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Improvisação e experimento: aberturas para a indeterminação

1 SOBREVÔO PARA A DEFINIÇÃO DE UMA PRÁTICA-PENSAMENTO

1.7 Improvisação e experimento: aberturas para a indeterminação

Um dos significados de experimentação refere-se à pesquisa sem rumo, como algo incerto, no sentido de se fazerem tentativas para se chegar a um resultado. Além disso, tudo pode ser experimentação, confundindo-se com experiência vivida, no sentido mesmo de vivência. Muito pelo contrário, a experimentação propõe-se como pensamento em porvir (sem fechamento sistêmico). O cineasta Júlio Bressane disse que a degeneração da arte está em “saber de antemão o que se quer, fazer o que já sabe e de um modo a se obter uma resposta previsível do público”52

.

52

Conferência realizada em Belo Horizonte, na Escola de Belas Artes, UFMG, em maio de 2004, por ocasião do lançamento de sua mais recente obra, Filme de Amor.

Zagala (2002), leitor crítico de Deleuze e Guattari, analisa as conexões entre a variação da experiência real e as condições da experiência possível. Para Zagala, as variações (num sentido que inclui mudança e divergência incessante) da experiência real não podem ser antecipadas pelas condições de possibilidade da experiência. Eu sei, por exemplo, que meu braço permite certas rotações possíveis – essas são condições da experiência possível, mas tais condições possíveis (numericamente) não determinam as potencialidades do meu movimento – que são imprevisíveis. O real torna-se uma arena de experimentação quando ele se vê livre de ter que se definir previamente, ou seja, pelas condições de suas possibilidades. As conseqüências disso são que o real define-se pela sua variação: mudança, divergência e devir. Passo, portanto, a examinar a questão de poder haver uma

zona de indiscernibilidade entre improvisação e experimentação.

Entretanto, poderia ser questionado: como falar ainda de improvisação quando se adentra pela experimentação? Ou seja, como falar de improvisação quando as ocorrências estão em deriva e flutuação, num sentido que rompe com o conceito de arte como obra acabada, como no caso do procedimento working in

progress, em suas conexões com o campo da performance art?

Lycouris (1996) comenta que, para George Maciunas, o instigador do movimento Fluxus, a improvisação consistiu numa das mais importantes estratégias nos anos de 1960, com o intuito de abolir tanto o formalismo quanto a abstração. O formalismo, diz Sophia, era visto por Maciunas como algo pré-determinado, quando a vida em si mesma é indeterminada e imprevisível. Portanto, Maciunas coloca-nos já dentro de uma zona de indiscernibilidade entre improvisação e experimentação. E essa ação, que visa aproximar arte (determinação) e vida (indeterminação), faz parte das estratégias das chamadas Novas Vanguardas Artísticas que eclodiram nos anos 60do séculopassado(Lycouris,1996)equepossuemconexõescomasatuações,manifestos e teorizações das Vanguardas Históricas, que deflagraram seus experimentos e manifestos(muitasvezesunseoutros coincidindo), noiníciodoséculo20.

Schechner (1994) chama os movimentos da segunda metade do século, principalmente nos EUA, de vanguarda experimental. O termo experimental teria o sentido de ex-peril, aquilo que sai do perímetro e se aventura no desconhecido. A vanguarda experimental teria contribuído para a criação de campo expandido na cena contemporânea redefinindo:

a) o que é uma atuação; b) o que é teatro;

c) em que lugar ele pode ocorrer;

d) a quem se direciona e com quem se pode envolver; e) como pode ser produzido;

f) e quem pode fazer. Assim, um campo expandido conecta-se com a redefinição do que poderia vir a ser um trabalho de arte.

Personagem atuante nas Novas Vanguardas é o músico e compositor experimental John Cage, que influenciará a dança pós-moderna e sua vertente improvisacional (LYCOURIS, 1996), sendo ainda considerado por Marinis (1998) o

personagem-chave do novo teatro norte-americano.

Os procedimentos e visões de John Cage tanto colocam questões quanto fornecem ferramentas que podem colocar em movimento o pensamento de uma improvisação física e experimental. Desse modo, passo a explicitar as visões e procedimentos de John Cage, que incidem sobre o aspecto cartográfico da pesquisa, no sentido de focalizar as potências desse movimento:

a) indeterminação;

b) operações com acaso.

As estéticas da indeterminação são assim chamadas por Terra (2000) para delinear um campo de experimentação em música, a partir da segunda metade do século XX, cujos procedimentos seriam o de explorar, de modo intencional, o não-

controle. John Cage, entre outros artistas, foi um dos que caminharam nessa

direção. Porém, pode parecer de início que o não-controle, trabalhado por Cage em termos de não-intencionalidade, poderia significar algo próximo de um niilismo da criação. Ao contrário disso, entendo que se trata de um novo modo de criação, ou seja, de conceber a conservação da composição (aquilo que lhe dá consistência). Nessa direção, cito duas questões que, segundo Terra, Cage teria colocado para si mesmo. A primeira seria a de investigar que papel a mente desempenharia quando abandona a pretensão de controle - nas palavras do próprio Cage: “o que ela faz, não tendo nada para fazer?” (p. 83). E a segunda seria a pergunta sobre o que poderia acontecer com uma peça musical quando ela opera com o procedimento da não-intencionalidade. À primeira questão, Cage responde dizendo que a mente torna-se livre para escutar sem preconceitos. E quanto à segunda, mostra que o silêncio passa a ser percebido

juntamente com cada som do ambiente, num modo imprevisível e sempre dado à mudança.

