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CAPÍTULO 2 – PERSPECTIVAS DA INTERAÇÃO MUSICAL

2.1.3 Improvisação e interação sob uma ótica etnográfica

Dois importantes pesquisadores no campo da interação, mais próximos das concepções de Schutz, são, Paul Berliner e Ingrid Monson. Abro um tópico para tratar dos dois em conjunto pela abordagem próxima que ambos trazem em seus trabalhos, além da proximidade cronológica. Paul Berliner lança seu Thinking in jazz: The infinite art of improvisation em 1994 e, apenas dois anos depois, Ingrid Monson publica o seu não menos importante Saying something: Jazz improvisation and interaction (1996).

Berliner versa sobre todos os aspectos que compõem a expressão do jazz, percorrendo, desde as primeiras experiências de um contato com essa música, em ambientes de igreja, lar ou comunidades, passando por sistemas de aprendizagem, tanto formal quanto informal, assuntos abordados na primeira parte de seu trabalho. Além disso, o autor discorre sobre a aquisição de habilidades especificas para a formação do improvisador, abordando uma gama enorme de aspectos que os músicos percorrem a fim de se tornarem improvisadores. Esses aspectos dizem respeito ao aprendizado de repertórios, a realização de transcrições, passando por domínios físicos e técnicos do instrumento e conceitos de tempo, teorias de improvisação, até chegar à ideia de solos como narrativas.

Vale, contudo, ressaltar a principal contribuição de Berliner para a construção de uma abordagem teórica que prioriza a interação entre os músicos na elaboração de uma análise das seções de improvisação. Berliner (1994) elabora sua concepção de interação desde a geração de arranjos,

passando por convenções instrumentais, até discorrer, de fato, sobre a dinâmica de interação coletiva, entre solistas e seção rítmica. O autor aborda algumas estratégias de interação que ocorrem entre os membros de um grupo de jazz, como exemplo, entre outros, destaca-se a concepção, apresentada e corroborada por trechos de entrevistas, acerca da troca de responsabilidade sobre a manutenção do tempo em uma performance, sendo que, essa manutenção é majoritariamente executada pelo baixista em negociação com o baterista (BERLINER, 1994). O que Berliner pontua como interação negociada na performance é, a ocorrência do momento que o baixista estiver com o tempo estabilizado, o baterista teria menos compromisso em delinear o pulso, e que isso pode ocorrer no sentido inverso.

Outra estratégia significativa trazida pelo autor é relativa à complementaridade horizontal em uma performance, que ocorre no momento em que um instrumentista toca algo no ―espaço‖ deixado pelo improvisador, ideia muito próxima ao preenchimento (fill), segundo tipo de interação elencado por Rinzler (1988). A esse respeito, Michaelsen (2013) apresenta uma ressalva pertinente de que ―Berliner não desenvolve uma estrutura teórica para entendimento da improvisação do jazz‖ propondo apenas ―discutir as estratégias que os músicos usam para responder uns aos outros e criar essa conversa coletiva durante a performance‖ (MICHAELSEN, 2013, pp. 18-19). Ainda que haja, na obra de Berliner, a ausência de apresentação de um modelo analítico, que apoiado em Michaelsen, buscarei me deter mais adiante, suas contribuições para o campo da interação são bastante relevantes: descrever os tipos de interação e incluir em suas discussões aspectos do tecido social.

Para Araújo Costa (2015), tanto Berliner quanto Monson, se valem de aspectos sociolinguísticos e socioculturais para o embasamento de seus trabalhos. Hodson (2000), na mesma linha, afirma que ambos dialogam com a tradição da etnomusicologia. Essa proximidade teórica justifica, mais uma vez, a escolha de apresentar os autores em paralelo.

Além disso, Ingrid Monson, em sua introdução, sustenta que o trabalho de Berliner, além de ―um estudo etnográfico da improvisação jazzística‖

contribuiu, fornecendo ―o relato mais abrangente e detalhado da improvisação jazzística atualmente existente, bem como a exposição mais detalhada da etnoteoria na etnomusicologia‖ (MONSON, 1996, p. 4). Com isso, Monson expressa que seu trabalho ―tem uma relação complexa com o Thinking in jazz, já que Berliner e eu [Monson] temos estado em diálogo frequente sobre o nosso trabalho desde que nos conhecemos em 1991‖. Assim, a autora complementa que a ampla abordagem feita por Berliner sobre questões de improvisação, permitiu uma trajetória diferente em relação aos materiais etnográficos sobre a seção rítmica que ela apresenta.

