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Indústria Ligeira e Mercado Sofisticado

A fatia superior do mercado brasileiro continuava a ser aproveitada, conforme vimos, por intermédio das importações e por incursões muito limitadas da indústria brasileira. A partir dos anos 20, no entanto, assistimos paralelamente a um reforço da empresa americana no Brasil e a uma transição para o fabrico local dos bens necessários à esfera superior da sociedade brasileira.

A guerra mundial tinha sido muito proveitosa para os americanos, que dela emergiam como os grandes vitoriosos. "Tal como os japoneses tomaram os mercados da Inglaterra na Ásia muito mais depressa do que seria possível se a guerra não tivesse rebentado, os industriais americanos souberam aproveitar a guerra (que começou, para eles, apenas em 1917) para retirar aos britânicos os seus mercados da América do Sul".70

A importância desta penetração ia, evidentemente, muito além da luta pelos mercados: tratava-se também do controle da orientação do aparelho produtivo brasileiro. O endividamento público, forma indireta de controle da superestrutura da economia brasileira ao favorecer um desenvolvimento de tipo particular da infra-estrutura, aumentava rapidamente, mas por iniciativa americana. Depois dos quatro grandes empréstimos de 1921, 1922, 1926 e 1927 no mercado de Nova Iorque, a dívida brasileira junto dos Estados Unidos ultrapassou, em 1931, 140 milhões de dólares. "Depois da guerra", escreve Normano, "abre-se um novo capítulo na história da dívida externa brasileira: o mercado de Nova Iorque tomou posse do velho cliente de Rothschild". 71

69 Roberto Simonsen,Evolução Industrial do Brasil. p. 17.

70 T. C. Baker, op. cit., p. 231. Segundo Graham, "em 1913 o Brasil importou 16 milhões de libras de mercadorias da Inglaterra; dois anos mais tarde, este montante caiu para 6,6 milhões de libras esterlinas. Apesar de uma certa recuperação, por volta de 1918 o nível atingia apenas 10,8 milhões, enquanto as importações dos Estados Unidos subiam para 19 milhões... Apesar da breve prova de forças depois da guerra, os britânicos tinham perdido a partida em proveito dos americanos(had lost out to the Americans) por volta de 1924 " (Graham,op. cit., p. 315).

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O reforço da presença financeira americana constituía, por outro lado, uma excelente infra-estrutura para os investimentos diretos que vinham apropriar-se do mercado de luxo anteriormente satisfeito pelas importações provenientes da Inglaterra.

Ferreira Lima nota esta forma particular da penetração capitalista americana, que "se manifestou através de uma série de empresas que abriram filiais no Brasil, em geral empresas industriais, visando a penetração do nosso mercado".72

A instalação de filiais de grandes empresas americanas toma vulto nos anos 1920. Notemos, entre outros, a instalação do National City Bank of New York em 1915; da American Chemical Works em 1917; da Brazilian Tobacco Corporation em 1918, seguida no mesmo ano da American International Steel Corporation; em 1920 instalam-se a American Coffee Corporation, a Ford Motor Company, a Sydney Ross Company, a Betlehem Steel; a Atlantic Refining Company instala-se em 1922, Firestone em 1923, Armour of Brazil em 1924 juntamente com a IBM. A International Harvester em 1926, Goodrich em 1928, General Tyre em 1929 juntamente com a Burroughs e a Pan American Airways. Notemos também, entre outras, a penetração da indústria do cinema, com a instalação da Metro Goldwyn Mayer do Brasil em 1926 e da First National Pictures of Brazil em 1929.

O movimento que se esboça é fundamental: "Trata-se da passagem gradual da internacionalização do capital, que Lênin caracteriza, para a forma atual, que se caracteriza pela internacionalização das próprias estruturas de produção.73

Nesta fase, ainda uma parte apenas do processo produtivo era transferida para o Brasil: "A abertura destas empresas subsidiárias tinha por objetivo assegurar o nosso mercado a estes produtos, ou aproveitar certas facilidades aduaneiras, ou a mão-de-obra mais barata de que dispunha o nosso país, ou ainda beneficiar de vantagens de transportes, dividindo assim o processo de produção em duas partes: uma, de fabricação de peças ou de componentes na matriz; outra, da montagem aqui". 74

A importância relativa da parte da produção executada no país varia evidentemente segundo o produto. "Na indústria farmacêutica, por exemplo, há casos em que a seção brasileira se limita à embalagem de artigos acabados e de produtos da matriz. A General Motors e a Ford Motor Company instalaram em São Paulo oficinas de montagem de veículos com peças importadas das suas fábricas americanas; pouco a pouco, algumas destas peças começaram a ser fabricadas nestas oficinas. Na fábrica de pneus, a borracha é totalmente elaborada no Brasil, mas as lonas são importadas".75

A orientação deste setor da indústria do ponto de vista do mercado a atingir é bastante clara: por um lado, trata-se de captar parte do mercado sofisticado que os ingleses forneciam com bens importados, e a instalação de empresas de montagem no Brasil constituía uma forma vantajosa de concorrência; por outro lado, é compreensivel que a internacionalização da estrutura de produção

72 Ferreira Lima, op. cit., p. 34.

73 Ver p. 54. Christian Palloix distingue as fases da acumulação mundial do capital segundo dominam na troca internacional as diferentes fases do ciclo de reprodução do capital: M — M' (etapa mercantil), A — A' (exportação de capital) e ...P... (internacionalização do capital  produtivo). Esta distinção abre uma nova perspectiva das relações econômicas internacionais, que consiste em ultrapassar o estudo das trocas em proveito do estudo das relações de produção que se formam a nível mundial. Com efeito, à medida que assistimos a uma internacionalização do aparelho de produção, ligada à mobilidade relativamente mais fraca do fator trabalho, as relações de troca tornam-se necessariamente relações de produção.

