empírico e mudança de uma determinada realidade.

Como resultado da oficina realizada em Campina Grande e seguindo a tendência de vários Estados brasileiros, os participantes resolveram implementar a Rede de Educadores em Museus da Paraíba – REM/PB. As redes de educadores em museus não possuem vínculo institucional com o poder público e têm como finalidade reunir educadores e outros profissionais de museus, com vistas a compartilhar experiências, estudar autores que abordam a temática de educação em museus e realizar oficinas e seminários de capacitação, a fim de qualificar a atuação desses profissionais.

Na Paraíba, a REM/PB teve forte atuação entre os anos de 2009 e 2012. Eram realizados aproximadamente 8 encontros anuais, sempre de forma intinerante, de modo a envolver profissionais de museus de outras cidades e a conhecer a realidade dos diferentes

museus. Uma parte dos encontros era destinada a estudo teórico e a outra para visita e análise do trabalho desenvolvido pela instituição que recebia o encontro.

Um diferencial que aconteceu com a REM/PB foi o fato de, ao longo do processo, ter assumido uma postura extremamente política no Estado, em função de o governo local não possuir uma política pública instituída para a área dos museus. É nesse sentido que Karlene Braga Medeiros (2013), em sua pesquisa sobre a os usuários internos dos museus paraibanos a partir dos integrantes da REM/PB, também indica a ampliação da abrangência do seu campo de atuação:

A carência de apoio de entidades privadas e públicas, dos governos estadual e municipal, além da pouca articulação do setor museológico na Paraíba, influenciou a REM/PB, forçando uma mudança do seu perfil. Desta forma, a Rede ampliou seus objetivos, inicialmente vinculados à educação em museus. Esta ampliação pôde ser verificada na diversidade de suas pautas de trabalho. Durante os encontros, os membros pediam esclarecimentos sobre temas diversos, desde financiamentos para museus (explicação/elaboração de projetos para editais) a auxílio na preparação de exposições. Uma reclamação constante referia-se à pouca valorização e participação da sociedade, considerando-as pequenas e pouco participativas. (MEDEIROS, 2013, p. 24).

Em nível nacional, a realidade era diferente. No ano de 2003, foi concebida e implementada a Política Nacional de Museus - PNM, que apresentava diretrizes para o setor e atuava na área de fomento, capacitação e gestão do campo museal, o que exigia uma atuação nesse campo por parte dos Estados, de modo que pudessem participar do Sistema Brasileiro de Museus – SBM, criado no ano de 2004.

A Paraíba, em comparação com outros Estados, sempre esteve a reboque dessa política nacional. A ausência de uma política local para o setor acabou demandando da REM/PB o envolvimento nos debates dos rumos da PNM. Desta forma, a REM/PB, para além de seu papel eminentemente técnico e pedagógico, assumiu um papel político devido à omissão do governo estadual.

Os encontros da REM/PB, dos quais eu participava e fazia parte da equipe de coordenação, também foram importantes para a aproximação de diferentes instituições, que até então costumavam atuar sem qualquer articulação. Esses encontros são ressaltados, por mestra Doci e pela griô aprendiz Penhinha (Maria da Penha Teixeira de Souza), como cruciais

para a atuação da Evot e para sua aproximação com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.

Na formação inicial da REM/PB, a mestra Doci era a representante da Evot, participando das discussões e da concepção de como a rede iria atuar. A Evot, inclusive, sediou um dos primeiros encontros e apresentou os trabalhos que desenvolvia na valorização dos patrimônios e referências culturais da região do Vale do Gramame.

Doci ressalta que os encontros da REM/PB foram bastante representativos para a Evot e que ali se “encantou”. Destaca especialmente um dos primeiros encontros da REM/PB, do qual Marcelle Pereira, fundadora da REM/RJ e então Coordenadora de Museologia Social e Educação do Ibram, participou como convidada:

Quando vi que ela [Marcelle] vinha, eu disse: ‘eu vou’. Chegando lá, vi que tinha muitas pessoas preocupadas com a questão da memória, muitas pessoas preocupadas em fazer esse diálogo do passado com o presente. Aí pensei: “então estou em casa”. (Mestra Doci. Entrevista concedida em 20/11/2014). Nesse momento, Doci vinha preparando a educadora social Penhinha para assumir a linha do patrimônio e memória dentro da Evot, por perceber que gostava bastante de atuar com os mais velhos e trabalhar com as questões relacionadas ao campo das memórias. Deste modo, ainda em 2009, Penhinha passou a representar a Evot nos encontros da REM/PB.

Da mesma forma quando ingressou na Evot, nos primeiros encontros de que participara na REM/PB, Penhinha era bastante fechada e pouco falava. Mas quando passou a participar ativamente, tornou-se uma figura chave e referência de atuação com o patrimônio, sendo inclusive eleita para integrar a equipe de coordenação da REM/PB posteriormente.

Recordo-me claramente do primeiro encontro em que ela começou a debater com o grupo em pé de igualdade com os outros integrantes. Nesse dia, o encontro foi realizado na cidade de Bananeiras, onde recentemente havia sido criado um museu municipal nas edificações da antiga rede ferroviária. Após a visita ao museu, apresentamos o documentário “Museu da Maré: memórias e (re)existências”, que relata a trajetória de luta e resistência dos moradores das comunidades das favelas da Maré, no Rio de Janeiro, e o processo de implantação do primeiro museu em favelas no país, segundo noticiaram alguns jornais40.