A concepção de interação sustentada por Monson (1996) é a de um processo comunicacional, realizado e alimentado no momento da improvisação. Assim como Berliner (1994), que a partir das entrevistas encontra uma metáfora recorrente sobre o diálogo entre os músicos no momento da improvisação, Monson (1996) sustenta o uso dessa mesma metáfora da conversação explorando semelhanças estruturais entre conversa e performance musical. Essa correlação é embasada examinando a literatura sociolinguística sobre interação conversacional, bem como perspectivas literárias sobre linguagem. Neste ponto, Monson afirma:

Quase todos os músicos que falaram comigo

mencionaram a importância de ouvir para uma boa execução em conjunto. Ouvir em um sentido ativo, capaz de responder a oportunidades musicais ou corrigir erros - está implícito na forma como os músicos usam esse termo. É um tipo de ouvir muito semelhante ao exigido aos participantes de uma conversa, que têm de prestar atenção ao que está acontecendo se esperam dizer coisas que fazem sentido para os outros participantes. Ouvir afeta o que os músicos decidem tocar num determinado momento, razão pela qual Cecil McBee estava tão certo de que, em uma boa performance de jazz, "você não vai tocar o que praticou ... outra coisa vai acontecer" (MONSON, 1996, p. 84).30

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Nearly every musician who talked to me mentioned the importance of listening in good ensemble playing. Listening in an active sense being able to respond to musical opportunities or to correct mistakes- is implicit in the way that musicians use this term. It is a type of listening much like that required of participants in a conversation, who have to pay attention to what is transpiring if they expect to say things that make sense to the other participants. Listening

Essa atividade aural, bastante valorizada, e sua manifestação responsiva sempre esperada, sugerem ecos da estética cultural afro- americana, na estética musical do jazz. Dessa forma, Monson inclui um recorte mais profundo em sua análise, que não se limita a apenas descrever mecanismos de interação, mas resgatar outros modelos estéticos que atravessam a improvisação.

Segundo Monson (1996), na estética afro-americana, ―a ideia de resposta é tão importante quanto na comunicação verbal‖ e, ainda segundo a autora, ―a resposta dos músicos é claramente crucial, se uma determinada ideia musical for captada, desenvolvida ou ignorada‖. Monson (1996) sustenta seu argumento apoiando-se em Samuel Floyd, que reconhece a importância crítica deste princípio na música afro-americana e sugere que ela fosse chamada de ―pergunta e resposta‖, sendo este, um conceito próximo ao primeiro tipo de interação elencado por Rinzler (1988). Com isso, Monson (1996) focaliza seu trabalho nesse tipo de interação particular, além de reafirmar a relação social, conversacional e dialógica da performance interativa, como podemos acompanhar no excerto abaixo:

Estou interessada aqui na sua realização particular no contexto da improvisação jazzística, onde é um componente crucial na dinâmica em larga escala de

performances improvisadas. É uma maneira

fundamentalmente social, conversacional e dialógica de organizar a performance musical. Frequentemente um intercâmbio começará com a repetição de uma determinada passagem musical ou uma resposta com uma interjeição musical complementar, embora estas não sejam certamente as únicas possibilidades (MONSON, 1996, pp. 88-89).31

affects what musicians decide to play at a particular moment, which is why Cecil McBee was so sure that in good jazz performance, "you're not going to play what you practiced.... Something else is going to happen"

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I am interested here in its particular realization in the context of jazz improvisation, where it is a crucial component in the large-scale momentum of improvised performances. It is a fundamentally social, conversational, and dialogic way to organize musical performance. Frequently an exchange will begin with the repetition of a particular musical passage or a

Monson (1996), assim como outros autores (HODSON, 2000; MICHAELSEN, 2013), tece uma crítica32 à abordagem analítica realizada por Gunther Schuller no seu artigo Sonny Rollins and the Challenge of Thematic Improvisation, de 1958, e da qual a análise que proponho neste trabalho também se distancia. Neste artigo, Schuller analisa um solo de Sonny Rollins no tema Blue 7, sustentando que Rollins realiza uma construção temática em seu improviso e embasa seus argumentos, principalmente, na tradição da música clássica europeia. Para Monson ―os critérios citados por Schuller eram hegemônicos nos círculos da música clássica ocidental na época em que Schuller estava escrevendo‖ (MONSON, 1996, p. 134) e por isso foram utilizados. Porém, a autora argumenta que ao elogiar Rollins com base nesses critérios, Schuller deprecia o trabalho dos artistas do jazz que não partilham dos mesmos ideais estéticos. Na mesma linha, Michaelsen afirma que para Schuller "a coesão estrutural - sem sacrificar a expressividade, a pulsão rítmica e o balanço - é o que se espera do compositor que passa dias ou semanas escrevendo uma determinada passagem.‖ Dessa forma, Michaelsen (2013) tem a impressão ―que, para Schuller, o último elogio que se pode dar a um improvisador é que ele ou ela não parece estar improvisando‖. Assim, essa é justamente a crítica feita por esses autores, Schuller, com a intenção de valorar a improvisação do jazz, para um público diverso, ignora outros aspectos da improvisação que não os compreendidos por aspectos ―universais‖ da música ocidental.

