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Neste trabalho, oponho-me à abordagem positivista, a qual defende o tradicional postulado de “neutralidade” ou de distanciamento entre o sujeito e o “objeto” da pesquisa. O paradigma positivista insiste que um observador moralmente neutro, objetivo, lidará corretamente com os fatos. Como observa Christians (2006, p. 150), esse modelo “ignora a situacionalidade das relações de poder associadas ao gênero, à orientação sexual, à classe, à etnia, à raça e à nacionalidade”. Além disso, é um modelo hierárquico, em que o(a) cientista é visto em posição superior aos sujeitos pesquisados, sobrepondo-se o conhecimento profissional ao conhecimento local.

Um credo positivista que persiste incrustrado socialmente, apesar das gerações de críticas, é o de que, para serem “científicos”, os(as) pesquisadores(as) precisam cortar todos os vínculos com o que for observado. Contrariando a imparcialidade e a objetividade positivista, a abordagem qualitativa etnográfica, na qual este trabalho está situado, prescreve a inserção do(a) pesquisador(a) no grupo, comunidade ou cultura que pretende compreender e a dissolução da distância entre o(a) pesquisador(a) e os(as) participantes da pesquisa. Além disso, a subjetividade que o(a) pesquisador(a) leva ao campo deixou de ser um elemento perturbador a ser erradicado ou controlado e passou a ser visto como um conjunto de recursos. Significa reconhecer a importância da adoção, por parte dos(as) pesquisadores(as), de uma posição reflexiva em relação a seus projetos.

No presente estudo, uma questão que precisa ser debatida é o fato de a pesquisadora fazer parte da categoria que compõe o fenômeno estudado, como estudante de Mestrado na mesma instituição dos sujeitos pesquisados, mesmo sendo de programas diferentes: mestrado acadêmico e mestrado profissional. Por um lado, essa aproximação representa uma vantagem, como postula Angrosino (2009, p. 58), “os etnógrafos confiam mais na observação de cenários onde eles próprios sejam conhecidos dos participantes e onde possam se envolver diretamente nas atividades”. Por outro lado, presume-se um grande desafio que tive que enfrentar: o de zelar por meu papel de pesquisadora em todas as etapas da pesquisa, não permitindo que o meu papel social de mestranda interferisse nos resultados.

nem problemas para ter acesso aos(às) mestrandos(as). O que é verdade somente em parte, pois embora o meu vínculo com a instituição tenha me garantido acesso facilitado ao locus de pesquisa, enfrentei desafios de aceitação por ser um membro externo do grupo. Como discuti na seção anterior, acredito que o fato de eu fazer parte do Mestrado Acadêmico tenha gerado a impressão de que eu estava ali como alguém que se julga superior, com o intuito de avaliar o programa de mestrado profissional. O meu interesse, porém, não é o de avaliar o Mestrado Profissional em Letras ou fazer qualquer julgamento prescritivo dos participantes, mas o de conhecer as mudanças nas suas identidades, relacionadas aos letramentos específicos que estão adquirindo na formação continuada. Dessa forma, o fato de a pesquisadora estar no mesmo nível acadêmico dos participantes não traz implicações para os resultados do estudo. A posição do fazer científico defendida aqui é aquela que considera pesquisador(a) e pesquisados(as) lado a lado e não em uma relação assimétrica de poder.

Assim, sustento que não há problema em fazer parte da categoria social que compõe o fenômeno estudado, e que posso perfeitamente relacionar-me de maneira próxima com os participantes da pesquisa de maneira “horizontal” e igualitária, em vez de adotar uma forma “vertical” e autoritária, e posicionar-me ao lado deles/delas, partilhando de suas angústias, seus conflitos e desafios enfrentados, tanto na formação continuada quanto na atuação docente.

Faz-se necessário que o(a) pesquisador(a) posicione-se em relação aos participantes. A esse respeito, Magalhães (2006, p. 89) argumenta que “não há como defender o distanciamento na relação entre pesquisadores ou pesquisadoras e pesquisados”. Essa preocupação com o ‘outro’ leva o(a) pesquisador(a) a refletir sobre a seguinte questão: “A quem favorecem os resultados da pesquisa?”. O ideal é que os resultados da investigação contribuam não apenas para produzir conhecimento novo e conferir ao(à) pesquisador(a) títulos, honrarias e ascensão salarial, mas principalmente para atender às demandas dos participantes e resolver alguns de seus problemas. Na presente pesquisa, pretendo refletir sobre os problemas específicos do contexto do ensino-aprendizagem e da formação de professores e, assim, contribuir para possíveis mudanças futuras.

Magalhães (2006) examina alguns problemas éticos na pesquisa, entre eles o caso em que, nas representações discursivas, os participantes são posicionados(as) de forma problemática para sua subjetividade, sua identidade pessoal e a identidade do grupo local. Pensando no estudo que agora empreendo, cabe refletir a respeito de pesquisas sobre os(as) docentes, que não são feitas a seu favor, mas os tomam como objetos de análise, esboçam críticas sem retorno e acabam por reproduzir o discurso de responsabilização dos(as) docentes.

Estou de acordo com Radhay (2008), para quem a etnografia não deve ser um processo de criar ou reforçar estereótipos e relações de poder existentes, mas de engendrar a transformação social.

A abordagem etnográfica possui uma preocupação primordial com a ética – o que implica respeitar a dignidade, a liberdade e a autonomia do ser humano. Compartilhando dessa preocupação, podemos afirmar que esta pesquisa não fere nenhum dos fundamentos éticos estabelecidos pela Resolução CNS 466/12, quais sejam:

a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida;

b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;

c) garantia de que danos previsíveis serão evitados; e

d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio humanitária.