A indeterminação incide, a meu ver, sobre o vínculo composição-intérprete- performance. Nessa série, o último termo (performance) é determinado pelo primeiro (composição autoral), de tal modo que ao intérprete cabe a tarefa de executar essa passagem com o menor ruído possível. Assim, em termos musicais, caberia ao intérprete executar a composição, já anteriormente determinada por um autor que não se faz presente no momento da apresentação. As ocorrências que devem emergir no momento da execução são excluídas tanto pelo público quando pelo performer com o objetivo de que a composição, previamente determinada, seja plenamente executada. Entendo as visões e procedimentos de Cage em termos de uma ruptura com a lógica interna dessa série, propondo outro modo de criar, até porque, nas suas próprias palavras “o universo onde vai ocorrer a ação não é predeterminado”. (TERRA, 2000, p. 96).

Cage irá desenvolver as operações de acaso, que permitem trabalhar o paradoxo de uma não-intencionalidade intencional. O que são essas operações de acaso? Terra (2000) observa que Cage referia-se à atitude que o performer (antes um executor e agora co-criador) pode assumir diante da indeterminação da obra: ele incorpora qualquer eventualidade. Suas obras, através desse método, suas criações rompem com a noção de estrutura e adotam a de processo, deixando cada vez mais de serem pré-concebidas. Nas palavras de Cage, suas obras são “ocasiões para a experiência e essa experiência não é apenas captada pelos ouvidos, mas, também, pelos olhos. Um ouvido sozinho não é um ser” (TERRA, 2000, p. 84-85). O ato de ver e ouvir constitui para Cage uma noção de teatralidade. Concebendo a música como um evento teatral, Cage toma a relação entre o ouvir e o ver numa situação de abertura para o mundo, de uma ocorrência pública. Terra (2000) lembra-nos que a

teatralidade em Cage não se dá no sentido da obra de arte total wagneriana, mas no

sentido de acontecimento – de happening. As operações de acaso são as ferramentas que permitem a mente abrir-se para as ocorrências do mundo, o que está em ressonância com a influência do Zen Budismo sobre Cage, como se pode inferir a partir de uma entrevista concedida a Kirby e Schechner (1994, p. 65): “The attitude that I take is that everyday life is more interesting than forms of celebration, when we

become aware of it. That is when our intention go down to zero. Then suddenly you notice that the world is magical”53.

A indeterminação, emergindo através das operações de acaso e envolvendo a noção de teatralidade, coloca a questão de como isso pode ocorrer em relação à improvisação. Duck (2005), por exemplo, faz referência explícita a John Cage e relaciona diretamente o uso dos métodos de acaso. Duck faz uma separação importante, para uma pesquisa improvisacional, entre a habilidade de realizar escolha e a de operar com acasos. Duck demonstra que se o performer tem por base somente a escolha, com o objetivo de produzir modificação na performance, acabará submetendo a performance ao material subjetivo. E, por decorrência, adverte, ele não terá mais condições de efetuar escolhas. Duck toma, ao contrário, como foco, o acaso e não meramente o ato de tomar decisão (ou fazer escolhas):

The paradox here is that I do not want to communicate 'choice' as an esthetic. I want to communicate 'chance' as an esthetic. But, I can not have 'chance' without 'choice'. (…)

It is 'not' interesting, for me, that improvisation allows for the artists to make choices I find that to be the problem of improvisation, not the solution! It is interesting for me that the artists can create a space for something to happen.54 (DUCK, 2005).

Se a improvisação torna-se experimental, aportando num campo de indeterminação, fica evidente pelas pesquisas da dança pós-moderna que o procedimento implica no desenvolvimento de habilidades. O pensamento que Katie Duck abre proporciona ferramentas que permitem distinguir entre acaso e escolha, valorizando, além disso, a dimensão compositiva. Decorre, além disso, da questão aberta pela indeterminação, como foi dito, a abertura da performance-composição para esse procedimento.

No campo dos exercícios compositivos, tenho desenvolvido procedimentos técnicos, entre os quais o que chamo de Dispersão e Conexão.

53

Tradução livre: “A atitude que eu tomo é que a vida cotidiana é mais interessante que as formas de celebração, quando nós nos tornamos conscientes disso. Acontece isso quando nossas intenções descem para zero. Então, subitamente, você observa que o mundo é mágico.”

54

Tradução livre: “O paradoxo, aqui, é que eu não quero comunicar escolha como uma estética. Eu quero comunicar ‘acaso’ como uma estética. Porém, eu não posso ter ‘acaso’ sem fazer uma ‘escolha’.” (...) “Não é interessante, para mim, que a improvisação permita aos artistas fazerem escolhas. Eu penso que isso é um problema para a improvisação, não a solução! Interessa para mim que os artistas possam criar um espaço em que alguma coisa aconteça”.

Nesse exercício, os performers trabalham com graus de indeterminação, tanto no tempo-espaço e nas conexões livres que criam, quanto na troca não previamente combinada entre quem faz e quem vê, no palco mesmo. Parto do pressuposto de que esse exercício aponta para uma transição importante no sentido de pensar a performance como indeterminação. Não no sentido da improvisação total, mas de aberturas que podem surgir, em áreas que flutuariam em alguns momentos. No entanto, no âmbito dos estudos compositivos-improvisacionais, tais exercícios podem proporcionar caminhos e habilidades para a autonomia dos performers e, junto a isso, recursos para a criação cênica. Examino, assim, a inserção cartográfica do performer.