40 Na verdade, em 1996 foi criado do Museu da Limpeza Urbana, na favela do Caju, administrado pela Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro, e em 2005 a prefeitura do Rio de Janeiro instituiu o roteiro do Museu a Céu Aberto do Morro da Providência.

Ressalte-se, como já apontado anteriormente, que o Museu da Maré é um marco no Brasil e um ícone e referência da museologia social aqui praticada.

O filme tocou bastante Penhinha e, na hora do debate, ela comandou a discussão. Relacionou a experiência retratada no documentário com os trabalhos que vinha desenvolvendo nas comunidades do Vale do Gramame e falava com bastante propriedade de temas relacionados à atuação no campo das memórias e construção de identidades, mesmo sem conhecimento teórico aprofundado sobre o assunto. Penhinha, nesse momento, surgiu como um vulcão. Tudo o que estava preso entrou em erupção e a partir desse momento não se fechou mais.

Era muita coisa guardada... Quando a gente percebe que a gente pode falar, pode dizer o que a gente tá pensando, aí a gente se liberta. É como se fosse uma libertação, a gente se solta de uma prisão do medo, porque o medo prende a gente em todos os sentidos. E eu sou um grande exemplo disso. Eu tinha vergonha da minha cor, eu tinha vergonha dos meus cabelos, eu tinha vergonha da minha fala. E as vergonhas que eu tinha me deixavam presa. Quando percebi que eu não era feia, que a minha cor e a minha vida tinham um história, aí você começa a ter um alívio. É como se fosse uma descoberta. Você está se descobrindo. E também comecei a estudar o cotidiano da minha comunidade para tentar escrever sobre aquele cotidiano. Foi no momento daquele encontro [em Bananeiras] que cada um teve que falar sobre a sua vivência. (Penhinha. Entrevista concedida em 20/11/2014). Desde então, debate e fala com desenvoltura sobre sua atuação e sobre o trabalho com as memórias e valorização das identidades do Vale do Gramame:

O significado maior [do trabalho desenvolvido pela Evot] é ver a comunidade buscando e construindo sua identidade, pois isso não é como uma coisa pontual, é continuada. Eu sou um exemplo. Sou uma menina que fui aluna da instituição, que passei por todo esse processo de aceitamento da identidade, de aceitar que sou negra, de construir esse conceito pra mim, da minha origem e passar isso para as crianças. E também pros mais velhos ... Eu gosto muito de estar com os mais velhos, e a gente brinca muito dizendo que eu ensino a eles e eles me ensinam. Eu sempre busquei a autoestima dos mais velhos, em mostrar pra eles que o saber deles é importante, que ele precisa passar o saber dele e que a família dele, que está em casa e muitas vezes não valoriza, de repente desperta. Meu pai é um mestre, minha mãe é

uma mestra. E cria esse conceito de que a família, a identidade familiar precisa ser compartilhada.” (Penhinha. Entrevista concedida em 08/10/2014).

Sobre a REM/PB, ressalta que foi nesses encontros onde percebeu que outras pessoas, além dos muros da Evot, também se preocupavam com o trabalho com as memórias e patrimônio. E relembra bem quando mestra Doci lhe deu autonomia para participar dos encontros:

Foi no ano de 2010 que mestra Doci disse que cada um ia escolher o que gosta, uma área pra ir. E eu sempre gostei da área que falasse de história, na época eu pensava nas histórias. Mestra Doci começou na REM em 201041 e

teve um momento que ela disse que não ia mais, que alguém precisava ir. E a gente na roda, todo mundo se tremendo porque ninguém queria sair da Escola. Ninguém queria ir. Então ela disse que como quem cala consente, ela ia escolher alguém pra ir. Foi quando ela me escolheu pra ir. Como a gente tinha esse medo de sair, a gente não sabia o que ia encontrar lá fora. E essa era a provocação que ela fazia pra gente buscar o novo, sem ter medo do novo. E foi o momento em que fui para a primeira reunião em Campina Grande, no Museu do Futebol. Esse foi o primeiro contato que tive com a REM. (...)

Depois daí me encantei. Cheguei com um monte de ideias e com um monte de coisas pra fazer. E aí a gente começou com aquela ideia de juntar coisas pra fazer um espaço onde a gente lembrasse, a gente dizia assim, vamos fazer um espaço onde a gente lembre nossos avós, nossas histórias. Foi assim que a gente começou... Como a gente tinha acesso a pessoas que pensavam também como a gente [na REM], eu escutava as coisas lá e entendia de outra forma, mas associava ao que eu pensava com relação às coisas que a gente aprendia na Escola e na comunidade. (Penhinha. Entrevista concedida no dia 20/11/2014).

Essa foi a ideia inicial, o embrião da materialização, em um sistema de signos, do Museu Comunitário da Escola Viva Olho do Tempo. Em meio às discussões da REM/PB, muito influenciadas pelo campo da museologia social, em que se debatiam o pensamento de autores como Maria Célia Santos, Mário de Souza Chagas, Magaly Cabral, entre outros,

41 Nas memórias de Penhinha, mestra Doci começou a participar dos encontros da REM/PB no ano de 2010. Mas ela esteve presente no início da implantação da Rede, ainda em 2009.

surgiu a iniciativa de criar um museu comunitário que pudesse representar as memórias e referências culturais do Vale do Gramame, a exemplo do que foi feito com o Museu da Maré.

3.3.2. Implantação do Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo: a memória em ação

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