74 Heitor Ferreira Lima,op. cit., p. 343.

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concerne às indústrias dinâmicas nas próprias economias dominantes, e não uma resposta às necessidades a longo prazo da população brasileira.

"Os principais ramos de produção (das subsidiárias americanas)", escreve Caio Prado Júnior, "são os automóveis, os produtos farmacêuticos e químicos, os aparelhos elétricos, a alimentação (farinhas, conservas)". 76

Além disto, e o fato é particularmente claro na indústria alimentar, trata-se também de produzir no Brasil para o mercado das próprias economias dominantes. Simonsen relata a existência, nos anos trinta, de 14 grandes estabelecimentos frigoríficos "mantidos na sua maioria por capitais americanos e ingleses".77

Estas empresas, escreve Caio Prado Júnior, "não visam o mercado brasileiro, mas somente a utilização da matéria-prima abundante no país e a exportação da carne para a Europa. Trata-se de Wilson, Armour, Swift, Continental, Anglo. Toda a indústria brasileira de carnes congeladas (à qual se acrescentará logo a carne em conservas) sempre foi, e continua a ser, controlada por filiais de grandes empresas estrangeiras, americanas em particular".78

A importância destas indústrias é grande: Simonsen, escrevendo pelo fim dos anos trinta, lembra que "elas representam hoje, em função do valor de produção, a nossa segunda atividade industrial", abatendo mais de 1,5 milhão de bovinos e quase 1 milhão de porcinos por ano. Desta produção, cerca de metade ia para a exportação".79

É interessante constatar que, se os empresários brasileiros tinham dificuldades em penetrar no mercado sofisticado, souberam fazê-lo na medida em que se ligavam às empresas estrangeiras: "Ao grupo de indústrias subsidiárias das grandes empresas estrangeiras podem ser assimiladas outras que, se bem que formadas por capitais brasileiros, e portanto nacionais, ou pelo menos com uma parte apreciável de capital brasileiro, não fazem senão montar peças acabadas ou semi-acabadas que importam. Concentram-se sobretudo no setor dos aparelhos elétricos (motores, elevadores, rádios, toca-discos, etc.). Estas indústrias, apesar de nacionais, estão em geral intimamente ligadas e mesmo subordinadas a organizações estrangeiras".80

Do ponto de vista da dinâmica própria deste subsetor, constituído por filiais de empresas estrangeiras e pelas empresas nacionais que as acompanham, parece tratar-se essencialmente de uma descentralização das estruturas de produção do capitalismo dominante, mais do que de uma dinâmica de industrialização correspondente à maturidade interna da economia brasileira. Utilizando técnicas já relativamente modernas, este núcleo constituirá a ponta de lança do desen- volvimento do Brasil a partir dos anos 1950 e assumirá a hegemonia do processo a partir de 1964.

Do ponto de vista do efeito estrutural sobre a economia brasileira, é relativamente fácil perceber o que nos traz este ramo da indústria. Com efeito, trata-se de uma indústria ligada ao mercado sofisticado ou estrangeiro, que depende, não só em termos econômicos, mas também em termos jurídicos, das matrizes situadas nas economias do centro (e algumas vezes, no caso do Brasil, na Argentina, onde empresas estrangeiras se instalaram antes) e que se concentram, da mesma forma que as empresas brasileiras ligadas ao mercado popular, essencialmente em São Paulo, com exceção de algumas empresas do setor alimentar, situadas mais perto das fontes de matérias-primas.

76 Caio Prado Júnior,op. cit., p. 272. 77 Roberto Simonsen,op. cit., p. 39. 78 Caio Prado Júnior,op. cit., p. 272. 79 Roberto Simonsen,op. cit., p. 39.

80 Caio Prado Júnior, op. cit., p. 273. A assimilação destas empresas nacionais “às grandes empresas estrangeiras” constitui, evidentemente, uma simplificação. O problema reside  precisamente no fato de assistirmos à constituição de uma classe brasileira cujos interesses coincidem com o capitalismo dominante, na medida em que a sua própria prosperidade depende da manutenção do sistema. Isto não impede que se trate de uma classe que lutará duramente  para melhorar o seu lugar neste sistema e que saberá entoar as loas nacionalistas para este fim.

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Em termos de integração com o modo de produção existente, não parece haver contradições importantes: ligadas ao mercado de luxo ou exterior, estas empresas estão pouco interessadas em desenvolver o poder de compra popular, cujo perfil de consumo não corresponde, senão marginalmente, ao seu perfil de produção; pelo contrário, interessa a este subsetor ampliar o mercado, que aumenta pela concentração dos rendimentos. Por outro lado, a manutenção das relações de produção existentes assegura uma pressão sobre o mercado de mão-de-obra. Enfim, uma grande parte destas indústrias, na medida em que estão ligadas à produção para exportação — é em particular o caso da indústria da came — reforçam a extroversão econômica e reproduzem as relações de exploração e o desequilíbrio constatado.

Assim, além da "má vontade" intrínseca que se lhes possa atribuir pelo fato de se tratar de empresas juridicamente ligadas ao "imperialismo", é no mecanismo da reprodução do capital que encontramos a lógica do seu caráter conservador, e a explicação deste fato tão estranho da coexistência — sempre reproduzida — da industrialização moderna dentro de estruturas aparentemente pré-capitalistas.