Em oposição a essa perspectiva, Monson (1996) propõem uma nova maneira de olhar essa forma de fazer música, em busca de ―uma teoria musical mais cultural e uma teoria cultural mais musical‖, pois, dessa forma, podemos alcançar traços musicais mais próximos à comunidade geradora dessa expressão. Uma análise que se preocupa com as relações culturais, alcança processos musicais distintos e, por vezes, únicos em seu objeto. Com isso,

response with a complimentary musical interjection, although these are certainly not the only possibilities.

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Ainda que possa ser apontado um possível anacronismo com relação a essa crítica levantada por Monson, entre outros, a mesma se faz necessária, por ainda ser bastante recorrente análises de improvisos/improvisadores que não levem em conta o contexto em que essas produções ocorreram.

Monson (1996) sustenta que ―a interação musical dentro da seção rítmica e entre a seção rítmica e o solista é um desses processos musicais distintivos na improvisação jazzística‖, Monson conclui seu raciocínio da seguinte forma:

Gostaria de dar um passo atrás e considerar as implicações culturais da improvisação de jazz como um processo musical sociável. Desejo examinar como os significados culturais se tornam associados aos recursos e formas musicais, como os próprios processos musicais dão sentido cultural e como conceitos heterogêneos de processos culturais e musicais são necessários para dar sentido a um gênero musical que, em todos os momentos históricos, foi improvisado contra o inexorável ritmo da política racial nos Estados Unidos. Um olhar consubstanciado enfatiza o caráter coletivo da improvisação jazzística, bem como a heterogeneidade da experiência cultural. Essas questões conceituais merecem estar no centro do pensamento sobre o jazz, não nas margens (MONSON, 1996, p. 72).33

Após essa perspectiva proposta pela autora, discuto sua concepção de groove, que é reverberação das concepções de Berliner. Tanto Monson (1996), quanto Berliner (1994) sustentam a ideia de que o groove é o responsável pela junção de todos os elementos musicais. Segundo Monson (1996), o groove ―fornece a solidez e a coesão subjacentes aos músicos que interagem livremente, improvisando‖ (MONSON, 1996, p. 67), dessa forma, é ele o elemento encarregado da ―junção dos papéis improvisados da seção rítmica‖ (MONSON, 1996, p. 26). Berliner (1994) comunga da mesma concepção quando afirma que o groove é quem ―promove a base para que tudo esteja junto e de completo acordo‖ (BERLINER, 1994, cap. 13).

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I would like to step back and consider the cultural implications of jazz improvisation as a sociable musical process. I wish to examine how cultural meanings become associated with musical resources and forms, how musical processes themselves shape cultural meaning, and how heterogeneous conceptions of cultural and musical processes are necessary to make sense of a musical genre that has at every historical point been improvised against the inexorable groove of racial politics in the United States. The view from the bottom of the band emphasizes the collective character of jazz improvisation as well as the heterogeneity of cultural experience. These conceptual issues deserve to be at the very center of thinking about jazz, not at the margins.

Esta unificação que os autores sustentam que é a realização do groove refere-se aos papéis e funções de cada um dos instrumentos contidos na performance. Da mesma forma que Berliner (1994) trata cada um dos instrumentos e suas respectivas funções dentro do conjunto, Monson (1996) também o fará, e como complemento, a autora, discorrerá, também, sobre as funções que cada instrumento exerce no momento da performance. Para Monson, temos três funções interagindo no interior do grupo de jazz no momento da performance, sendo elas: a manutenção do tempo, o acompanhamento e o solo. Esses papéis e essas funções são interdependentes e flexíveis, realizadas e negociadas no momento da performance. É com a perspectiva dessa negociação que Berliner (1994) afirma que o groove depende da relação coordenada da seção rítmica da qual Monson compartilha.

De forma geral, ambos autores embasaram suas perspectivas e conceitos a partir do que encontraram nas inúmeras entrevistas que realizaram. Isso é justamente o que confere um traço etnográfico e etnomusical a seus trabalhos. São dois dos principais autores no que se refere à interação musical e a relação dessa com aspectos sociais dentro da comunidade do jazz estadunidense. Mesmo que esta dissertação não tenha este viés etnográfico central, estes autores, pelas concepções sobre interação problematizadas em suas obras, são referências importantes para este trabalho. Suas concepções serão relevantes para concepção de interação aqui adotada, por proporem uma análise que não é apenas descritiva, buscando para isso elementos outros imbricados no processo interacional.