Procuro também adequar-me aos códigos de conduta ética exigidos para pesquisadores profissionais que se preocupam em desenvolver uma postura humanizada para com os participantes e as participantes de sua pesquisa, incluindo as quatro diretrizes citadas

por Christians (2006, p. 146): consentimento informado, fraude,

privacidade/confidencialidade e precisão.

A preocupação ética com o consentimento informado está presente na pesquisa, tendo em vista que os sujeitos pesquisados são aqueles que concordaram voluntariamente em participar e que sua concordância está baseada em informações completas acerca da duração, dos métodos, dos possíveis riscos e da finalidade da pesquisa. Os códigos de ética mantêm uma posição consensual contrária à fraude; mantenho também essa postura, sem a intenção de enganar os indivíduos durante qualquer etapa do processo; no que diz respeito à confidencialidade, garanto o anonimato dos/das participantes, mediante a proteção dos dados pessoais, com vistas a evitar causar constrangimentos ou exposição desnecessária dos(as) participantes. Finalmente, preocupo-me em assegurar a precisão dos dados, de modo a evitar qualquer atitude não- cientifica e antiética como mentiras, materiais fraudulentos e omissões. Convoco novamente Radhay (2008) para quem a realização da etnografia não significa apenas uma metodologia, mas um engajamento com o outro. Não ignoro a complexidade e os dilemas dessa postura, reconheço que o processo de tomada de decisões no decorrer do trabalho não é uma tarefa fácil, mas reafirmo o compromisso com a ética em todas as etapas da pesquisa.

4.8 Conclusão

Neste capítulo, apresentei um relato sobre o desenho da pesquisa, meu contato com o Mestrado Profissional em Letras e os procedimentos metodológicos de pesquisa qualitativa adotados para o desenvolvimento da pesquisa etnográfica. Descrevi os métodos utilizados para a geração e coleta dos dados, bem como o contexto e os participantes.

Finalizo esta seção ressaltando que, apesar dos desafios relatados, tanto no estudo de campo como na análise dos dados, essa experiência de pesquisa etnográfico-discursiva contribuiu sobremaneira para o meu crescimento acadêmico e pessoal. Ao engajar-me nas práticas do Mestrado Profissional em Letras e conhecer de perto os desafios enfrentados pelos(as) cursistas do Profletras, eu tive a oportunidade de refletir sobre muitas categorizações preconceituosas que se encontram naturalizadas na cultura acadêmica, as quais inferiorizam a formação no MP.

5 ANÁLISES

Neste capítulo, dou início às análises, com base em minhas transcrições das entrevistas e nos diários de participantes. Tal como explicitei no capítulo 4, minha pesquisa é caracterizada como etnográfico-discursiva (MAGALHÃES, 2000; 2006), uma vez que analiso como textos os dados gerados na pesquisa de campo. Cumpre ressaltar também que um de meus objetivos principais é compreender as posições identitárias dos sujeitos cursistas do Profletras, para isso foi fundamental considerar a diversidade de práticas de letramento engendradas no interior das disciplinas do Mestrado Profissional em Letras. Examino, portanto, as relações entre letramentos acadêmicos e identidades.

Para as análises dos dados, utilizo a Teoria Social do Letramento (STREET, 1984; 2003; 2010; 2012; 2014; BARTON; HAMILTON, 1998; BARTON; HAMILTON, 2000), que embasa a minha concepção de letramento como prática social, contextualizada no tempo e no espaço. Baseio-me também nos pressupostos teórico-metodológicos da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001; 2003), em especial, o Significado Identificacional, ligado aos estilos. Uma das maneiras de se perceber esses estilos nos textos é pelas análises das categorias da modalidade e da avaliação. Utilizo a abordagem de Fairclough (2003) como principal referência para a análise da modalidade, categoria que se refere à atitude do falante com relação ao conteúdo de seu enunciado. Retomo também dois conceitos da teoria de Hylland (2000, apud PEREIRA, 2016): os reforços (booster) e os atenuadores (hedges), que ajudam a compreender como certos vocábulos expressam o engajamento do(a) interlocutor(a) com suas proposições, embora não sejam classificados como marcadores canônicos da modalidade.

As avaliações emitidas pelos cursistas em sua fala também são importantes no estudo de suas identidades, porque revelam maneiras explícitas ou implícitas de se comprometerem com valores. Fairclough (2003) propõe três categorias que podem indicar a materialização das avaliações em aspectos textuais, a saber: declarações avaliativas, declarações com modalidade deôntica ou avaliações afetivas e presunções valorativas37. Fairclough (2003) chama a atenção para outras categorias que também podem ser reveladoras de identidades, como os pronomes pessoais e as metáforas, e que, por isso, não podem ser desconsiderados na análise.

Um ponto de destaque na análise é que duas identidades emergiram na fala dos

participantes: uma identidade acadêmica de mestrando(a), e uma identidade profissional de professor(a). Nas primeiras questões, cursistas respondem sobre dificuldades como alunos(as), motivação para ingressar no Profletras, mudanças no letramento acadêmico – questões ligadas a essa identidade acadêmica; nas perguntas finais respondem sobre a contribuição das atividades de letramento do Profletras para a prática docente, desafios da profissão, características próprias do(a) professor(a), motivação para escolha e permanência na profissão - questões ligadas a identidade profissional. Dessa forma, os tópicos das seções de análises foram nomeados a partir dessas duas identidades, ambas influenciadas pelas práticas de letramento do Profletras.